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2.2 A relação verbo-visual no livro ilustrado

2.2.1 Propridades dos sistemas verbal e visual

De que serve um livro sem figuras nem diálogos? Lewis Carroll

Segundo Nikolajeva e Scott (2011), a narrativa no livro ilustrado compõe-se de dois sistemas semiológicos diferentes: o icônico e o convencional, os quais pertencem à linguagem visual e à linguagem verbal, respectivamente. Uma das características distintivas mais significativas entre essas duas formas de representação é a estreita relação de semelhança que o signo visual mantém com aquilo que representa, em oposição à arbitrariedade dessa relação

no âmbito do signo verbal, fenômeno estudado por Saussure (1972), ao tornar independente os estudos da linguagem, e por tantos filósofos da linguagem antes dele. A propriedade convencional do signo linguístico implica, necessariamente, aprendizagem sistemática das regras de composição e de organização do código verbal para a decodificação de mensagens. Por outro lado, a decodificação do signo visual é um processo imediatista e universal, segundo Acaso (2006), o que permite uma leitura superficial e a manipulação de sujeitos vulneráveis.

No entanto, apesar de natural, a percepção visual não é a primeira experiência de que a criança participa logo que inicia o seu processo de aprendizagem. De acordo com Dondis (2003, p.5), a consciência tátil precede todas as outras, embora o olfato, o paladar e a audição também a acompanhem. Contudo, rapidamente, todos esses sentidos são superados pela visão, e a capacidade de ver, para aqueles que não apresentam algum grau de deficiência visual, transforma-se em uma ação automática, que ocorre graças aos mecanismos fisiológicos do sistema nervoso humano, sem que o indivíduo necessite dispensar qualquer esforço. Segundo a autora, a busca pelo reforço visual do conhecimento torna-se constante e ocorre, principalmente, por causa do caráter direto da informação e da proximidade da experiência real. Ainda segundo Dondis (2003), a percepção visual é fundamental para conhecer o meio ambiente e reagir a ele, embora a recepção e a interpretação de mensagens visuais possam ser modificadas pelo estado psicológico do sujeito, pelos condicionamentos culturais e sociais a que está submetido e até pela expectativa do ambiente em que vive. A arte dos esquimós, por exemplo, por causa do alargado conhecimento das tonalidades do branco da neve e do céu luminoso, não apresenta o horizonte como referência e usa elementos verticais ascendentes e descendentes. No entanto, a autora acredita na existência de um sistema visual, perceptivo e básico, comum a todos os seres humanos, embora seja menos lógico e preciso que o sistema verbal.

Ao considerar que a linguagem visual dispõe de um sistema, Dondis (2003) afirma ser natural esperar que o sistema visual apresente articulações e componentes estruturais semelhantes aos da linguagem verbal. No entanto, para a autora, isso seria um exercício inútil, já que a linguagem visual é complexa e resistente a simplificações, o que demandaria um excesso de definições. Santaella (2012), por sua vez, dedica um capítulo de sua obra para destacar o esforço de inúmeros semioticistas que se empenharam em descrever uma gramática da imagem análoga à da língua. Contudo, a autora salienta que alguns deles, como Eco (1976, apud SANTAELLA, 2012) e Calabrese (1980, apud SANTAELLA, 2012), consideraram mais produtivo analisar imagens a partir de um procedimento top-down, no qual o valor funcional dos elementos é atribuído de acordo com a totalidade da imagem, do que bottom-up, que

considera a totalidade da imagem resultante da divisão de unidades mínimas e de sua combinação. Desse modo, a gramática da imagem será sempre uma gramática textual, e não um código geral, aplicado a todas as imagens.

Os elementos da imagem são percebidos de forma simultânea, enquanto a escrita é produzida de forma linear e recebida de maneira sucessiva. Santaella (2012) destaca que as imagens representam melhor o que é da ordem espacial-visual, aquilo que é concreto; o que é abstrato só pode ser representado por imagens de forma indireta. O mesmo acontece ao representar a passagem de tempo: as imagens só podem fazê-lo indiretamente. A linguagem verbal pode, por sua vez, representar objetos concretos e abstratos, descrever características particulares e gerais, apresentar impressões de percepções visuais, acústicas, térmicas e táteis, além disso, é a que melhor expressa a passagem de tempo – embora não provoque, como a ilustração, o impacto próprio da apreensão holística da imagem.

Outro aspecto a ser considerado é a diferença entre a elaboração cognitiva visual e a verbal. Segundo Santaella (2012), o processamento de informações imagéticas se realiza no lobo cerebral direito – instância responsável pelas emoções –, e, por causa disso, as imagens são percebidas rapidamente e permanecem bastante tempo no cérebro. As mensagens verbais, por sua vez, são compreendidas no lobo cerebral esquerdo, onde é processado o pensamento analítico e racional. Com isso, pode-se afirmar que a informação transmitida pela imagem possui uma potência patêmica mais imediata que aquela transmitida pela palavra.

Para prosseguir à análise da parcela icônica do texto em livros ilustrados, é preciso esclarecer que a imagem usada nessas obras é o desenho. De acordo com Santaella (2012, p.17- 18), desenhos são imagens do tipo representações visuais, já que “são criadas e produzidas pelos seres humanos nas sociedades em que vivem. [...] São artificialmente criadas, necessitando para isso da mediação de habilidades, instrumentos, suportes, técnicas e mesmo tecnologias”. Essa ideia corrobora o que afirmava Barthes (1990, p. 35): o desenho possui uma “natureza codificada”, construída a partir de “transposições regulamentadas”, isto é, um conjunto de saberes técnicos que permitem a reprodução da realidade.

Além disso, Feres (2016) salienta que a maioria das ilustrações nos livros ilustrados é baseada em figurativizações e conta com recursos plásticos, que podem revelar, inclusive, o estilo do artista; e imputam um caráter ficcional à narrativa imagética, deixando sua referenciação dependente dos saberes partilhados entre os sujeitos implicados na situação de comunicação.

Nessa mesma perspectiva, é importante mencionar a teoria dos signos do semioticista Peirce (2003), para quem “o signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. Ele

só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele” (SANTAELLA, 2003, p.58). Para tomar como exemplo, ainda que superficialmente, a palavra cachorro, um desenho ou uma fotografia deste animal não são o próprio ser em si, nem a ideia geral que se pode ter a respeito de um cão, mas são signos desse objeto, substituem-no a seu modo, de acordo com a sua natureza. A relação do signo verbal com o seu objeto de referência é fruto de uma convenção, pois não há entre eles nenhuma característica intrínseca que motive essa ligação. Já os signos visuais mantêm traços de similaridade com o objeto que representam, embora uma fotografia de um cachorro guarde mais semelhança com o seu objeto de referência, do que um desenho do mesmo animal fotografado. Para além dessa exemplificação rasa sobre o modo de representação, de acordo com Santaella (2003, p.62), a iconicidade apresenta níveis e subníveis que explicam como o signo representa, desde o momento de sua manifestação. Na teoria peirceana, encontra-se a distinção dos ícones em ícone puro e signos icônicos ou hipoícones, que se subdividem em imagem, diagrama e metáfora. A autora expandiu a compreensão dos aspectos do ícone e propôs níveis e subníveis de iconicidade, que vão desde o ícone puro até a metáfora.

O ícone puro é o primeiro nível da iconicidade e não apresenta subdivisões, já que é um sentimento indivisível, que não pode ser sequer analisável, cuja existência mental não pode ser comparável nem a uma ideia. É uma possibilidade ainda não realizada.

O ícone atual é o segundo nível e se refere às funções que o ícone adquire no processo de percepção. Apresenta duas subdivisões, o aspecto passivo, que corresponde ao estado de disponibilidade não reativa da mente à apreensão da percepção; e o aspecto ativo, que corresponde à reação da mente à percepção, capaz de produzir associações sob a lei de similaridade.

O hipoícone é diferente dos níveis anteriores, porque se trata de um signo, algo que está no lugar de um objeto. Foi subdividido por Peirce em três níveis já mencionados, nomeadamente: a imagem, diagrama e metáfora.

a) As imagens apresentam similaridade na aparência ou, em termos peirceanos, participam da primeiridade. Elas representam um objeto, porque dispõem de semelhanças no nível de qualidade.

b) Os diagramas estabelecem ligações internas das partes de um objeto, fazendo relações análogas em suas próprias partes.

c) As metáforas referem-se ao poder representativo que um signo estabelece paralelamente com o objeto.

De acordo com Santaella (2003, p. 65), “em síntese, pode-se afirmar que a imagem é uma similaridade na aparência; o diagrama, nas relações, e a metáfora, no significado”. Contudo, a autora explica que um nível engloba o outro: um diagrama inclui uma imagem, assim como uma metáfora incorpora dentro de si tanto o diagrama quanto a linguagem.