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3 O CONTRATO DE COMUNICAÇÃO SOB A PERSPECTIVA DA

5.2 O contrato de comunicação em “Amor de mãe” (CARVALHO, 2017)

5.2.5 A relação verbo-visual

A organização semiológica do texto em “Amor de mãe” (CARVALHO, 2017) ocorre por associação (LINDEN, 2011), pois a parte verbal ocupa a mesma página que a parcela visual, embora esteja situada sempre em um espaço dessemantizado da cena. A obra é composta integralmente por páginas duplas, cuja parcela visual sangra às margens da página. Assim como a maioria dos contos ilustrados que se apresentam dessa forma, em “Amor de mãe”, não há marcação numérica de páginas.

Entre as partes verbal e visual do texto, ocorrem três dos quatro tipos de relações semânticas de que Santaella (2012) trata, a saber: redundância, discrepância e complementaridade. Entretanto, a relação de complementaridade é a que constitui a maior parte da narrativa.

A relação de complementaridade entre a parte visual e a verbal nessa obra, no tocante à revelação da identidade das mães de Luan, é nítida e contribui imensamente para gerar expectativa e aguçar a curiosidade do leitor. Embora o fato de Luan ter duas mães venha a público primeiramente na parte verbal da obra, o efeito surpresa que se deseja produzir ao mostrar a aparência física de cada uma das mulheres separadamente não é diminuído. Vale lembrar que desde a ilustração de capa, as duas vêm sendo mostradas sob ângulos que geram suspense, ora desenquadrando-as, ora mostrando-as de costas, ocultando-lhes os rostos. Essa é uma estratégia de captação que pode suscitar o interesse do leitor, fazendo com que crie hipóteses e deseje verificá-las no decorrer da leitura.

A relação de discrepância (SANTAELLA, 2012) entre a parte verbal e a parcela visual concentra-se em uma das cenas da descrição encaixada, em que a mamãe Belinha dá banho em Luan. Na parte verbal, afirma-se que na hora do banho, os dois “deixam tudo bem limpinho” (CARVALHO, p. 12), no entanto, na parcela visual, o banheiro é mostrado inundado pela água que transborda da banheira em que Luan e Belinha estão se banhando. Além disso, há livro, brinquedos e roupa pelo chão, retratando a bagunça feita pelos dois.

Figura 36: “Amor de mãe” (CARVALHO, 2017, p. 16 -17)

Para interpretar essa relação como discrepante, é preciso que o leitor possua um imaginário de organização e limpeza diferente daquele mostrado na parcela visual da cena.

Dessa forma, a parte verbal expressará ironia e sua relação contraditória com a parcela visual produzirá um efeito de humor.

A relação de redundância está presente em todos os processos que compõem as descrições encaixadas que relatam o dia a dia de Luan com cada uma de suas mães.

Vale destacar que a redundância está sendo tratada aqui nos mesmos moldes que Linden (2011) afirma que essa relação é estabelecida. Conforme a sua teoria, a redundância realiza-se a partir da congruência entre a parte verbal e a parcela visual, em que não há sobreposição de sentidos produzidos por cada linguagem, mas um processo de significação próprio de cada sistema de representação.

Figura 37: “Amor de mãe” (CARVALHO, 2017, p. 26 -27)

Nessa cena, por exemplo, Lalá e Luan estão lendo. Essa ação é a mesma descrita na parte verbal e representada na parcela visual do texto. Entretanto, a parcela visual, tal como Santaella (2012) postula, trata dos elementos de natureza concreta, tais como: o ambiente em que os personagens estão, a posição em que se encontram, as roupas que estão vestindo, seus gestos e expressões faciais. Já a parte verbal lida com mais exatidão com aquilo que é abstrato. Por isso, embora a lua e as estrelas possam ser visualizadas na parcela visual, é da parte verbal que se extrai a informação mais apurada sobre a ação. Em outras palavras, nesse caso, embora a parcela visual mostre que a ação ocorre à noite, é por meio da parte verbal que a cena é ancorada como a hora de dormir.

Uma das especificidades da parte visual, tal como salientam Nikolajeva e Scott (2011), é ambientar a obra, o que pode referir-se ao cenário e/ou ao estado emocional dos persongens. Além disso, a parcela visual é a que descreve as caraterísticas físicas omitidas na parte verbal do texto no conto ilustrado.

Em “Amor de mãe”, percebemos de modo objetivo por meio das ilustrações que a história se passa três locais diferentes, a saber: na escola de Luan, na casa dele e em parques verdes. Todos esses ambientes podem ser familiares à criança e, por isso, de fácil assimilação para esse segmento de leitores. Além disso, esses elementos presentes na parte visual do texto podem levar o leitor a situar, localizar e qualificar (CHARAUDEAU, 2008) os personagens e o cenário, suscitando percepções tanto de ordem objetiva quanto de natureza subjetiva. A seguir serão listadas algumas das percepções que a criança pode ter, através da parte visual do texto nas cenas que compõem as descrições encaixadas da obra.

A mamãe Belinha é divertida, despojada e muito ativa, por isso, é representada por cores quentes, formas arrendondadas e alongadas, que sugerem movimento.

Figura 38: “Amor de mãe” (CARVALHO, 2017, p. 12 -13)

Objetivamente, se pode perceber que a mamãe Belinha dedica-se a brincar com o menino. De modo subjetivo, se pode deduzir que tanto Luan quanto Belinha estão felizes.

Já a representação da mamãe Lalá leva o leitor a crer que ela seja bastante diferente de sua parceira, pois enquanto Belinha é quase sempre retratada em ambientes externos, as cenas que mostram Lalá cuidando de Luan são ambientadas dentro da casa.

Figura 39: “Amor de mãe” (CARVALHO, 2017, p. 22 - 23)

A partir dessa cena, pode-se perceber, de modo objetivo, que Luan tem acesso a livros, jogos e brinquedos em casa. E, de modo subjetivo, é possível inferir que o menino aprecia os momentos de lazer e entretenimento com cada uma das mães.

A representação da personalidade de Belinha e de Lalá pode acarretar uma aproximação com um conhecimento de crença que associa atitudes a gêneros. O fato de Belinha levar Luan ao parquinho, jogar futebol com ele, brincar de dar cambalhotas antes de dormir pode vinculá-la ao universo convencionalmente masculino, conferido ao pai. E o fato de Lalá contar histórias, brincar de jogos e de fantoches, cozinhar pode relacioná-la ao domínio tradicionalmente considerado feminino, atribuído à mãe. Essa parece ser uma atitude conciliadora, cujo objetivo parece ser o preenchimento da possível falta de representações masculinas. Essas conexões também estão sugeridas na parte visual de uma cena que mostra o interior da casa para contrapor o modo diferente de ser das duas mulheres.

Figura 40: “Amor de mãe” (CARVALHO, 2017, p. 28 - 29)

Belinha e Lalá parecem revezar-se para cuidar do menino, por isso, a casa pode estar mais organizada em um dia e em outro, menos. De modo subjetivo, o leitor pode inferir que a mamãe Lalá é organizada, mas a mamãe Belinha não é, que são características estereotipadas que distinguem o cuidado doméstico do homem e da mulher. Por outro lado, objetivamente, se pode perceber que Luan e suas mães adotivas não pertencem a uma classe social desfavorecida.

5.2.6 AS VISADAS DISCURSIVAS E AS PROPOSTAS DE INTERLOCUÇÃO DA