• Nenhum resultado encontrado

5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

5.1.2. Seqüência operacional da “loiça da Pia”

5.1.2.2. Processamento do “barro de loiça” e composição da pasta

Uma vez coletado e transportado, o barro é depositado no terreno contíguo à residência de um “loiceiro”, formando um montículo sobre a superfície do solo, onde permanece coberto com uma lona plástica por tempo indeterminado (Figura 2d), até que seja destorroado (“quebrado”) e umedecido (“aguado”). O trabalho de “quebrar” o barro tem a vantagem de diminuir o tamanho das partículas, aumentando a superfície total exposta à água. A adição de água facilita a posterior homogeneização do barro, para que possa dar origem a uma pasta relativamente uniforme. Usa-se para “quebrar” o barro a mesma “enxadinha” com a qual se coleta o barro, mas neste caso se emprega o lado oposto da lâmina metálica, de modo a desempenhar com ela a função equivalente à de um pequeno martelo. Barros coletados em diferentes pontos da Pia podem ser mesclados (“cachimbados”) nessa ocasião. A simples observação da superfície de cada torrão, antes de quebrá-lo, permite ao “loiceiro” identificar e dizer a origem do barro, baseado em diferenças nas cores externas dos torrões. Cada residência onde se faz “loiça” possui uma pequena depressão circular (“barroca”) no chão batido, dentro da qual se deposita o barro quebrado e logo adiciona-se água. Esse material permanece aí coberto com lona plástica por cerca de 24 horas (Figura 11a,b,c,d).

Imediatamente antes de dar-se início à modelagem dos vasos, o barro é homogeneizado (“amassado”), de modo a uniformizar a pasta e, simultaneamente, retirar as partículas maiores (“pedras”), que poderiam prejudicar a modelagem e a queima dos vasos (Figura 12a,b). A prática de peneirar o barro não é usada na Pia, embora seja prática comum em outros locais onde se produz cerâmica artesanal no Nordeste (OLIVEIRA, 1998; CALHEIROS, 2000). Durante a homogeneização da pasta, adiciona-se “areia”, eventualmente, e a modelagem pode ser iniciada logo em seguida. O próprio “loiceiro” executa esse trabalho de processamento do barro (quebrar, misturar barros diferentes, amassar, tirar as pedras e adicionar “areia”), mas pode contar também com ajuda de familiares. Essas tarefas preliminares raramente são executadas por homens adultos, a não ser por dois homens “loiceiros” ativos.

De modo geral, os anti-plásticos são usados visando a controlar diversos fatores relacionados à qualidade da pasta e dos vasos cerâmicos, como explicou RYE (1976). Podem servir para ajustar a “trabalhabilidade” (em inglês, “workability”) da pasta, de modo que esta

tenha um mínimo de plasticidade, mas não seja excessivamente pegajosa. Também têm efeitos sobre a capacidade dos vasos de resistir à excessiva contração e conseqüentes rachaduras e quebras durante os períodos de secagem (antes e depois da cocção). Influem ainda sobre a resistência dos vasos a ciclos rápidos de aquecimento e esfriamento, durante a cocção. Finalmente, afetam a capacidade de um vaso para servir ao objetivo para o qual foi confeccionado (armazenamento de água, cocção de alimentos, entre outros).

Na literatura sobre cerâmica, os anti-plásticos são também denominados “desengordurantes” ou “temperos” (CHMYZ, 1976; RIBEIRO, 1988). RYE (1976) explicou que o termo “temperar” (em inglês “tempering”) como se usa na literatura arqueológica, refere-se à introdução de aditivos (incluindo outros barros) ao barro, com o objetivo de produzir vasos cerâmicos. ARNOLD (1971) mostrou que nem todos os aditivos usados pelos ceramistas atuam como anti-plástico e propôs que o termo “tempero” (em inglês “temper”) fosse usado de modo mais amplo, significando qualquer material adicionado pelos ceramistas à pasta, com capacidade de alterar a capacidade da mesma em ser trabalhada. Por vezes, o anti-plástico ocorre como um componente natural no barro coletado por ceramistas, de modo que não é necessário introduzir aditivos (RIBEIRO, 1988).

A julgar pelos depoimentos dados por “loiceiros” na Pia, é possível relacionar a adição do anti-plástico às características do vaso a ser fabricado, principalmente à largura das paredes da peça. Desta forma, a confecção de peças com paredes mais espessas, como o são a “jarra” (usada para armazenamento de água) e o “fogareiro” (usado como receptáculo de carvão vegetal incandescente, durante a cocção de alimentos em panelas), exige mais freqüentemente a aplicação de anti-plástico, seja “areia” ou algum barro de textura mais grossa (“barro aspo”). Já as peças de parede mais fina, como as panelas (para cocção de alimentos), não costumam exigir esses aditivos. As explicações dadas por “loiceiros” indicam que o uso de material mais grosso visa impedir que os vasos de paredes mais grossas sofram rachaduras ou quebras durante a secagem e cocção. Alguns deles também citaram o uso de “areia” como forma de diminuir a pegajosidade, facilitando a modelagem da pasta.

Todas as 16 amostras de pasta foram incluídas na classe textural argila, tanto morfologicamente como granulometricamente. Quanto à consistência, todas elas apresentaram-se muito plásticas, e a maioria (13 entre 16) foi muito pegajosa. A cor foi variável, mas 13 das amostras enquadraram-se como bruno, em amostra úmida amassada (Tabelas 2 e 3).

Os anti-plásticos foram incluídos na classe textural areia, de modo que a denominação eticista coincide com a emicista para esse material. A consistência, em todos

esses casos, foi não plástica e não pegajosa, enquanto a cor ficou majoritariamente entre bruno-amarelado e bruno-amarelado-claro, em amostra seca triturada (Tabelas 2 e 3). Deste modo, as análises granulométricas e morfológicas (eticistas) demonstraram semelhanças entre os “loiceiros”, quanto à escolha dos anti-plásticos e quanto aos resultados da manipulação de materiais de solo efetuada por eles, apesar de não usarem, necessariamente, “barro de loiça” das mesmas fontes e de variarem quanto à adição de “areia”. Futuramente, pode-se fazer uma comparação entre as pastas elaboradas na Pia e aquelas eventualmente preparadas em outras comunidades produtoras de cerâmica artesanal no Brasil. Estudando ceramistas africanos, GOSSELAIN (2001) sugeriu a hipótese de que os estilos de produção de cerâmica em diferentes comunidades podem revelar conexões históricas e culturais entre elas.

Tabela 2. Resultados de análise granulométrica de pasta (“barro amassado”) e anti-plástico (“areia”) usados na confecção da “loiça de barro” na Chã da Pia.

argila silte areia areia grossa areia fina --- g/kg --- No de ordem Material <0,002 mm 0,002-0,050 mm 0,050-2,000 mm 0,200-2,000 mm 0,050-0,200 mm classe textural 1 pasta 444 132 424 215 209 argila 2 pasta 499 107 394 188 206 argila 3 pasta 508 106 386 162 224 argila 4 pasta 501 121 378 164 214 argila 5 pasta 504 122 374 160 214 argila 6 pasta 481 127 392 183 209 argila 7 pasta 508 127 365 167 198 argila 8 pasta 428 133 439 144 295 argila 9 pasta 517 109 374 153 221 argila 10 pasta 516 136 348 162 186 argila 11 pasta 546 90 364 154 210 argila 12 pasta 512 81 407 192 215 argila 13 pasta 480 106 413 191 222 argila 14 pasta 430 165 405 164 241 argila 15 pasta 440 168 393 151 241 argila 16 pasta 430 170 400 171 229 argila 1 ant. (1) 0 39 961 410 551 Areia 2 ant. 13 40 947 471 476 Areia 3 ant. 48 36 916 420 496 Areia 4 ant. 6 77 917 263 654 Areia 5 ant. 6 36 958 424 534 Areia (1) ant. = anti-plástico

Tabela 3. Resultados de análise morfológica de pasta (“barro amassado”) e anti-plástico (“areia”) usados na confecção da “loiça de barro” na Chã da Pia.

No de ordem Material Textura Pegajosidade Plasticidade Cor (u.a.) (1) Cor (s.t.) (1)

1 pasta argila Pegajosa muito plástica 10YR 5/3 ---

2 pasta argila muito pegajosa muito plástica 10YR 5/3 ---

3 pasta argila muito pegajosa muito plástica 10YR 5/3 ---

4 pasta argila muito pegajosa muito plástica 7,5YR 4/3 ---

5 pasta argila muito pegajosa muito plástica 7,5YR 4/3 ---

6 pasta argila muito pegajosa muito plástica 10YR 5/3 ---

7 pasta argila muito pegajosa muito plástica 10YR 5/3 ---

8 pasta argila muito pegajosa muito plástica 10YR 4/2 ---

9 pasta argila muito pegajosa muito plástica 7,5YR 4/3 ---

10 pasta argila muito pegajosa muito plástica 10YR 5/3 ---

11 pasta argila muito pegajosa muito plástica 10YR 4/2 ---

12 pasta argila muito pegajosa muito plástica 10YR 5/3 ---

13 pasta argila muito pegajosa muito plástica 10YR 4/2 ---

14 pasta argila Pegajosa muito plástica 10YR 5/4 ---

15 pasta argila muito pegajosa muito plástica 10YR 4/3 ---

16 pasta argila pegajosa muito plástica 10YR 5/3 ---

1 ant.(2) areia não pegajosa não plástica 10YR 5/4 10YR 6/4

2 ant. areia não pegajosa não plástica 7,5YR 4/4 7,5YR 5/4

3 ant. areia não pegajosa não plástica 7,5YR 4/4 7,5YR 6/4

4 ant. --- não pegajosa não plástica 10YR 3/3 10YR 5/4

5 ant. --- não pegajosa não plástica 10YR 4,5/ 4 10YR 6/4

(1)

Cor determinada em amostra úmida amassada (u.a) e seca triturada (s.t.) (2)

ant. = anti-plástico

GOSSELAIN (1994) relatou alguns testes em laboratório, avaliando a possível interferência do anti-plástico sobre o preparo da pasta. Naquelas condições, um barro muito plástico exigiu a adição de areia, enquanto os barros menos plásticos tiveram que ser peneirados para atingir o mesmo nível de “trabalhabilidade”. O mesmo autor realizou um experimento de campo com artesãos camaroneses, que consistiu em intercambiar os barros escolhidos por diferentes ceramistas. Segundo relato do autor, cada vez que se apresentava aos ceramistas um barro alternativo, eles reagiam negativamente, afirmando ser material inadequado por diversas razões (muito grosso, muito fino, impossível de modelar, impossível de queimar), e mesmo assim, cada artesão conseguiu modelar, secar e queimar o vaso, conforme solicitado. O autor concluiu que, entre os ceramistas estudados, as noções de “barro grosso” e “barro fino” não eram consensuais, nem refletiam restrições técnicas, sendo antes afetadas pelas preferências individuais de cada ceramista.