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5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

5.1.4. Uma cerâmica artesanal e camponesa brasileira

Quaisquer que sejam as heranças culturais contidas na “loiça da Pia”, pode-se dizer, num esforço de caracterização eticista, que se trata de uma cerâmica artesanal camponesa. É artesanal por que depende mais de habilidade manual e individual do que de aparatos mecânicos e administrativos complexos. Uma conceituação de artesanato proposta pelo Ministério do Trabalho foi aceita por D’ÁVILA (1983): “atividade predominantemente manual de produção de um bem que requer criatividade e/ou habilidade pessoal, podendo ser utilizada ferramenta e máquina”. Neste sentido, BORBA FILHO & RODRIGUES (1969) explicaram que “a atividade artesanal é aquela que é executada por indivíduos, ora com a ajuda de familiares, visando a produção de bens ou serviços necessários às comunidades e na qual o esforço individual não é suplantado pelo da máquina”.

A atribuição do caráter camponês à “loiça da Pia” se justifica por ser uma atividade desempenhada no seio de uma comunidade agrícola, onde se produz alimentos para o auto-consumo, com mão-de-obra familiar. As características principais da economia camponesa, conforme apresentadas por TOLEDO (1990), são as seguintes:

(i) A unidade de produção é a família, que consome grande parte do que produz e produz grande parte do que consome. Predomina a produção para consumo e não para comercialização.

(ii) Predomina a produção baseada em mão de obra familiar com um mínimo de insumos externos. A energia provém mais de tração animal e humana que de combustíveis fósseis. (iii) A produção complementar de bens para comercialização não visa primariamente o lucro e sim a manutenção da família.

(iv) Ocupa pequenas extensões de terra, devido a questões tecnológicas, ou ainda pelo fato de as terras serem escassas ou irregularmente distribuídas.

(v) A agricultura tende a ser a principal atividade, mas a subsistência camponesa é baseada em (e às vezes substituída por) uma combinação de práticas que pode incluir extrativismo vegetal, criação de animais, artesanato, caça, pesca e até o trabalho externo, sendo este em regime de tempo parcial ou sazonal. A combinação de todas essas práticas pode proteger as unidades de produção camponesa contra as flutuações do mercado e do ambiente bio-físico. A expressão “camponês” foi introduzida no Brasil no século passado. ANDRADE (2000) esclareceu o seu emprego no Nordeste:

“O termo camponês, geralmente usado na Europa e Oriente para indicar a grande comunidade de habitantes do campo que se dedica à exploração agrícola, visando precipuamente ao auto-abastecimento, não era usado no Brasil para indicar os nossos trabalhadores rurais, até os meados do século XX, quando estes se organizaram em associações e passaram a reivindicar seus direitos frente aos grandes e médios proprietários. A partir de então, as correntes políticas de esquerda que apoiavam esses movimentos passaram a chamar, de forma generalizada, os trabalhadores rurais de camponeses, daí o nome das chamadas ligas camponesas, popularizando esta denominação. [....] Em linhas gerais, pode-se admitir que o termo camponês no Nordeste do Brasil tem duas acepções: uma mais geral, ‘lato sensu’, englobando todos os que vivem e trabalham no campo, e outra em sentido restrito, compreendendo apenas aqueles que não foram ainda inteiramente expropriados dos meios de produção”.

Os “loiceiros” pesquisados podem ser classificados como camponeses tanto em sentido amplo (habitantes da zona rural) como restrito (produtores de alimentos em agricultura familiar de pequena escala). Segundo TOLEDO (1990), a maior parte das chamadas “populações tradicionais” é constituída de camponeses e essa predominância tende a aumentar na medida em que muitas populações tribais se tornam camponesas. Isso acontece inclusive na área estudada, pois segundo PESSOA (1990), a “forma de produção camponesa” está disseminada em toda a zona semi-árida do Nordeste, mas ela se apresenta mais maciçamente concentrada em alguns focos, destacando-se entre eles “as regiões de microclima de altitude, especialmente as serras do Norte do Ceará, a Serra de Martins (RN), o Brejo da Paraíba, a Serra do Teixeira (PB) e a Serra do Triunfo (PE).”

Sendo camponesa e artesanal, a “loiça Pia” é duplamente marginal, quando se considera o domínio de mercado exercido pelas grandes empresas ligadas à produção de alimentos e de utensílios domésticos. Esse caráter marginal ou subalterno é reconhecido inclusive entre os “loiceiros”, pois alguns informantes citaram a expressão pejorativa “cu de barro”, que seria aplicada aos “loiceiros” por pessoas que não exercem essa atividade. Por vezes, algumas “loiceiras” interrompem seu trabalho de modelagem de modo abrupto, ao perceberem a aproximação de visitantes do meio urbano, sob a alegação de que se trata de trabalho inferior e sujo. Algumas também deixam de trabalhar na “loiça” definitivamente, ou por longos períodos de tempo (meses, anos), quando conseguem assegurar fonte de renda fixa (e.g. aposentadorias, pensões, serviços terceirizados nas escolas públicas locais e trabalhos domésticos nas cidades vizinhas), mesmo que estejam em plenas condições físicas de executar as tarefas de modelagem40. Grupos de ceramistas de outras regiões também se

40

Por vezes, a situação de pobreza dos “loiceiros” tem uma explicação religiosa, no discurso dos informantes, como foi observado numa história contada pelos mais velhos, segundo os quais a marginalidade sócio- econômica desses artesãos advém de um “castigo” divino, pelo suposto fato de que alguns “loiceiros” teriam fornecido as cordas com que os judeus teriam amarrado Jesus Cristo. Cordas são usadas para amarrar as “vasilhas”, durante o transporte por animais (“em lombo de burro”) na Pia.

consideram marginais, como em La Gomera, Canárias, onde CABRERA-GARCÍA (1996) registrou que o artesanato de barro era considerado um ofício “porco e sujo” (“puerco y sucio”), ao qual se dedicavam somente as pessoas mais necessitadas.

Há que se reconhecer, por outro lado, que o artesanato não apenas é uma das atividades comumente associadas à economia camponesa, mas é também desejável como forma de ocupar a mão de obra que estaria ociosa durante a entressafra agrícola (como é o caso da estação seca na Pia), caracterizando-se assim como uma estratégia que favorece a auto-sustentação das famílias (D’ÁVILA, 1983; JANVRY & HELFLAND, 1990).