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2.1 DA SECULARIZAÇÃO A PÓS-SECULARIZAÇÃO EM PORTUGAL

2.1.1 Processo de secularização em Portugal

Para compreender as configurações da República Portuguesa, no pós 25 de Abril de 1974, trataremos como ocorreu o processo histórico de secularização neste país. A primeira medida de afastamento do campo religioso do Estado Português ocorreu com a expulsão dos jesuítas do país lusitano, quase um século antes da Revolução Liberal, por Marquês do Pombal, atendendo ao Alvará de 28 de Julho e, posteriormente, a Lei de 03 de setembro de 1759. Nesta fase, as elites políticas intelectuais desenvolvem um sentimento de antijesuitismo, por efeito da Revolução Liberal (1820-1834), somado a um sentimento de anticongregacionismo que resultou “na extinção das ordens religiosas e na nacionalização dos bens das congregações”, em 28 de Maio de 1834 (CATROGA, 2010, p. 360).

Para Vilaça (2006), a revolução liberal de 1820 influencia o sentimento de anticlericalismo. Assim como, as correntes do pensamento da Revolução Francesa e do constitucionalismo inglês e americano, tanto no plano político quanto no jurídico inspiram a afirmação dos valores de liberdade, de igualdade e os princípios democráticos do modelo de governação e de representação parlamentar. A tutela da liberdade de consciência traz implicações à secularização do poder político e a laicização das instituições no cenário de liberdade religiosa. A abolição da Inquisição, ocorrida em 1821, acrescida à instauração da Constituição de 1822 marca a nova fase histórica e social da época (VILAÇA, 2006, p. 135).

Com a instauração da I República, em 05 de Outubro de 1910, inicia o novo regime de separação entre as Igrejas e o Estado. O período é assinalado por mudanças significativas, já que se estava ciente “de que o Estado poderia construir uma realidade

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Em “25 de Abril de 1974” dá-se o final da ditadura do Estado Novo (1933-1974). A instauração da Constituição Republicana, dois anos mais tarde, assegurou a consagração do Estado de direito democrático de Portugal (VILAÇA, 2006, p. 148).

nova”. Também, acreditava-se que “o problema religioso constituía a chave de todos os males da sociedade portuguesa.” (CATROGA, 2010, p. 364).

De outubro de 1910 a abril de 1911, ocorreram inúmeras transformações, tais como a renovação da expulsão das ordens religiosas; a extinção dos feriados religiosos e a introdução de outros feriados civis; a supressão do ensino religioso nas escolas; a lei do divórcio; a lei de Separação das Igrejas do Estado; o fechamento da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra e a abolição das orações e juramentos de lentes e estudantes nos atos acadêmicos, entre outras. Com a Constituição Republicana de 1911, todas estas questões foram legitimadas (CATROGA, 2010, p. 365; AZEVEDO, 2001, v.3, p. 63).

Na I República, o ambiente de confronto entre a Igreja e o Estado suavizou-se, a partir do ano de 1917, com as modificações instauradas pelo Presidente Sidónio Pais, como o restabelecimento da diplomacia do Estado com a Santa Sé e a reforma da lei de Separação (VILAÇA, 2006, p. 142-3; AZEVEDO, 2001, v.2, p. 105-6). Outro fenômeno que emerge em Portugal, neste período, é o renascimento da devoção popular mariana baseado na vivência da experiência de Fátima, em 1917.

As transformações advindas das primeiras décadas do século XX geraram a insatisfação dos meios católicos e conservadores, as quais culminaram com a crise da I República e o golpe militar de 28 de Maio de 1926. A ditadura estadonovista com o lema “Deus, Pátria e Família” traz o retorno dos crucifixos às escolas no ano de 1932 (CATROGA, 2010, p. 366-7). A nova Constituição de 1933 solidifica uma orientação ideológica, notadamente católica e Fátima passa a ser o símbolo da união do Estado Novo e da Igreja (VILAÇA, 2006, p. 143).

Apesar de a Constituição estadonovista manter intactos os ideais de liberdade religiosa e de consciência, estabelecidos pela Carta Magna de 1911, a revisão constitucional de 1935 incluiu a esta os “princípios e a moral cristã, tradicionais do País”, fato que trouxe como implicação o ensino público orientado à confissão católica. Alguns anos mais tarde, o governo estabelece com a Santa Sé a Concordata de 1940, que institui “a obrigatoriedade do Estado em financiar a presença da Igreja Católica em domínios como as escolas públicas, as forças armadas ou os asilos.” (VILAÇA, 2006, p.144).

Para Catroga (2010), a Constituição de 1933 nunca assumiu a sua confessionalidade de maneira explícita (CATROGA, 2010, p. 367). Contudo, o primeiro período do Estado Novo traduz-se por uma adesão generalizada do catolicismo

português a Salazar e, após a II Grande Guerra, assinalou-se “um distanciamento de muitos Católicos em relação ao regime [...].” (VILAÇA, 2006, p. 146-7).

O desenvolvimento econômico e urbano, da segunda metade da década de 1950, alinhado às ideias, aos valores e às expectativas modernas afetaram tanto a sociedade quanto o interior da própria Igreja Católica. Todavia, o elemento-chave de todas as mudanças foi o Concílio Vaticano II, o qual desencadeou as reformas tanto do ponto de vista litúrgico e cultural quanto organizacional interno, como na abertura a outras confissões, por meio de um diálogo ecumênico que se confrontou com a estrutura tradicional da Igreja Católica em Portugal. No princípio da década de 1960, o país lusitano enfrentava ainda o crescimento da contestação social e o problema da guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné (CATROGA, 2010, p. 367-8).

O regime ditatorial estadonovista acaba por meio da Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974 e, por intermédio dessa instaura-se a República Portuguesa, um Estado de direito democrático. A aprovação da nova Constituição ocorreria dois anos após, todavia, não indicou de forma explícita sua não confessionalidade, ao contrário da francesa (CATROGA, 2010, p. 369).

A Lei da Liberdade Religiosa (Lei nº 16/2001)11, promulgada somente em 2001, estabeleceu ao Estado português a não adoção oficial de religiões, apesar de a Igreja Católica possuir privilégios justificados pelo costume. Tais vantagens foram amparadas pela nova Concordata de 200412 e garantiram a assistência espiritual católica nas Forças Armadas, hospitais e estabelecimentos prisionais e similares, bem como o ensino da religião e moral católicas nos estabelecimentos de ensino público, não superior; reforçando, assim, os incentivos dentro do “mercado religioso.” (CATROGA, 2010, p. 370).

Desse modo, ao comparar o contexto português atual com o modelo da III República na França com o que vigorou na I República em Portugal, Catroga (2010) conclui que o Estado lusitano está distante da laicidade presente naquelas experiências. Portanto, para ele, Portugal deve ser tipificado na época atual, tal como Itália e Espanha, como uma “quase laicidade.” (CATROGA, 2010, p. 370).

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Texto completo do Diário da República de 22 de junho de 2001. Disponível em: https://dre.pt/pesquisa/-/search/362699/details/maximized

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Texto completo da Concordata de 18 de Maio de 2004. Disponível em:

Por outro lado, com a Lei de Liberdade Religiosa de 2001, iniciam-se mudanças no cenário religioso português, por meio da atuação de atores sociais envolvidos no campo político e religioso. Dentre tais transformações, devem ser ressaltadas:

[...] as liberdades de expressão e manifestação facultadas, desde 1974, pelo quadro democrático; [...] a pulverização dos grupos religiosos e a visibilidade das confissões antigas, fenómeno que originará novos protagonistas e concorrência no mercado de bens religiosos; a integração de Portugal na União Europeia e respectivo acompanhamento, por parte dos dirigentes políticos, da discussão que, àquela escala, se faz do fenómeno religioso actual; a necessidade de revisão da Concordata com a Igreja Católica nas matérias que foram entendidas como inadequadas ao momento presente. (VILAÇA, 2006, p. 152).

Sendo assim, de um contexto de inexistência de pluralismo de credos, ao longo dos séculos, o período após 25 de Abril proporcionou um impulso à proliferação de Novos Movimentos Religiosos (NMRs) e o surgimento de debates sobre o pluralismo e a tolerância. A partir da democratização tardia e da independência das colônias portuguesas Angola, Moçambique e Guiné, o país começa a mudar o seu panorama religioso (VILAÇA, 2006, p. 152-8).

Em suma, as relações entre a Igreja e o Estado passaram por diversas fases, desde o início da República até os dias de hoje. Na primeira década subsequente à instauração da República Portuguesa, em 1910, experimentou-se um regime de separação laicista. Logo após, intercorreu uma fase de separação/cumplicidade, durante a ditadura do Estado Novo, sobretudo, até meados dos anos cinquenta. Por fim, desde os anos 1974 até os dias atuais, prevalece o regime de “separação laica (não necessariamente absoluta como sugeriu Hasquin)13, mais apropriado aos regimes democráticos e pluralistas.” (VILAÇA, 2006, p.151).

É neste contexto político atual que me proponho a discutir acerca de um dos maiores desafios das democracias nas modernidades múltiplas, ou seja, avaliar e refletir sobre as condições de existência do pluralismo religioso e axiológico14 nas sociedades contemporâneas. Para a socióloga portuguesa Helena Vilaça: “O pluralismo é ainda uma cidade a construir, mas sem uma torre única: uma cidade gizada por espaços de matizes

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Sobre as distinções entre as relações dos Estados e Igrejas na Europa de Hervé Hasquin, consultar, Hervé Hasquin (1994).

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Sobre a argumentação de que a ideia de pós-secular é uma das melhores formas de ensejar o pluralismo religioso e axiológico, ver Raquel Weiss (2017).

e de contrastes. Sem torres, sem muros, um espaço de descobertas e de encontros de Terras Prometidas.” (VILAÇA, 2006, p. 267).

Para se refletir acerca do papel do Estado de direito democrático e do Catolicismo enquanto fontes de valores que contribuem para Portugal tornar-se uma sociedade com características pós-seculares, mostrarei trechos de entrevistas realizadas com pessoas que atuam no âmbito da esfera religiosa e no terreno da esfera secular portuguesa. A exposição de tais pontos de vista será importante e suscitará uma reflexão da memória coletiva por efeito da Revolução de 25 e Abril de 1974 que proporcionou o término da ditadura e a instauração de regime laico democrático.