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No capítulo 2 desta tese procuro demonstrar como Portugal atinge o processo de secularidade (pós 25 de abril de 1974) e, com ele, iniciam-se uma série de mudanças sociais e éticas, assim como começa a se alterar o cenário religioso do país. Em conversas com diferentes atores sociais (acadêmicos, clérigos, ateu) constatou-se que a o Estado democrático português apresenta um Catolicismo “aberto”, com proposições menos conservadoras, que interage com a secularização e com os princípios do pluralismo, de forma a não interferir em questões éticas e cívicas, podendo até mesmo influenciar através do discurso do amor e da igualdade as questões da aprovação das leis do casamento de pessoas do mesmo sexo, da adoção de crianças e jovens por estes casais e da despenalização do aborto. Demostro com os indicadores sociais elaborados para esta tese que as crenças religiosas continuam a influenciar na vida dos portugueses. Outro indicador reconhece a coexistência do pensamento religioso e de outras visões não religiosas nas esferas da vida. Por fim, busco um olhar investigativo para a possibilidade de ver nas ações voltadas para os direitos humanos das mulheres e outras minorias sociais, potenciais novas formas modernas do sagrado. E, mais ainda, demonstro como importantes teóricas do feminismo postsecular veem o afeto e a ética como uma condição que aproxima a religião do feminismo.

Com intuito realizar simultaneamente um estudo etnológico (descritivo e interpretativo) e sociológico, apresento, a seguir, como as comunidades de fiéis católicos, investigados neste estudo, renovam a intervalos regulares, por meio da prática ritual, os sentimentos e os ideais coletivos que constituem a unidade e a personalidade de tais grupos (DURKHEIM, 2009, p. 474).

O pensamento de Joas (2012) sobre a reinvenção das tradições é acionado, para mostrar um movimento no interior do catolicismo popular português, qual seja, a adaptação das práticas da tradição às dinâmicas sociais contemporâneas, com destaque

para o surgimento da presença de mulheres em papéis ocupados majoritariamente por homens. No entanto, antes de propriamente abordar essas celebrações faremos breves considerações acerca do sagrado, do tempo e do espaço da cristandade e de algumas teorias sobre o Catolicismo.

3 CATOLICISMO DE CARIZ POPULAR: FENÔMENO RELIGIOSO E MORAL

As configurações do catolicismo popular no que tange a importância deste fenômeno na atualidade são analisadas neste capítulo, não apenas por razões funcionais, mas também por valores que ela mobiliza para as comunidades de praticantes. No tocante às ideias de Habermas (2007, p. 49), o Estado de direito democrático ao utilizar de todas as fontes culturais (religiosas e não religiosas) de maneira moderada está exercendo “a consciência normativa e a solidariedade dos cidadãos.”

Para ajudar a compreender o fenômeno religioso e sua relação com os fatos morais faço referência a Durkheim (2009), principalmente, em As Formas Elementares da Vida Religiosa. Nessa obra, o sociólogo propõe afastar-se de todas as pré-noções acerca da vida religiosa, que se constituíram sem método, e centrar-se nas características mais elementares de quaisquer sistemas religiosos: as crenças e os ritos. As crenças têm o poder de classificar as coisas reais ou as ideias em categorias opostas, como o sagrado e o profano, enquanto os ritos são as instâncias primordiais de produção do próprio sagrado (DURKHEIM, 2009).

Nesse sentido, a noção de sagrado mostra-se central na definição de religião. Segundo Durkheim, “uma religião é um sistema solidário de crenças e práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem em uma mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem.” (DURKHEIM, 2009, p. 32).

Nessa definição de religião, o sagrado possui não só uma relação com a dimensão religiosa, mas também com a dimensão moral, uma vez que as pessoas que se reúnem nestas comunidades morais, compartilham as mesmas crenças e práticas relativas ao sagrado, mais ainda, possuem vínculos dotados de sentimentos comuns. Hervieu-Léger (2009), no capítulo dedicado a Durkheim explica a existência de um “sagrado de comunhão”, que, segundo o sociólogo, “resulta da fusão das consciências na reunião comunitária”. Para Danièle Hervieu-Léger, Durkheim concebe a existência de um sentimento afetivo de “nós” que une os membros de tais reuniões mediante um “espírito comum”, o qual se mostra indispensável para a vida em sociedade (HERVIEU-LÉRGER, 2009, p. 209).

Berger (2011), expressa que a definição mais ousada de religião, segundo sua funcionalidade social, é a de Luckmann (1977). Para Berger, embora Thomas

Luckmann utilize-se da tradição durkheimiana, ele amplia a noção de religião recorrendo a considerações antropológicas que ultrapassam as concepções de Durkheim:

[...] a essência da concepção luckmanniana da religião é a capacidade de o organismo humano transcender sua natureza biológica através da construção de universos de significados objetivos, que obrigam moralmente e que tudo abarcam. Consequentemente, a religião torna-se não apenas o fenômeno social (como em Durkheim), mas, na verdade, o fenômeno antropológico por excelência. Especificamente, a religião é equiparada com autotranscedência simbólica. Assim, qualquer coisa genuinamente humana é ipso facto religiosa e os únicos fenômenos não religiosos na esfera humana são os baseados na natureza animal do homem, ou mais precisamente, aquela parte de sua constituição biológica que ele tem em comum com os outros animais. (BERGER, 2011, p. 183).

No entanto, apesar de Berger compartilhar dos pressupostos luckmannianos acima expostos, opõe-se à definição que iguala qualquer coisa genuinamente humana à religião. Ele sustenta ser mais útil buscar, desde o princípio, uma definição mais explícita de religião, tratando das “questões de suas raízes antropológicas e de sua funcionalidade social como assuntos separados.” (BERGER, 2011, p. 184).

Berger (2011) opta por uma definição axiomática de religião já no primeiro capítulo, “em termos de uma postulação de um cosmos sagrado”. A religião se estabelece para manter uma ordem sagrada de abrangência universal, ou seja, “de um cosmos sagrado que será capaz de se manter na eterna presença do caos”. Para Berger, o mundo da ordem sagrada é uma produção humana, que constantemente defronta-se com as forças desordenantes da existência humana, por exemplo, quando o homem se encontra com a presença da morte (BERGER, 2011, p. 64).

Para Durkheim há dois polos da vivência religiosa que correspondem a dois estados pelos quais passa a vida social: o sagrado fasto e o sagrado nefasto. Ambos contrastam entre o estado de euforia e de disforia coletiva, cujos sentimentos oscilam da extrema alegria ao excessivo abatimento. Desse modo, nos dois casos, realiza-se a “comunhão das consciências e o reconforto mútuo”, que provêm desta comunhão (DURKHEIM, 2009, p. 454).

Quando as sociedades passam por estados de tristeza, de angústia ou de irritabilidade coletivas, como nos casos de catástrofes climáticas, por exemplo, que geram perdas humanas e não humanas há uma disposição ao compartilhamento de sentimentos. Nas ocasiões dos velórios coletivos ou das marchas pela visibilidade dos desastres ambientais, estará, pois, restituindo-se a moral e a energia coletivas, cada vez

que o grupo se posicionar perante acontecimentos que ameaçam as suas condições de existência. Portanto, justamente nesses estados, podemos compreender a categoria do sagrado nefasto.

Neste capítulo vemos que as práticas do catolicismo popular passam por momentos de euforia e de disforia, uma vez que os ritos religiosos são praticados em circunstâncias diferentes, por isso, variam os sentimentos envolvidos nessas situações. Nessa conformidade, todos têm o caráter de agir sobre as consciências coletivas e exercer o reestabelecimento do grupo por um estímulo das forças morais (DURKHEIM, 2009, p. 409). Agora, faremos uma breve ponderação acerca das expressões populares da vivência do sagrado mediante as categorias tempo e espaço, no que concernem às práticas rituais aos santos católicos.