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CAPÍTULO 1 TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

1.4 Processos de formação das representações sociais

Uma vez tendo sido gerada através da comunicação cotidiana, as representações sociais estão presentes nas narrativas que fornecem uma versão da realidade. A linguagem permite ver e representar enunciados que circulam se tornam ativos, e certas palavras-chave, cujo sentido é definido a partir do contexto (histórico, ideológico e linguístico) do seu uso social, tornam-se aceitáveis em função do momento e do lugar de sua emissão (JODELET, 2001). Adquirem, consequentemente, o poder de produzir acontecimentos. É o que acontece com as variações nos termos que nomeiam os indivíduos com deficiência intelectual ao longo do percurso histórico.

Esse processo de nomear e materializar a pessoa com deficiência tem como princípio a familiarização do que é desconhecido pelo grupo. Situações, pessoas ou leis jurídicas, por exemplo, não familiares, que interferem no cotidiano do grupo e de algum modo nas relações, precisam tornar-se familiares. Para que isso aconteça, instaura-se um movimento no sentido de codificar, analisar e assimilar o novo em relação aos dados anteriormente conhecidos.

O novo, no nosso estudo, é por assim dizer o estrangeiro, o imigrante, o marginal. O deficiente é o outro portador de uma marca ou de característica identitária que pensamos ser particular, contudo, esse outro nunca será o mesmo, mas a nossa obsessão muda de outro, inventa, fabrica e traduz o outro, sempre outro, a cada dia. Fazemos uma reinvenção do outro que é sempre apontado como a origem do problema, como a coisa a tolerar e para nos sentirmos mais confiáveis e mais seguros no lado dos bons, no lado do normal, no lado da normalidade (SKLIAR, 2003). Deste modo, constrói-se uma representação social, numa tentativa de tornar familiar, de traduzir e reinventar o outro que de alguma forma perturba.

A familiaridade vai se constituindo a partir dos elementos dados pelo grupo Ela não necessariamente será semelhante à forma original desses fatos não familiares, tampouco serão semelhantes à familiaridade construída em outros grupos. É uma familiarização singular, associada a elementos próprios de um grupo.

A escolarização de alunos com deficiência no segmento de ensino médio, por exemplo, constitui-se no desconhecido, no não familiar que ao mesmo tempo que atrai, perturba tanto as pessoas quanto o seu grupo, fato que mexe com as referências habituais de

compreensão da realidade, tornando mais urgente a necessidade de transformar o não familiar em familiar (MOSCOVICI, 1978).

Nesse processo de construção das representações sociais, os professores são parciais, não se pautam em uma decisão neutra. Dessa forma, as classificações vão sempre ter uma conotação positiva ou negativa e uma posição numa ordem hierárquica. Os fatos novos serão comparados e classificados como melhores ou piores àqueles anteriormente conhecidos, e também classificados de modo positivo ou não, revelando, mais uma vez, o caráter relacional do processo de construção das representações sociais (MOSCOVICI, 1978).

O processo de transformação do novo/estranho em familiar se dá sem que haja a intenção de abandonar totalmente o familiar, mas assimilá-lo, reconstruí-lo dialeticamente, porque a questão que se coloca para a teoria é: “as representações não só familiarizam o desconhecido, mas, por vezes, ao fazê-lo, também permitem o estranhamento do familiar” (ARRUDA, 1998, p. 37).

Nessa transição em busca de transformar o não familiar em familiar, dois processos se destacam: a objetivação e a ancoragem.

Esses processos constituem-se em duas faces ligadas uma a outra como os dois lados de uma folha de papel: face figurativa e face simbólica. Entende-se daí que a cada figura corresponde a um sentido, e a cada sentido uma figura (MOSCOVICI, 1978).

Esses processos têm a função de duplicar um sentido por uma figura, e portanto objetivar, e uma figura por um sentido e, assim, consolidar os elementos que entram na composição de determinada representação (ALVES-MAZZOTTI, 2002).

A objetivação é a passagem de conceitos ou ideias para esquemas ou imagens concretas que se transformam em supostos reflexos do real, e a ancoragem se caracteriza pela formação de uma rede de significações em torno do objeto, associando-o a valores e práticas sociais (MOSCOVICI, 1978).

Trazendo o conceito da objetivação para o enquadre da nossa pesquisa, refletimos sobre a necessidade que as pessoas sempre tiveram de dar corpo ao pensamento e às ideias relativas às pessoas com deficiência ao longo da história. A abstração própria da incompreensão em relação a como lidar com aquele que é diferente da norma padrão fez com que se buscasse materializar, por meio da objetivação, o indivíduo diferente. Nessa tentativa de materializar a palavra que nomeia a pessoa com deficiência, várias imagens se sucedem –

desde a imagem de alguém que é sub-humano, ou seja, que depõe contra as características do ser humano, até a imagem que os configuram como pessoas doentes.

Já a ancoragem é um processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada (MOSCOVICI, 2007).

Em outras palavras, estamos dizendo que aquilo que é estranho, porque não foi classificado, nomeado, gera uma resistência e um distanciamento. Providenciamos, então, o processo de ancoragem, segundo o qual classificamos, damos um nome a alguma coisa, o que significa escolher um dos paradigmas estocados na memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa, a partir de características que são mais representativas desse protótipo e que limitamos a um conjunto de comportamento e regras que estipulam o que é ou não é permitido.

Refletimos, em relação à representação do professor sobre a escolarização do aluno com deficiência intelectual, se os paradigmas guardados em suas memórias podem ir se modificando em favor de uma prática inclusiva real, na medida em que têm uma experiência refletida advinda do conhecimento da prática em relação com o conhecimento teórico. Isso porque o ato de classificar não é neutro e requer necessariamente uma avaliação do objeto. Nesse sentido, a ancoragem implica atribuição de sentidos a partir de conhecimentos e valores preexistentes na cultura e possibilita a tradução e compreensão do mundo social: o novo logo se torna familiar e transforma o conhecimento adquirido anteriormente (SANTOS, 2005). Salientamos aqui que o processo de ancoragem nas representações sociais de professores com e sem formação pode ser diferente, à proporção que o conhecimento advindo de uma formação refletida, enquanto ponto de apoio para classificação do novo, pode fazer diferença.