• Nenhum resultado encontrado

3.2 Situação da Produção de Leite

3.2.2 Produção de Leite no Brasil

É improvável que qualquer trabalho, produzido nos últimos anos, que aborde a problemática do leite no Brasil, não se aproprie da dialética acerca dos acontecimentos ocorridos na década de 1990, responsáveis por bruscas transformações para o sistema agroindustrial do leite e pela construção de um cenário absolutamente novo para os integrantes desta cadeia, impondo regras severas, principalmente quando se admite a inércia vivida, até então, pelo setor.

A política para o setor lácteo, praticada até aquele momento, era fundamentada no tabelamento de preços, importações em caráter exclusivo de regulação do abastecimento, e estocagem do excedente da oferta financiada a taxas de juros privilegiadas. Assim, observou- se um retardamento na modernização da indústria de laticínios e, conseqüentemente, da pecuária leiteira, devido ao controle de preços, que se reverteu na produção de matéria-prima de baixa qualidade, altos custos para a indústria de processamento, escassas opções de produção e perda do foco da indústria, que se empenhava em reivindicar aumentos de preços ao invés de buscar o aumento da eficiência.

O cenário na época era, ainda segundo Primo (1999), de sindicatos fracos e baixos salários; subsídio ao uso de capital, estimulando a substituição do trabalho, linhas especiais de crédito a longo prazo, como o FINAME, tratamento tributário diferenciado para cooperativas, inexistência de controles sobre monopólios, mercado consumidor pouco exigente e sem proteção, inexistência de legislação ambiental, estreito relacionamento com os escalões decisórios do governo e, por fim, aprovação da população aos incentivos fiscais sem a percepção de que financiava tais benefícios.

Gomes, S. (1999) aponta a liberação do preço do leite em 1991 após mais de 40 anos de tabelamento, assim como a maior abertura da economia brasileira ao mercado internacional, implementação do Mercosul e a estabilidade macroeconômica brasileira com o Plano Real como determinantes dessas transformações. Segundo Primo (1999), os “incentivos” foram eliminados, o consumidor apresenta mudança no seu padrão quantitativo e qualitativo pelo crescimento da renda real, os incentivos fiscais foram substituídos por uma carga tributária mais onerosa aos custos de produção, o crédito foi restringido e as portas comerciais do País foram abertas às importações, abolindo o mercado protegido.

Porém, para Brandão (1999), a escala da transformação iniciada nos anos noventa ainda é insuficiente para se mostrar de forma clara nos dados agregados, ficando mais fácil ser

percebida a partir da análise de determinados períodos, tendo-se em vista que estes refletem uma série de episódios políticos, econômicos e institucionais.

Segundo Yamaguchi, Martins e Carneiro (2001), no período de 1970 a 1999, a taxa anual de crescimento da produção de leite foi de 3,8%, sendo que o crescimento do número de vacas ordenhadas foi responsável por 2,4%, enquanto o aumento da produtividade representou 1,4%, o que levou o País a atingir a marca de 1000 litros/vaca/ano somente em 1996 (FIGURA 2). 0 200 400 600 800 1000 1200 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 00 01 Ano L it ro s/ vaca/ an o FONTE: IBGE (2004)

FIGURA 2 – Produtividade do rebanho leiteiro brasileiro, 1991 a 2001.

Brandão (1999) ressalta que os valores das importações observados em 1995, 1996 e 1997 no Brasil foram significativamente elevados em relação aos anos anteriores. Isso teve, segundo Gomes (2001b), grande influência no mercado doméstico, em especial no preço recebido pelo produtor brasileiro, não devido à quantidade importada, mas ao preço dos importados.

No período de 1980 a 1989, a produção cresceu 26,2% a uma taxa média anual de 2,64%, enquanto nos períodos de 1990/99 e 2000/03, a variação da produção alcançou 31,66% e 12,6%, e as taxas anuais médias foram de 3,13 e 3,94%, respectivamente (TABELA 6). Note-se que as taxas médias de crescimento vêm apresentando crescimentos sucessivos em cada período, o que permite projetar um crescimento para a década de 2000.superior ao que foi observado na década de 1990, que já foi 20% superior à década anterior.

Para Vilela et al. (1999), a elasticidade-renda da demanda de lácteos é próxima da unidade, senão superior a ela; desta forma, a ocorrência de um aumento da renda per capita e/ou uma distribuição um pouco mais equânime da mesma provocariam um crescimento da demanda pelo menos proporcional, que, por outro lado, elevaria o déficit entre produção e consumo; este seria suprido pela importação em um primeiro momento, para, em seguida, haver um crescimento na produção.

TABELA 6 – Produção de leite, vacas ordenhadas e produtividade animal no Brasil, 1980/2002

Ano Produção de Leite (milhões litros/ano) Vacas Ordenhadas (mil cabeças) Produtividade (litros/vaca/ano) Taxa crescimento produção (%) 1980 11.162 16.513 676 1981 11.324 16.492 687 1,45 1982 11.461 16.387 700 1,21 1983 11.463 16.276 704 0,02 1984 11.933 16.743 713 4,10 1985 12.078 16.890 715 1,22 1986 12.492 17.330 721 3,43 1987 12.996 17.774 731 4,03 1988 13.522 18.054 749 4,05 1989 14.095 18.673 755 4,24 1990 14.484 19.072 760 2,76 1991 15.079 19.964 755 4,11 1992 15.784 20.476 771 4,68 1993 15.591 20.023 779 -1,22 1994 15.784 20.068 787 1,24 1995 16.474 20.579 800 4,37 1996 18.515 16.273 1.138 12,39 1997 18.666 17.048 1.095 0,82 1998 18.694 17.280 1.082 0,15 1999 19.070 17.395 1.096 2,01 2000 19.767 17.885 1.105 3,65 2001 20.510 18.194 1.127 3,76 2002 21.643 20.580 1.051 5,52 2003 22.254 19.255 1.155 2,8 Média 3,08

Elaboração: R. ZOCCAL - Embrapa Gado de Leite

Fonte: IBGE (Censo Agropecuário e Pesquisa da Pecuária Municipal)

Segundo Madalena (2001), a maior restrição ao aumento do consumo de leite e ao aumento dos preços no Brasil decorre da baixa renda da maioria da população haja vista que a elasticidade-renda do leite e derivados é muito alta nos estratos de menor renda; isso justifica a afirmação de que, se a população com maior renda passasse a ganhar mais, pouco aumentaria seu consumo de leite, pois sua necessidade já é, praticamente, toda satisfeita; por outro lado, a população de baixa renda aumenta seu consumo de forma expressiva, conforme foi observado após a implantação do Plano Real no Brasil, em 1994. Para Leite e Gomes (2001), muitos dos produtos lácteos têm elevada elasticidade preço/renda; no entanto, para Pinheiro e Engler (1975) e Yamaguchi et al. (1985 apud YAMAGUCHI; MARTINS; CARNEIRO, 2001), tanto a oferta quanto a demanda do produto no mercado interno têm-se mostrado preço-inelásticas.

Analisando-se a produção regional, constata-se que, apesar das mudanças ocorridas, em termos gerais não houve grandes mudanças na distribuição da produção brasileira (TABELA 7). A região Sudeste mantém a hegemonia há bastante tempo, porém vem mostrando uma tendência de enfraquecimento, devido à migração da produção para o Centro-Oeste.

TABELA 7 – Participação das regiões na produção brasileira, 1990 a 2001

Ano Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

1990 3,83% 14,12% 47,80% 22,52% 11,73% 1991 4,54% 14,42% 46,36% 22,48% 12,20% 1992 4,60% 14,36% 45,72% 22,72% 12,60% 1993 4,59% 10,79% 47,11% 23,64% 13,87% 1994 4,13% 11,23% 46,58% 24,27% 13,79% 1995 4,29% 11,45% 45,76% 24,90% 13,59% 1996 4,16% 12,72% 45,03% 22,91% 15,18% 1997 4,50% 12,80% 44,98% 23,28% 14,44% 1998 4,83% 11,07% 45,28% 23,59% 15,22% 1999 5,03% 10,71% 44,78% 24,15% 15,33% 2000 5,31% 10,92% 43,37% 24,81% 15,58% 2001 6,03% 11,05% 41,80% 25,29% 15,83% Fonte: IBGE (2004)

Esta região, por sua vez, tem sido responsável pelo mais recente fenômeno do sistema agroindustrial do leite, explicado por sua vantagem comparativa no custo de produção, que ocorre pelo baixo preço da soja, baixo custo de oportunidade da terra, taxas privilegiadas para financiamentos e tecnologias que resultam em maiores produtividades. Além disso, contribuíram também a indústria laticinista mediante assistência técnica aos produtores e a formação de demanda, assim como o empenho da Federação de Agricultura de Goiás através de um intenso trabalho de intermediação com a indústria e conscientização para a profissionalização do produtor (GOMES, S. 1999).

Para uma variação da produção total no País de 41,6%, a região Norte obteve o maior crescimento no período, 122,7%, seguida pelo Centro-Oeste (91,1%), Sul (59,0%), Sudeste (23,8%) e Nordeste (10,8%). No entanto, como representa pequena parte da produção global, a região Norte continua com a menor participação da produção nacional. O Nordeste, no entanto, apresentou o pior desempenho, principalmente ao considerarmos o crescimento da população no período (15,8%) e, conseqüentemente, da demanda, o que aponta para uma dependência de empresas externas para o abastecimento da região.

A distribuição da produção de leite nas regiões será melhor compreendida se analisarmos conjuntamente os dados das TABELAS 7 e 8, pelos quais se visualiza facilmente que as regiões Sudeste e Sul juntas são responsáveis por 57,4% da população do País, pelos dados de 2001, e respondem por 67% da produção leiteira do Brasil, enquanto as regiões Norte e Nordeste juntas respondem por pouco mais de 17% da produção, para 35,7% da população. Analisando-se as regiões individualmente, nota-se que a maior diferença entre os percentuais de população e produção ocorre no Nordeste; no entanto, este déficit mostra uma pequena tendência de queda nos últimos anos.

A região Norte demonstra tendência de atingir em pouco tempo a auto-suficiência; por outro lado, o Sudeste ratifica a redução de sua participação na produção total, passando a apresentar déficit quanto à população, enquanto a região Sul apresenta certa estabilidade e o Centro-Oeste, um contínuo crescimento.

TABELA 8 – Déficit regional da produção de leite em relação à população, Brasil, 1990- 2001

1990 1995 2001

% população Déficit % população Déficit % população Déficit

Região Norte 6,73% 2,90% 7,16% 2,87% 7,68% 1,65%

Região Nordeste 28,97% 14,85% 28,86% 17,41% 28,04% 16,99%

Região Sudeste 42,79% (5,01%) 42,54% (3,22%) 42,62% 0,82%

Região Sul 15,15% (7,38%) 14,84% (10,06%) 14,77% (10,53%)

Região Centro-Oeste 6,36% (5,36%) 6,59% (7,00%) 6,89% (8,93%)

Quanto aos estados, deve-se destacar a concentração da produção, demonstrada pelos três maiores estados produtores, Minas Gerais, Goiás e Rio Grande do Sul, que representaram 51,3% do total do País; isoladamente, Minas Gerais produziu 29,1% do leite total do Brasil.

A produção primária de leite no Brasil apresenta como características marcantes, conforme indica freqüentemente a literatura, a predominância de produtores com baixa ou nenhuma especialização, elevada sazonalidade, baixa relação volume/produtor e venda de animais mestiços e de corte (ALMEIDA, 2001). Compõe-se em sua maior parte por pequenos produtores, que atuam de forma bastante atomizada no mercado, onde 70 a 80% dos

produtores respondem por apenas 20 a 30% da produção nacional, provenientes de um rebanho de animais mestiços, euro-indianos, que se prestam à dupla finalidade, leite e carne (YAMAGUCHI, 2001).

A grande diversidade existente no setor leiteiro é, segundo Brandão (1999), mais notável do que a que caracteriza o setor agropecuário no País, e está associada a fatores regionais e às características dos estabelecimentos e de seus operadores, proprietário ou não. Para Gomes, S. (1999), a distribuição assimétrica é característica marcante da produção de leite no Brasil onde os pequenos tendem a participar cada vez menos e os grandes cada vez mais.

No entanto, o conceito de pequeno produtor, segundo o mesmo autor, é relativo, pois provavelmente na Argentina, um produtor de 210 litros/dia é classificado como pequeno, enquanto no Brasil 50 litros/dia parece ser um parâmetro adequado, já no outro extremo se pode considerar como grande produtor aquele com produção acima de 200 litros/dia.

Não obstante, também é comum a utilização dos termos especializado, não- especializado, familiar e de subsistência, para adjetivar os produtores, sendo muitas vezes alguns destes empregados indevidamente como sinônimos. Para Jank et al. (1999 apud MADALENA, 2001, p. 16), são considerados produtores especializados

aqueles que têm como atividade principal a produção de leite, obtida através de rebanhos leiteiros especializados e outros ativos específicos para este fim, tendo investido em know-how, tecnologia, economia de escala e até alguma diferenciação do produto. Por especialização entende-se a aplicação de recursos financeiros em elementos de incremento da produção de leite em termos de volume e qualidade, como vacas especializadas de raças européias, alimentos concentrados, alimentos volumosos, etc.

Para o mesmo autor, os produtores não-especializados, também chamados “extratores” ou “ extrativistas” ou, ainda, “safristas”,

são aqueles que trabalham com tecnologia extremamente rudimentar, para os quais o leite ainda é um subproduto do bezerro de corte (ou vice-versa, de acordo com a época do ano); [...] trata-se, na sua maioria, de produtores que encontram no leite uma atividade típica de subsistência, portanto não-empresarial (JANK et al., 1999 apud MADALENA, 2001, p. 15).

Em conformidade com a definição anterior, Brandão (1999) afirma que os produtores de subsistência se enquadram na categoria de produtores não-especializados, pois esta é a forma como este tipo de agricultura freqüentemente se organiza. Por fim, Montoya (1998, p. 15) considera agricultor familiar “o produtor que administra individualmente, com

sua família, uma área reduzida de terra (própria ou de outros) e que nela emprega predominantemente mão-de-obra familiar, cuja produção está parcial ou totalmente orientada para o mercado”.

Posto isso, deve-se entender que a categorização do produtor, geralmente feita de forma generalista, nem sempre é apropriada, levando muitas vezes a crer equivocadamente que produtor familiar é o mesmo que de subsistência, ou que pequeno produtor não pode ser especializado, e assim por diante.

A escala de produção é, segundo Brandão (1999), o principal determinante da renda desta atividade, haja visto o baixo retorno por litro de leite. Isso explica, também, a tendência crescente à especialização da pecuária leiteira, visto que, desta forma, se tem maior estímulo para aumentar o volume de produção através da garantia de rendas maiores e redução do custo médio de produção. Tal redução de custo decorre da diluição dos custos fixos e dos investimentos, que são bastante elevados nesta atividade.

Dentro deste contexto, a existência de dois mercados de lácteos concorrentes e igualmente fortes torna mais complicada a organização do setor. As diferenças entre os mercados formal e informal consistem basicamente na inspeção sanitária e higiênica do governo, na fiscalização do controle de qualidade e do recolhimento de impostos aos quais o primeiro é submetido, enquanto o segundo não. Gomes, S. (1999) ressalta que este mercado apresenta, paradoxalmente, um crescimento superior ao observado pelo mercado formal, o que é bastante preocupante.

Como elemento final para caracterizar a atividade leiteira no Brasil, apresenta-se uma série de fatores exógenos, como a estrutura tributária, os custos financeiros, a burocracia, a falta de concorrência, as deficiências da infra-estrutura, mão-de-obra desqualificada, a concentração do consumo e a qualidade da matéria-prima, que se influenciam mutuamente e tornam, segundo Primo (1999), os produtos brasileiros menos competitivos, seja no próprio mercado interno, seja no mercado externo, criando o chamado Custo Brasil.

Documentos relacionados