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Proibição da insuficiência: doutrina nacional e o Supremo Tribunal Federal

CAPÍTULO III – O DEVER DE PROTEÇÃO

6. Proibição da insuficiência: doutrina nacional e o Supremo Tribunal Federal

A Carta Política de 1988 não possui sequer um dispositivo tratando sobre o princípio da proporcionalidade, embora seja este reconhecido pela doutrina pátria194 como um dos princípios implicitamente contidos na Constituição de 1988, fartamente utilizado pela

192

SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais

entre proibição de excesso e de insuficiência. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br.

Acesso em 27/01/2013.

193

Op. cit., pp. 60-61.

194

Por todos: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 23. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 392 e ss.

jurisprudência para fins diversos, como na elaboração do controle de constitucionalidade, limitação ao poder de polícia, ponderação de interesses constitucionais conflitantes e, agora mais recentemente, para fomentar Direitos Fundamentais através dessa nova ótica que é a proibição da insuficiência, corolária do dever de proteção estatal.

É de notar que praticamente toda a doutrina nacional até então desenvolvida em torno do dever de proteção estatal diz respeito ao direito penal195, tratando-se habitualmente sobre o dever de proteção que o Estado detém no tocante às hipóteses de criminalização previstas na Constituição Federal de 1988.

Lênio Streck ensina que a proporcionalidade possui dupla face:

de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas, para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição e que tem como consequência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador196.

Nessa mesma linha de pensamento, Ingo Sarlet, para quem:

a noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que abrange, [...] um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição da insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados197.

Martha de Toledo Machado, após detida análise acerca dessa nova concepção do princípio da proporcionalidade, afirma que ela tem lugar amplo “na tutela penal do Estado”, em relação ao “entrechoque de valores fundamentais e os meios de sua solução”, tendo-se que os referidos valores “representam também direito à dignidade da pessoa e direitos à liberdade”. Ou seja, “os direitos tutelados instrumentalmente, tanto pela proibição

195

No entanto, a doutrina trabalhista já está dando sinais da aplicação dessa nova acepção do princípio da proporcionalidade, como se percebe nas seguintes obras: SEVERO, Valdete Souto. O dever de motivação da

despedida na ordem jurídico-constitucional brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 171-238

e MARTINEZ, Luciano. Condutas antissindicais. São Paulo: Saraiva, 2012.

196

STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. In: Revista da Anajuris, Ano XXXII, n. 97, março/2005, p. 180.

197

SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de proteção de insuficiência. In: Revista da Anajuris, Ano XXXII, n. 98, junho/2005, p. 107.

de excesso como pela proibição de proteção insuficiente, no plano geral estão contidos no mesmo território: qual seja, aquele dos direitos individuais invioláveis”198.

Encontra-se na doutrina trabalhista, porém, a percuciente análise elaborada por Luciano Martinez em relação à liberdade sindical, tendo-a como direito defensivo frente ao Estado, que não se descura do seu dever prestacional, pois “não basta a enunciação da liberdade e os compromissos teóricos de não intervenção e de não interferência, mas, à frente disso, é indipensável o estabelecimento de garantias e de facilidades com vistas ao surgimento e à atuação eficaz dos sujeitos coletivos”199.

Desde 2006 o Supremo Tribunal Federal vem tratando sobre a proibição da insuficiência em questões pertinentes aos mandamentos de criminalização, à biossegurança (pesquisa com células-tronco) e à prestação de direitos sociais, como saúde e educação.

O primeiro julgado da Corte referida sobre o tema em análise deu-se em um Recurso Extraordinário, onde um condenado por crime de estupro praticado contra incapaz desejava a extinção de punibilidade, alegando que posteriormente havia se casado com a vítima e, diante de tal realidade, deveria a Corte acolher a analogia in bonam partem, pois, entendendo-se contrariamente, haveria violação à equiparação constitucional entre casamento e união estável para fins de reconhecimento de unidade familiar. Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a qualidade garantista positiva da tutela penal do Estado, tendo como possível o controle de constitucionalidade da lei penal, por violação à proibição da proteção insuficiente.

Na indigitada decisão, que julgou, por maioria, não provido o recurso, restou consignado no voto-vista do Ministro Gilmar Mendes:

quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção insuficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental200.

Em maio de 2007 foi julgada a ADI n. 3112, que pedia a inconstitucionalidade da Lei n. 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento). Nesse julgado, novamente o Ministro Gilmar Mendes se utilizou dessa nova faceta do princípio da proporcionalidade (proibição da

198

MACHADO, Martha de Toledo. Proibições de excesso e proteção insuficiente no direito penal. A

hipótese dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes. São Paulo: Editora Verbatim, 2008, p.85. 199

Op. cit., p. 125.

200

proteção insuficiente) para argumentar e votar pela inconstitucionalidade do artigo 21 da referida Lei.

Na Ação aludida, que reunia outras Ações Diretas de Inconstitucionalidade que tratavam dos mesmos questionamentos, as alegações das partes se dividiram em inconstitucionalidade formal da lei por vício de iniciativa e por invasão de competência, e inconstitucionalidade material por violação a garantias e direitos fundamentais (presunção de inocência, propriedade, livre exercício da profissão, segurança, incolumidade física e vida), parcialmente mediante intervenção desproporcional do Estado e essa foi a análise efetuada pelo Ministro Mendes em relação à proibição de excesso estatal.

O Tribunal afastou todas as alegações de vício formal, assim como as pertinentes aos vícios materiais quanto à propriedade, livre exercício da profissão, segurança, incolumidade física e vida.

O Min. Gilmar Mendes indicou duas questões como realmente importantes à elucidação da querela: (i) a inafiançabilidade dos crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e de disparo de arma de fogo, (ii) e insuscetibilidade de liberdade provisória aos crimes de porte ou posse ilegal de arma de fogo de uso restrito, comércio ilegal e tráfico internacional, respectivamente os arts. 14, 15, 16, 17, 18 e 21, todos do Estatuto do desarmamento.

O aludido Ministro, embora não tenha delineado em seu voto o que vem a ser proibição do excesso e proibição da proteção insuficiente, faz referência às duas facetas decorrentes do princípio da proporcionalidade e, ao final, vota pela inconstitucionalidade do art. 21 do Estatuto no que diz ferir a presunção de inocência (art. 5º LVII CF), vedação de prisão ex lege (art. 5º LXI CF) e proporcionalidade como proibição de excesso.

Também em 2007 foi julgada a ADI 1800, ajuizada pela Associação de Notários e registradores, tendo por objeto a impugnação da Lei n. 9.534/97, no que regula a matéria de registros públicos para conferir gratuidade aos registros de nascimento e óbito, bem como às suas primeiras certidões, pleiteando-se liminarmente a suspensão desse dispositivo. No Informativo n. 471 do STF (11-15.06.2007) lê-se que:

[...] o Min. Ricardo Lewandowski, em seu voto-vista, ressaltou que, não obstante o entendimento de se tratar de serviço público prestado por delegação, a intervenção estatal não poderia anular, por completo, o caráter privado (CF, art. 236) - cuja continuidade depende da manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro -, o que não vislumbrou no diploma legal em tela, quando examinado à luz de uma ponderação de valores constitucionais, especialmente sob o prisma da proporcionalidade. No ponto, salientando que o princípio da proporcionalidade apresenta duas facetas: a proibição de excesso e a proibição de proteção deficiente, concluiu que os dispositivos impugnados não incidem em nenhum deles. Afirmou

que [...] tais dispositivos legais buscam igualar ricos e pobres em dois momentos cruciais da vida, de maneira a permitir que todos, independentemente de sua condição ou sua situação patrimonial, nesse particular, possam exercer os direitos de cidadania exatamente nos termos do que dispõe o art. 5º, LXXVII, da CF.

Também em outras oportunidades o Supremo Tribunal Federal se utilizou da proibição da proteção insuficiente para embasar seus julgados201, interessando agora analisar as argumentações lançadas em relação à omissão fática ou jurídica do Estado no tocante aos Direitos Sociais.

Todos os treze julgados da Corte tratando sobre Direitos Sociais, coletados até 21/01/2013, dizem respeito a pedidos de suspensão de medida liminar, tutela antecipada ou segurança concedidas por instâncias inferiores202, onde o Poder Judiciário corrige omissões estatais advindas da inação do Poder Executivo, estadual, federal ou municipal. Todas as decisões monocráticas foram emitidas pelo então presidente do Tribunal, Ministro Gilmar Mendes.

As referidas decisões possuem idêntica fundamentação e o Ministro Mendes, após indicar alguns argumentos em prol da prestação material, aponta as alegações do Estado (Município, Estado ou União), que foram aptas a ensejar a omissão estatal, uma vez que todas as decisões das instâncias inferiores tratavam exatamente do fomento à prestação estatal (agora na versão judicial), ante a anterior omissão executiva em relação à saúde, educação ou proteção à criança e adolescente.

Vislumbra-se sempre a preocupação em firmar entendimento em relação à justiciabilidade dos Direitos Sociais, fazendo-se o contraponto entre a reserva do possível e o mínimo existencial. Em todas as decisões, o Ministro Gilmar Mendes, ao indeferir o pedido os pedidos de suspensão das decisões anteriores, posiciona-se favoravelmente à tese segundo a qual cabe ao Estado a prestação de Direitos Sociais, utilizando a proibição de proteção insuficiente para embasar os julgados monocráticos.

No ano de 2012, novamente o Ministro Gilmar Mendes voltou a invocar a proibição da proteção insuficiente para embasar indeferimento de habeas corpus203, que intentava o enquadramento da atipicidade da conduta, diante do porte de arma de fogo desmuniciada. Na referida decisão, restou mais uma vez afirmado pelo indigitado Ministro que:

201

ADI 3510, que trata da pesquisa sobre as células-tronco.

202

SL 235-0 (TO), STA 241-7 (RJ), SL 228-7 (CE), SL 263-5 (RJ), STA 238 (TO), STA 245 (RS), STA 278-6 (AL), STA 277 (AL), STA 198 (MG), STA 318 (RS), SS 3690 (CE), SS 3751 (SP), SS 3741 (CE).

A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote) (sic), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote) (sic). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote) (sic), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente.

Ou seja, até então, para o Supremo Tribunal Federal, a proibição da proteção insuficiente, corolária do princípio da proporcionalidade, tanto serve para coibir omissões estatais materiais – a exemplo das omissões na área de saúde e educação –, como omissões legislativas, quando o Legislador se queda inerte em relação ao seu dever de legislar sobre determinados Direitos Fundamentais.

7. A proteção estatal insuficiente diante da ausência de regulamentação do artigo 7º, I da