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CAPÍTULO VI – DIREITOS FUNDAMENTAIS NA RELAÇÃO DE EMPREGO

3. Origem da teoria acerca da eficácia dos Direitos Fundamentais entre os particulares

3.2. Teoria da eficácia indireta

Segundo a teoria da eficácia mediata ou indireta, inicialmente formulada por Günter Dürig356, em 1956, e utilizada pelo famoso caso Lüth, em 1958, os direitos

354

Essa parece ser também a opinião do Ministro Joaquim Barbosa, quando disserta sobre as ações afirmativas, pontuando que nos Estados Unidos não é dado ao Governo “interferir na esfera íntima das pessoas, sob pretexto de coibir os atos discriminatórios”, pois “por razões históricas e em consequência da inegável predominância de valores individualistas e privatistas [aquele país], o combate à discriminação deu-se prevalentemente na esfera pública” (GOMES, José Joaquim Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social – a experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 80).

355

SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. 2. ed., São Paulo: Atlas, 2011, p. 95.

356

São do referido autor as palavras traduzidas: “Os direitos fundamentais particulares são formas de apresentação de um sistema de valores, declaratoriamente reconhecido no artigo 1 I e 2 I, da lei fundamental, determinado à constituição, que é protegido contra perigos específicos da direção do estado por direitos fundamentais jurídico-positivos de valor diverso. Ao sistema de valores corresponde, nisso, um sistema de pretensão feito indubitável pelo artigo 1 III, dirigido contra o estado. O aqui essencial é, agora, que desse sistema

de pretensão, precisamente para satisfazer os princípios de constituição supremos de nosso direito total,

justamente faz parte também o direito de poder dispor juridicamente autonomamente sobre relações de vida individuais. Isso, porém, significa lógico-juridicamente que na direção de terceiros, o ‘efeito absoluto’ dos direitos fundamentais é relativizado por um direito fundamental em favor da autonomia individual e da responsabilidade própria. O tráfego jurídico de privados uns com os outros está sujeito, por isso, justamente por causa da constituição, a direito especial (exatamente ‘direito privado’) – e precisamente também no direito de defesa de ataques de privados a direitos de outros (à medida que, no fundo, o direito penal não intervém). Os

meios normativos para a defesa de ataques da direção de terceiros, com cujo auxílio, na falta de normas de

proteção jurídico-civis especiais, o direito privado objetivo cumpre seu pedido de proteção, são suas cláusulas

gerais suscetíveis de preenchimento de valores e carentes de preenchimento de valores.O caminho pela sua

aplicação salvaguarda, por um lado, a autonomia do direito privado, tornada necessária lógico-jurídica e

sistemático-juridicamente depois de reconhecimento jurídico-fundamental da liberdade de disposição privada no

tráfego jurídico de terceiros e salvaguarda, por outro, a unidade do direito total, naturalmente necessária, na

fundamentais não incidem nas relações privadas como direitos subjetivos constitucionais, mas, sim, como normas objetivas, ou como sistema de valores357.

Assim sendo, toda essa ordem axiológica “está condicionada à mediação concretizadora do legislador de direito privado, em primeiro plano, e do juiz e dos tribunais em segundo plano”358, cabendo ao legislador “o desenvolvimento ‘concretizante’ dos direitos fundamentais por meio da criação de regulações normativas específicas, que delimitem o conteúdo, as condições de exercício e o alcance desses direitos nas relações entre particulares”359, e ao Poder Judiciário, na análise do caso concreto e diante da inércia do legislador, compete “dar eficácia às normas de direitos fundamentais por meio da interpretação e aplicação dos textos de normas imperativas de direito privado”.360.

É dizer, os conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas abertas do Direito Privado serviriam como uma via através da qual os Direitos Fundamentais penetrariam, mas sempre com a dimensão de valores e não como direitos subjetivos, pois estes somente teriam como destinatário o Estado, jamais os particulares, mediatamente vinculados ao texto fundamental.

Ainda de acordo com a referida teoria, que terminou prevalecente na terra onde foi formulada – Alemanha –, nega-se a possibilidade de aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas porque, em síntese, “esta incidência acabaria exterminando a autonomia da vontade, e desfigurando o Direito Privado, ao convertê-lo numa mera concretização do Direito Constitucional”361, e seus defensores asseveram que adotar posicionamento contrário “importaria na outorga de um poder desmesurado ao Judiciário”362, tendo-se o grau de indeterminação que caracteriza as normas constitucionais que tratam de direitos fundamentais363.

Direitos Fundamentais e Direito Privado: textos clássicos. HECK, Luiz Afonso (org). Porto Alegre: Sergio

Antonio Fabris Editor, 2011. p. 35).

357

“Somente através da sua modelação ou transformação em normas de Direito Civil podem os preceitos constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias obrigar as pessoas nas suas vidas jurídico-privadas e só através da sua irradiação sobre os conceitos indeterminados ou as cláusulas gerais privatísticas podem os correspondentes conceitos tornar-se operativos” (MIRANDA, Jorge. Op. cit., p. 288).

358

STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, São Paulo: Malheiros, 2004. p. 137.

359

STEINMETZ, Wilson. Op. cit. idem.

360

STEINMETZ, Wilson. Op. cit. p. 138.

361

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora. 2. ed. 2006. p. 198.

362

SARMENTO, Daniel. Op. cit. p. 198.

363

Atualmente, o maior defensor desse ponto de vista na Alemanha é Canaris, para quem uma aplicação direta dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares pode “destruir tanto o direito contratual quanto também o direito da responsabilidade extracontratual, pois ambos seriam em larga escala substituídos pelo direito constitucional. Isso contradiz a autonomia do Direito Privado, desenvolvida organicamente no decorrer de muitos séculos, contrariando, também no que diz com o direito alemão, a função dos direitos fundamentais que,

Estranhamente, Konrad Hesse, um dos maiores defensores da força normativa da Constituição, rejeita terminantemente a vinculação direta dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares, por acreditar que a penetração direta da Constituição no Direito Privado acabaria por matar a identidade deste, estabelecida classicamente “por la larga

historia”364.

Tal posicionamento é extremamente contraditório com a obra produzida pelo referido autor, que sempre elevou as normas constitucionais à sua mais alta categoria, repudiando por completo a exaltação ao princípio da legalidade, tão apregoado pelo positivismo, por acreditar que um direito “cuyo reconocimiento, cuya existencia, depende del

legislador, no es un derecho fundamental”365, tendo-se que “este se define justamente por la

indisponibilidad de su contenido por el legislador”366.

Ubillos, em um momento de total lucidez, resumiu o posicionamento da doutrina alemã, afirmando que o avanço em torno da eficácia irradiante dos Direitos Fundamentais, termina por importar a estes “la renuncia al título de derecho subjetivo”367. Ou seja, de acordo com a teoria da eficácia indireta, corolária da tese da dimensão objetiva, os Direitos Fundamentais se irradiam por todo o ordenamento jurídico, vinculando todos os poderes e até particulares, mas o preço disso é alto, pois tais direitos, enquanto eficazes nas relações privadas, perdem o caráter clássico de subjetividade e, logicamente, de sindicabilidade, funcionando na prática judicial como “simples parametros

interpretativos, a los que se acude, sobre todo, cuando existen lagunas que integrar o la ley está redactada de forma imprecisa”368.

A aludida teoria mereceu a crítica de Vieira de Andrade, para quem “a autonomia do direito privado não significa independência em relação à Constituição que tem hoje como tarefa fundamental a garantia da unidade do ordenamento jurídico”, tendo o autor afirmado, ainda, que a teoria da aplicabilidade mediata foi mal compreendida, pois os seus partidários “não se libertaram do peso das concepções liberais-individualistas e deixaram-se

em princípio, de acordo com a sua gênese e em consonância com a formulação do seu suporte fático, têm por destinatário direto apenas o Estado e não um particular. É por esta razão que a teoria da eficácia imediata não se impôs na Alemanha, embora ainda conte com seguidores” (CANARIS, Claus-Wilhem. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. Tradução de Peter Naumann. In: Constituição, Direitos

Fundamentais e Direito Privado. SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Porto Alegre: Livraria do Advogado

Editora, 2003, pp. 223-243.

364

Apud SARMENTO, Daniel. Op. cit. p. 199.

365

UBILLOS, op. cit.

366

Ibidem.

367

Op. cit.

368

influenciar pela circunstância de terem sido o direito civil e penal, na sua ancianidade, que primeiro regularam as relações privadas”369.

A crítica merece aplausos, pois hoje o que se observa é uma crescente “invasão” do Direito Constitucional no Direito Civil e Penal, sendo bastante observar o recente Código Civil brasileiro, que abandonou o seu conteúdo eminentemente individualista, passando a conter normas mais sociais, voltadas à dignidade das pessoas, como a contração que deve sempre se vincular à boa-fé, inclusive objetivamente, ou até mesmo em relação ao Direito Fundamental por excelência e classicamente tido como absoluto, a propriedade, que hoje, após as inovações na seara civilista, fortemente influenciada pelas normas constitucionais, deve guardar a função social.

É certo que, em se tratando de Direito Penal, vinculado ao princípio estrito da legalidade, não há falar em supressão de omissão legislativa pelo Estado-Juiz, sendo mais acertado se falar em interpretação e aplicação de preceitos legais, que servirão de filtros por onde passarão os Direitos Fundamentais. Perceba-se que em casos como tais a Constituição não deixará de ser aplicada, pois a própria Lei Fundamental prevê a impossibilidade de utilização de qualquer outro meio de previsão criminológica ou punição, senão através de Lei em sentido estrito, razão pela qual, em havendo omissão legislativa, é possível a utilização da teoria dos deveres estatais de proteção.

A razão parece estar com Miranda370, quando assevera que a teoria analisada, na prática, acaba por se aproximar da teoria da eficácia direta, tendo-se que, no fim a Constituição será aplicada. Concordando com tal ponto de vista, ainda afirma Sarno Braga371 que a teoria da eficácia mediata é “supérflua”, pois resta abrangida pela teoria diametralmente oposta, que apregoa a aplicação direta dos Direitos Fundamentais nas relações privadas.