• Nenhum resultado encontrado

O PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO – PEC 06/2019 E O FUNDAMENTO DE ORDEM ECONÔMICA EM SOBREPOSIÇÃO AOS DIREITO

3 A REFORMA DA PREVIDÊNCIA E O SEU FUNDAMENTO ECONÔMICO EM SOBREPOSIÇÃO À SEGURANÇA JURÍDICA E À SUA FINALIDADE

3.3 O PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO – PEC 06/2019 E O FUNDAMENTO DE ORDEM ECONÔMICA EM SOBREPOSIÇÃO AOS DIREITO

FUNDAMENTAIS

No dia 20 de fevereiro de 2019 o Poder Executivo Federal apresentou Proposta de Emenda à Constituição nº 06/2019, com a finalidade de “Modificar o sistema de previdência social, estabelecer regras de transição e disposições transitórias, e dar outras providências".

A referida proposta modifica de forma profunda o sistema previdenciário brasileiro, com a finalidade essencial de reduzir gastos com a manutenção dos Regimes Geral e Próprio, uma vez que nos últimos anos tais regimes se encontram em déficit, tendo a União e os Estados que aportar recursos além daqueles previstos no orçamento da Previdência Social, para a manutenção do pagamento das respectivas prestações materiais.

Não é o objeto do presente trabalho analisar a “Reforma da Previdência” de forma aprofundada, mas a pretensa norma é de suma importância para o tema ora tratado, uma vez que o seu argumento de fundo possui aspecto exclusivamente econômico, o que implica na redução/extinção de direitos fundamentais sociais referentes às prestações previdenciárias, seja pelo enrijecimento dos critérios de concessão dos benefícios, seja pela exclusão de algumas prerrogativas.

O mais grave, contudo, é que este projeto tramita no Congresso Nacional sem qualquer deliberação direta com a população, seja através de audiência pública ou mesmo através da configuração de comissão a ser integrada por especialista das mais diversas áreas de atuação no dia a dia do Direito Previdenciário. E mais, o Poder Judiciário, ainda que de forma indireta, não participou das deliberações para a construção da reforma, sendo o Projeto proposto apenas pela análise do Poder Executivo.

Para evidenciar o problema de forma prática, serão apresentados dois pontos da reforma que, certamente, gerarão, de forma massiva, o ajuizamento de ações questionando a inconstitucionalidade/legalidade, o que recairá na problemática apresentada de atuação isolada dos Poderes Executivo e Judiciário, ocasionando inefetividade do Direito Previdenciário.

No art. 1º da PEC nº 06/2019, o Poder Executivo propõe a modificação do art. 37, §10 da CF/88, para expandir a vedação de acumulação de proventos com

77

remuneração, para incluir na negativa, também, a acumulação de proventos percebidos pelo RPPS e pelo RGPS, ainda que o segurado tenha preenchido os requisitos para a percepção dos benefícios perante os dois regimes previdenciários:

Art. 37. (...) (...)

§ 10. É vedada a percepção simultânea de proventos de aposentadoria do regime próprio de previdência social de que trata o art. 40, de proventos de inatividade, de que tratam os art. 42 e art. 142 e de proventos de aposentadoria do Regime Geral de Previdência Social, de que trata o art. 201, decorrentes do exercício de cargo, emprego ou função pública, com a remuneração de cargo, emprego ou função pública, ressalvados os cargos acumuláveis na forma prevista nesta Constituição, os cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração.

No momento atual, o segurado que contribui tanto para o RPPS como para o RGPS, possui a prerrogativa de constituir direito adquirido ao recebimento de uma aposentadoria por idade, por exemplo, nos dois regimes, desde que preencha os requisitos em ambos, considerando as contribuições vertidas, respectivamente, ou mesmo a utilização da carência de um regime em outro, desde que não a tenha utilizado antes.

A PEC referida, visa vedar a percepção simultânea dos dois benefícios, mas, em contrapartida, mantém a necessidade de contribuição compulsória do segurado para os dois regimes. Assim, o Estado arrecada mais e paga menos.

Ocorre que esta proposta possui sério risco de caracterização de inconstitucionalidade, uma vez que a aposentadoria, por exemplo, possui a finalidade de substituir a renda do segurado em face do preenchimento de alguns requisitos específicos, que permitem que o cidadão se afaste das suas atividades laborais e passe a ser remunerado pelo regime de previdência.

Ora, se o segurado em atividade percebia duas remunerações, ao se aposentar, que seria um status com caráter mais benéfico que o labor, passará a contar apenas com uma remuneração, da qual terá que optar, pois não poderá perceber as duas aposentadorias.

A questão se torna ainda mais absurda na hipótese do segurado que se aposenta por invalidez perante os dois regimes. Diferentemente das aposentadorias por idade e por tem de contribuição que, em regra, possuem natureza voluntária – exceto no caso da aposentadoria compulsória –, a aposentadoria por invalidez decorre da situação de incapacidade laboral absoluta e definitiva do segurado, a qual não depende do indivíduo. Acerca do caráter substitutivo da renda na

78

aposentadoria por invalidez, como bem ressalta João Batista Lazzari e Carlos Alberto Pereira de Castro112:

Art. 37(...)

§10. A aposentadoria por invalidez, inclusive a decorrente de acidente do trabalho, consistirá numa renda mensal correspondente a 100% do salário de benefício, o qual consiste na média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a 80% do período contributivo decorrido desde a competência julho de 1994 até a data de início do benefício.

Assim, o segurado é forçado a se aposentar, pois o empregador não deve submeter o obreiro ao labor estando em uma situação de incapacidade laboral, sob pena de submeter a sua integridade física e psicológica a um risco inaceitável.

Pela proposta, esse segurado que se aposenta por invalidez, mesmo que seja remunerado e contribua no RPPS e no RGPS, não poderá perceber aposentadoria de forma cumulada nos dois regimes, o que, sem dúvidas, o colocará em risco iminente, pois cobrirá, de forma insuficiente, o risco social da invalidez. Ressalte-se que a filiação e contribuição na hipótese aventada é compulsória, como bem ressalta Frederico Amado113:

A filiação ao Regime Geral é obrigatória para todas as pessoas que desenvolvam atividade remunerada, exceto para os servidores públicos efetivos e militares cobertos por regime previdenciário próprio, podendo as pessoas que não trabalhem se filiar como segurados facultativos, permissivo que atende ao Princípio da Universalidade de Cobertura e do Atendimento.

Assim, vedar a acumulação de proventos de aposentadoria no caso de segurado que preenche os requisitos em regimes previdenciários diversos, isto é, tanto no RGPS, como no RPPS, ofende de forma direta o princípio da máxima efetividade da Previdência Social, expressado através da irredutibilidade do valor dos benefícios. Mais uma vez é enfático Frederico Amado114:

Ou seja, esta norma principiológica atinge a sua máxima efetividade na previdência social (em razão do seu caráter contributivo), vez que, além de não poder reduzir o valor nominal do benefício previdenciário, o Poder Público ainda é obrigado a conceder um reajuste anual para manter o seu poder aquisitivo.

Outra modificação proposta é na redação do inciso V do art. 201 da CF/88.

112 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário, 20ª Ed., Rio de Janeiro, Forense, p. 514

113 AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário, 9ª Ed. Salvador, JusPodivm, 2017, p. 183.

79

O referido dispositivo elenca o benefício previdenciário de pensão por morte, estabelecendo, na parte final da redação atual, menção ao §2º da mesma norma, o qual estabelece a impossibilidade de pagamento de benefício previdenciário abaixo do valor mínimo115.

Ao suprimir a parte final do dispositivo, o qual determina que o valor da pensão por morte, por ser um benefício que substitui o salário de contribuição ou o rendimento, não poderá ser inferior ao salário-mínimo, o Executivo pretende que a pensão possa ser paga abaixo do referido limite.

De ver-se que o §2º citado foi elevado ao patamar de princípio constitucional, sendo, portanto, correto afirmar que trata-se de um Direito Fundamental Social, abrangido pela proteção às cláusulas pétreas, na forma do art. 60, §4º, da CF/88. Como ensina Frederico Amado116:

É assegurado constitucionalmente que nenhum benefício do RGPS que substitua o rendimento do trabalho tenha valor inferior a um salário mínimo12, avanço que dobrou muitas aposentadorias rurais que tinham a renda equivalente a Vi salário mínimo no anterior regime.

Nessa trilha, o artigo 2o, inciso VI, da Lei 8.213/91, elevou esta norma à categoria de princípio da previdência social, fazendo com que apenas os benefícios que não venham a substituir a remuneração do trabalhador possam ser inferiores a um salário mínimo, como ocorre com o auxílio- acidente e o salário-família, conforme será visto no momento oportuno.

Sem a desconstitucionalização do tratamento da matéria no que se refere ao valor mínimo da pensão por morte, mas, com a simples supressão da parte do dispositivo que determina a observância ao §2º, em tese, não poderia o legislador reduzir o valor da pensão por morte, uma vez que o parágrafo citado se aplica de forma geral a todas as prestações previdenciárias, dispensando menção expressa a sua aplicação.

Ademais, não há no texto constitucional qualquer menção expressa à limitação do referido direito, no que pertine ao benefício de pensão por morte, sendo certo que a redução deve se amparar em norma constitucional, portanto, a emenda

115 Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: (...) V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º.(...) §2º Nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo.

116 AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário, 9ª Ed. Salvador, JusPodivm, 2017, p. 259.

80

deveria incidir sobre o §2º, pois, como ensina Gilmar Mendes117, ao se referir a

possibilidade de limitação de direitos fundamentais sem expressa previsão de reserva legal:

Entre nós, a atividade legislativa, nessas hipóteses, estaria aparentemente facilitada pela cláusula de reserva legal subsidiária contida no art. 5º, II, da Constituição. É bem verdade que a ação limitadora — de índole legislativa, judicial ou administrativa — há de ser imantada por todo tipo de cautela, tendo em vista a possibilidade de abusos no estabelecimento de restrições a direitos fundamentais não submetidos a reserva legal expressa. Daí a necessidade de que eventual limitação de direitos fundamentais, sem reserva legal expressa, assente-se também em norma constitucional

Portanto, certamente, a modificação será questionada a partir do momento em que houver a regulamentação legal, com a modificação da Lei 8.213/91, para o pagamento da pensão por morte em valor inferior ao salário- mínimo, a depender das circunstâncias do caso concreto.

Com a desconstitucionalização da matéria, ficará a cargo do Executivo elaborar projeto de lei para modificar a lei 8.213/91 e estabelecer as hipóteses de percepção da pensão por morte em valor abaixo do salário-mínimo.

Como já expressado anteriormente, a conduta do Poder Executivo, no que se refere à Reforma da Previdência versa de forma exclusiva sobre o mando da economia de recursos públicos, sendo o slogan da PEC justamente a economia de cerca de um trilhão de reais em dez anos.

Ademais, a sobreposição do fato econômico sobre os Direitos Fundamentais, sem dúvidas culminará na elevação da discussão para o patamar jurisdicional, onde o Poder Judiciário fará a verificação de constitucionalidade das modificações. Mas até lá, sem dúvidas, milhares de ações judiciais serão protocoladas sendo a discussão passível de contradição entre os mais diversos órgãos jurisdicionais, motivando o conflito ao invés de solucioná-lo.

O mesmo em relação à primeira modificação aduzida, a qual veda a percepção simultânea de aposentadorias mantidas pelo RPPS e pelo RGPS.

O grande problema é que a interpretação e aplicação destas normas tem a sua efetivação somente após a entrada em vigor, com a massificação do conflito social. É dizer, não há o contato inicial dos indivíduos, que vão ser afetados pela norma, bem como o Poder Judiciário, com tais reformas, o que facilita a criação de um ambiente de atrito entre os atores sociais.

117 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 7. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2012, p. 310/311

81

A existência de um espaço de discussão imparcial, fora das amarras da esfera de poder de cada uma das funções, permitiria uma maior previsibilidade na aplicação e um tratamento mais polido das questões suscitadas em decorrência da incidência das normas provenientes da reforma.

Frise-se que, por mais que o processo judicial, no entendimento contemporâneo, seja um ambiente de discussão e construção de uma decisão que influirá na sociedade de forma direta, na compreensão de que a decisium não pertence às partes ou ao juiz, é certo dizer que os aspectos de controle da relação processual, tal como a preclusão e a coisa julgada, não garantem uma discussão desprovida de rigidez e de forma tão aprofundada como se ocorresse em um ambiente dialógico fora do processo.

O processo, assim, pela aplicação do nom liquet em relação ao magistrado, demanda, necessariamente, um início e uma conclusão, não sendo, portanto, um ambiente adequado para a maturação de discussões interpretativas que possam demandar maior ambientação dialógica, pois os envolvidos tendem a querer a resolução do conflito já existente118, ao invés de pensar de forma imediata

na prevenção de novas ocorrência. Cabe, neste ponto, lembrar das lições de Ovídio Baptista119:

Processo (processus, do verbo procedere) significa avançar, caminhar em direção a um fim. Todo processo, portanto, envolve a idéia de temporalidade, de um desenvolver-se temporalmente, a partir de um ponto inicial até atingir o fim desejado. Nem só no direito ou nas ciências sociais existem processos. Também na química as transformações da matéria se dão através de um processo; e na biologia costuma-se falar em processo digestivo, processo de conhecimento dos seres vivos etc. (BAPTISTA DA SILVA, 2000, p. 13).

Mesmo no processo coletivo, onde, além da coisa julgada, há o dever de comunicação do juízo, de forma a dar ampla publicidade à decisão, para prevenir outros conflitos, o objeto imediato do processo é a solução repressiva do conflito, verse este sobre direitos coletivos stricto sensu, direitos difusos ou direitos individuais homogêneos.

118 Nas palavras de Piero Calamandrei: "no processo o advogado está a defender uma causa grave, uma dessas causas que não são raras, mesmo no cível. A vida de um homem, a felicidade de uma família inteira depende do resultado do advogado" CALAMANDREI. Piero. Eles os juízes vistos por nós os advogado. Pillares, São Paulo, 2013.

119 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil: processo de conhecimento, volume 1, 5ª ed. Ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 13.

82

Assim, pela tendência de aplicação das reformas com o intuito apenas econômico, torna-se essencial o diálogo prévio entre as funções que irão lidar diretamente, na prática, com a aplicação de tais normas, sempre volvendo-se para os interesses dos administrados/jurisdicionados, evitando que a massificação de conflitos, com o ajuizamento de inúmeras ações traga prejuízo ao invés de garantir os Direitos Fundamentais eventualmente afetados.

83

4 A RELAÇÃO ENTRE O PODER JUDICIÁRIO E O PODER LEGISLATIVO EM