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A PROPOSTA POLITÉCNICA PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR DE ENSINO MÉDIO

Nos itens anteriores apresentamos o panorama da educação escolar de nível médio no Brasil, e destacamos alguns argumentos dos pensadores críticos que se opõe aos modelos educativos que são guiados pelos objetivos do sistema

econômico capitalista. As referidas considerações nos levam a tematizar a concepção educativa politécnia, no intuito de compreender os fundamentos das convicções que orientam o posicionamento crítico, até o momento pouco colocado em suspeita.

De imediato é importante salientarmos que a educação politécnica tem a sua experiência pioneira no Brasil, em 1988‚ quando se iniciou o então curso técnico de 2o grau da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Mas

41 este início foi polêmico no que se refere ao uso do termo politécnico entre os

próprios mentores. Em vez de ​educação politécnica​, alguns autores optam pela designação ​educação tecnológica​.

do uso da palavra ​politécnica ​em vez de ​tecnológica​, se fez necessário já que assinala uma importante mudança no discurso econômico e pedagógico da burguesia. No que se refere à utilização dos termos ​tecnologia ​e ​politecnia​, o primeiro, definitivamente está apropriado pelo discurso dominante: “Assim, a concepção de ​politecnia ​foi preservada na tradição socialista, sendo uma das maneiras de demarcar esta visão educativa em relação àquela correspondente à concepção dominante” (SAVIANI, 2003, p. 146).

Manacorda (1991) enfatiza que Marx não escreveu nenhuma obra especificamente direcionada à educação, mas fez algumas referências sobre a importância da educação como contribuição para a crítica social. Desta forma, os estudiosos com base em sua teoria alicerçaram determinadas terminologias como sendo as mais apropriadas para serem utilizadas entre os estudiosos.

Ainda em justificativa do uso conceitual, Saviani (2003) reforça que embora Marx tenha usado o termo ​educação tecnológica​, a dúvida que surge entre os educadores brasileiros acerca do uso do termo ​educação politécnica ​ou do termo

educação tecnológica ​encerra-se no momento em que assumem a justificativa de

que o termo ​tecnologia ​geralmente é usado pelo contexto pedagógico,

predominantemente, capitalista, então o termo ​politecnia ​também serve para marcar o posicionamento do pensamento socialista.

O ensino médio politécnico, especificamente com ênfase na proposta

marxista/gramsciana, ressalva especial atenção ao trabalho. É pelo trabalho que os humanos se diferenciam dos outros animais, ou seja, se tornam humanos, com suas capacidades enquanto forjadores da sociedade. Nas palavras de Saviani (2003), os seres humanos transformam a natureza e fazem história por meio do trabalho, e assim concebem o mundo social.

Gramsci (1978), em seu livro ​Concepção dialética da história, ​compreende a Escola como o local que permite todo o homem ser educado para desempenhar seu papel de operário ou dirigente, ou seja, uma educação escolar que prepara o

homem para todos os processos criados pelo próprio homem em sua produção social. Já no livro ​Os intelectuais e a organização da cultura ​Gramsci (1968) destina

42 sua critica contra existência de tipos de escolas específicas para cada grupo social, o que em sua visão não permite que a educação se caracterize apenas por manter os filhos de cada classe social em suas referidas classes. Por isso, a ​Escola

Tradicional do Regime Socialista Soviético​, especificamente, querendo formar as

futuras lideranças, não oportunizou que a formação ocorresse sob o mesmo princípio para todos os homens.

Quando se refere a todos os homens, Gramsci (1978) expressa o seguinte argumento:

[...] a “natureza humana” é o conjunto das relações sociais é a resposta mais satisfatória porque inclui a ideia de devenir: o homem “devém” transformar-se continuamente com as transformações das relações sociais; e, também, porque nega o “homem em geral”: de fato, as relações sociais são expressas por diversos grupos de homens que se pressupõem uns aos outros, cuja unidade é dialética e não formal. [...] Também é possível dizer que a natureza do homem é a sua “história” (e no sentido, entendida a história igual ao espírito, de que a natureza do homem é o espírito), contanto que se dê à história o significado de devenir, em uma ​concordia discorsque não parte da unidade, mas que tem em si as razões de uma unidade possível. Por isso, a “natureza humana” não pode ser encontrada em nenhum homem particular, mas em toda a história do gênero humano [...], enquanto em cada indivíduo se encontram características postas em relevo pela contradição com as de outros homens (p.43).

Desta forma Gramsci (1968) corrobora a sua própria afirmação de que não é ensinando determinados homens para assumir cargos diretivos que irá caracterizar um determinado tipo de escola. A Educação Escolar não pode ser discriminatória,

não pode ser destinada para uma determinada classe, mas para todos os homens, pois justamente a marca da crítica social é dada pelo fato de que “[...] cada grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes grupos uma determinada função, tradicional, diretiva ou instrumental [...]” (GRAMSCI, 1968, p. 136). Portanto discorda da existência de escolas diferenciadas para cada grupo social.

O conceito de ​homem ​quando usado por Gramsci, se refere ao

entendimento de Marx de que homem é um ser constituído pelas relações sociais de trabalho, por isso, segundo Oliveira (1993),

[...] o homem é deduzível direta e unilateralmente das relações sociais, isto é, o homem seria, neste caso, um mero resultado (um epifenômeno) de tais relações. Considero que esta é uma posição tão unilateral quanto aquela que lhe é contrária, qual seja, que a sociedade poderia ser deduzida do indivíduo singular (p.35-36).

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Ainda para compreendermos melhor o posicionamento de Gramsci, ressaltamos que o argumento analítico de Brayner (1995) o define como um marxista que acredita em uma sociedade racionalizada e organizada

administrativamente vislumbrando uma produção disciplinada. As orientações teóricas gramscianas, neste sentido, reforçam a educação escolar para formar trabalhadores capazes de compreender, técnica e cientificamente, o que estão produzindo. Neste sentido, o investimento nesta forma de educação visa promover a superação da alienação.

Considerando esta proposição, fica mais compreensível o posicionamento dos pensadores brasileiros que defendem a politecnia e que entendem que a síntese

educativa acontece nessas relações que os trabalhadores fazem entre si ao vivenciarem e pensarem sobre os seus trabalhos, permanecendo num segundo plano a educação tradicional dos “bancos escolares” (que tem em vista primeiro preparar na escola para uma futura aplicação no trabalho). Defendem que o homem vive em relação de trabalho com outros homens, e que é nela que se produz a si mesmo e produz o mundo em que vive. A partir deste entendimento faz mais sentido o posicionamento de Gramsci (1968) sobre a relação entre trabalho educativo que humaniza ​nas ​e ​as ​relações sociais.

Os estudos brasileiros já citados sobre a concepção politécnica para a educação escolar enfatizam que Marx (1996) em ​O Capital ​define o conceito de

trabalho produtivo ​como aquele que gera mais-valia para o capitalista. O trabalho

produtivo é o oposto do tempo livre de trabalho (ócio). Quem não trabalha, está livre para exercer o ócio. Não precisa produzir, e nem se tornar produto vendendo sua força de trabalho em benefício do outro. Vale enfatizar que essa compreensão de Marx, posteriormente fundamenta a posição teórica de Gadotti (2012) sobre trabalho como práxis transformadora (relação entre teoria-prática) da realidade natural, tendo em vista a adequação às necessidades vitais, materiais e culturais. Quando o

trabalho é realizado na perspectiva capitalista acaba desumanizando o trabalhador. Sendo assim, a concepção ontológica do trabalho constitui a especificidade do homem, que engloba a produção em todas as dimensões da vida humana, ou seja, não se reduz à atividade laborativa, caracterizada como emprego. Trabalho como dimensão ontocriativa do humano não se confunde com as formas de trabalho que já existiram ao longo da história.

44 Ainda sobre o conceito de trabalho, Marx (1996) entende que:

[...] o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. [...] Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (p.297).

Este argumento possibilita a compreensão de que o trabalho é o fundamento do humano, que se constitui ao longo dos processos históricos. A partir de Marx (apud FRIGOTTO, 2012) o humano é analisado segundo o paradigma da produção. O que caracteriza o homem em cada tempo e espaço é o que ele produz. O trabalho só pode deixar de existir se os seres humanos desaparecerem ou se transmutarem em “anjos”.

O trabalho, na ótica dos marxianos e marxistas, é compreendido como direito e dever que engendra um princípio formativo ou educativo. Tanto que Frigotto (2012) relaciona o trabalho à subsistência, ao afirmar que:

[...] é fundamental socializar, desde a infância, o princípio de que a tarefa de prover a subsistência, e outras esferas da vida pelo trabalho, é comum a todos os seres humanos, evitando-se, desta forma, criar indivíduos ou grupos que exploram e vivem do trabalho dos outros (p.60).

Os argumentos de Frigotto (2012) sustentam-se na ideia de que a sociedade precisa consumir para viver e, para consumir, precisa produzir e, para produzir, precisa trabalhar. O animal vem regulado, programado por sua própria natureza, e isso o impede de projetar sua existência; suas modificações são intervenções instintivas, ou seja, não culturais. De maneira inversa, os seres humanos criam e recriam sua existência pela ação consciente do trabalho. Os humanos trabalham para produzir o consumo da sua própria vida.

O raciocínio de Frigotto (2012) nos permite compreender que a luta dos trabalhadores possui o sentido de abreviar o tempo de trabalho, necessário à

produção de bens e serviços, imprescindíveis à manutenção da vida físico-biológica e das necessidades básicas, historicamente.

Como consequência do argumento anterior segue o entendimento de que as necessidades que surgem historicamente não podem determinar uma forma de produzir bens e serviços que seguem os fins do capital. Esse entendimento

45 considera que em medida que o ser humano vive, novas necessidades são criadas pelas suas próprias capacidades de resolver determinados problemas. Os avanços técnico e científico, de acordo com a criatividade e inventividade inerentes à

plasticidade humana, não possuem possibilidades de se limitar.

Temos que considerar que pelo menos uma das dimensões mais cruciais para a fundamentação da concepção politécnica, é a do conceito de ​trabalho

produtivo​, que compreende em primeiro plano a produção de elementos necessários

e imperativos à vida biológica. Porém para compreender as necessidades humanas não pertencentes à ordem biológica, como as necessidades próprias da vida cultural, social, estética, simbólica, lúdica e afetiva, temos que considerar o posicionamento de Lukács (1978) que as identifica como históricas, portanto são necessidades sociais.

É importante ressaltarmos a compreensão de Lukács (1978) de que o trabalho na sua essência e generalidade ontocriativa não pode ser confundido com as formas de trabalho. Também não se confunde trabalho ontocriativo com emprego. O autor verifica que a forma de trabalho assalariado é confundida com o emprego.

esclarecimento de Lukács (1978) que critica a formação específica, e enfatiza que ela não é capaz de contribuir para a busca da superação de circunstâncias estritas, rumo à formação do trabalho em sua dimensão ontológica.

Segundo Saviani (1989), o princípio organizador da proposta pedagógica, que tem como fundamento a politecnia, compreende que a Escola pode contribuir com a formação dos fundamentos científicos que englobam o trabalho produtivo. O fundamento da politecnia é ensinar o aluno a fim de formá-lo técnico em uma determinada área específica, tendo em vista a compreensão dos pressupostos científicos que justificam as diversas técnicas.

Sendo assim, de acordo com Frigotto (2012), o trabalho como princípio educativo não pode ser confundido com uma possibilidade didática no processo de aprendizagem, mas pode ser entendido no processo de aprendizagem como um fundamento ético e político. O trabalho é definidor de todo o ser social do homem. O trabalho é o fundamento da condição do homem ser humano e, consequentemente, produzir suas normas morais, sua política, sua cultura, sua educação. Do contrário, não podemos sob esse fundamento no paradigma do trabalho, pensar o homem de outra forma, senão sob o pressuposto do trabalho, pois,

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[...] na sociedade capitalista o trabalho humano, a ciência e a tecnologia não são colocados na perspectiva de produzir valores de uso e troca com o objetivo de satisfazer as múltiplas necessidades humanas. São ordenados na lógica de produzir lucro para quem compra, gerencia e controla privadamente a força do trabalho, a ciência e a tecnologia (FRIGOTTO, 2012, p.60).

O posicionamento acerca do trabalho como ​bem ​que valoriza a virtuosidade humana, de acordo com o pensamento socialista não se fundamenta nos fins do

capital. Pois, a condição de trabalhadores que fundamenta o humano, está ligada exclusivamente ao trabalho como parte do metabolismo humano. Instintivamente, o homem precisa trabalhar, como se esta fosse sua condição natural, da mesma forma que, instintivamente, os peixes nadam. Porém, o trabalho humano refina-se pelo seu caráter social.

Essa característica essencial do homem como produtor não permite pensar o homem sem o trabalho e sem ser “[...] produtor de valores de uso e de trocas para responder às múltiplas necessidades humanas [...]” (FRIGOTTO, 2012, p. 61).

Logo, a formação do trabalhador politécnico exige um saber técnico

intelectualizado, que repercute em seu fazer criativo, autônomo e crítico. Contribui para um progressivo aperfeiçoamento enquanto trabalhador. Reforça-se a

compreensão das relações entre teorias e práticas acerca das compreensões tecnológicas e suas relações científicas. A formação deve capacitar o trabalhador para agir com inteligência em nível superior, buscando soluções objetivas e

orientando-se com base nas informações disponíveis. Agrega-se um conhecimento além do saber trabalhar, que exige compreensões sociais, políticas e econômicas. A politecnia exige o domínio de linguagens e procedimentos técnico-científicos que orientem para a avaliação crítica.

As novas tecnologias e as novas formas de organização dos processos de produção contribuem para que a indústria alcance maior competitividade no mercado e amplie a qualidade de seus produtos. Os trabalhadores acabam perdendo o

controle sobre aquilo que produzem, consequentemente, são cada vez mais

descartáveis e substituídos. O potencial cognitivo é instrumento de poder. De acordo com Marx (1996), ele exerce poder de uma classe sobre a outra. A educação para o mercado de trabalho favorece a ideologia capitalista e favorece a orientação do

homem ao consumo e à alienação.

47 A politecnia segue os fundamentos estabelecidos por Marx, e no que tange à educação escolar, entende-se que educar para o trabalho, pode ser uma

oportunidade de ampliar o potencial cognitivo e contribuir para a libertação. Marx entende que o capital aprisiona o homem, porém, possui um potencial para construir a sua liberdade (MATA, 2011). Desta forma cria-se uma escatologia fundamentada na sociedade do trabalho.

De acordo com Frigotto (1994), a politecnia rompe com o adestramento proposto pela educação que direciona a formação profissional. A crítica à

polivalência se deve ao fato de que esta formação escolar visa sanar demandas estabelecidas pelas novas bases técnicas.

Segundo Machado (1994), a polivalência como expressão do capital, amplia a educação geral, mas foca na visão utilitarista, segundo as demandas produtivas do mercado. A politecnia propõe-se a desenvolver as qualidades humanas que

superam as relações sociais excludentes e alienantes.

A politecnia é uma possibilidade de dar acesso a uma Escola de educação básica, embora não seja suficiente, que capacite as classes populares a lutar pelos direitos fundamentais, dentre elas “a formação profissional mais específica feita no mundo de produção, em centros púbicos ou privados de formação profissional” (FRIGOTTO, 1994, p. 51). A educação para o trabalhador não pode ser simples adestramento. Precisa romper com a exclusão social e construir relações sociais educativas que satisfaçam as múltiplas necessidades humanas.

Formar o cidadão enquanto ser político e produtivo implica reconhecer, de acordo com Gramsci, o princípio educativo de uma determinada sociedade em cada

época. O próprio mundo da produção cria seus intelectuais. Kuenzer (1994) afirma que a Escola é a instituição que define seu princípio educativo, com o objetivo de formar seus intelectuais. Forma para exercer as funções produtivas,

comportamentais, ideológicas e normativas.

Na evolução da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador (MARX, 1996, p. 983).

48 A base epistemológica que sustenta a educação politécnica reconhece que a produção do conhecimento é realizada pelo sujeito em suas circunstâncias

históricas, e é da consciência dessa relação entre sujeito e história que resulta a transformação social.

A maior parte dos argumentos sustentados no paradigma do trabalho de cunho socialista enfatiza que vivemos numa sociedade capitalista, que possui o trabalho assalariado como forma de trabalho alienado e excludente, cuja ideologia reforça as desigualdades. Produzir valores de uso na tentativa de, por exemplo, melhorar as condições de vida, caracteriza-se como uma constatação incipiente de que a práxis está centralizada no trabalho, na possibilidade de o homem criar e recriar sua própria existência e o mundo social em que vive.

Meszáros (2005) entende a política educacional que quer integrar o ensino médio e o ensino técnico resulta em um desafio, que deve modificar a própria maneira como as relações sociais estão concebidas, ou seja, a perspectiva da

sociedade da produção e do mercado de consumo.

Sob o descortinar de uma reestruturação econômica por que passa o Brasil no cenário mundial, organismos internacionais (FMI e Banco Mundial) e setores políticos e econômicos internos, insistem sobre a importância de a Escola também educar o trabalhador. Assim, este capítulo priorizou a reconstrução da proposta da politecnia, de modo que não nos detemos em apresentar o modelo de educação vigente que se fundamenta na Teoria do Capital Humano.

Por outro lado, entendemos que a proposta que se fundamenta na politecnia é admirável pela sua capacidade de reabilitar o trabalho, de maneira que o

redescobre e o aponta como possibilidade de resistência e revolução do próprio trabalhador que, de maneira geral, é considerado alienado pela natureza do trabalho que desenvolve.

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