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AIDA SAMPAIO LEMOS (Universidade do Minho)

Bolseira FCT alemos@ilch.uminho.pt

e temáticas muito próprias das mentalidades da época, bem assim como por muitos serem traduções, estes textos permitem a análise de estruturas linguísticas1e culturais2cuja identificação se afigura indis-pensável para o conhecimento quer da gramática da língua quatrocen-tista, quer da história dessa época.

No período a que nos reportamos, as ordens religiosas desempe-nham um papel dominante. Dentre as existentes, a Ordem de Cister destaca-se no contexto europeu, nomeadamente em Portugal3onde a sua importância ficou marcada também pelo lugar de destaque que o Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça ocupou na Idade Média.

Bernardo de Claraval ficou na história como um dos nomes mais célebres dos monges cistercienses, porque imprimiu, à reforma iniciada por S. Roberto de Molesme em 1098, um carácter mais ascé-tico e dinâmico de que resultou em grande parte a expansão por toda a Europa da Ordem de que era membro. A essa expansão não foi alheia a influência religiosa e política4 que detinha, influência cultivada por meio de um discurso fortemente retórico que inspirou os homens do seu tempo e de todas as épocas e «que marcou um lugar tão impor-tante na evolução da mística ocidental, como traço de ——————————

1 «Para o conhecimento da língua na sua fase arcaica é fundamental a produção em prosa literária. A documentação poética e a não-literária se complementam para o conhecimento do léxico do português arcaico. A prosa literária documenta abundante-mente a morfologia nominal e verbal, as estruturas morfossintácticas dos sintagmas nominal e verbal. Sobretudo é importante para o estudo das possibilidades sintáticas da língua(…)». Rosa Mattos e Silva, O Português Arcaico. Fonologia. São Paulo: Con-texto, 1995, p.38.

2 Estes textos atestam, entre outros aspectos, a cosmovisão do homem medieval e o papel regulador de comportamentos e de transmissão do saber que as organizações religiosas detinham na época.

3 «Em nenhum outro país da Europa a Ordem de Cister exerceu uma influência tão profunda e duradoura». Dom Maur Cocheril in Routier des abbayes cisterciennes du Portugal. Nouvelle éd. revue, corrigée et annotée par Gérard Lerous. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian-Centre Culturel Portugais, 1986, p.15.

4 Não obstante a Ordem de que era representante pregar o afastamento do mundo, S. Bernardo teve um papel importante nas questões político-sociais do seu tempo. Àqueles que lhe censuram tal atitude, ele responde-lhes que «Nenhum dos assuntos de Deus me é estranho». Carta 20. Cit. por Jacques Berlioz – «S. Bernardo, o soldado de Deus». In Monges e Religiosos na Idade Média. Apres. de J. Berlioz. Trad. portg. de Teresa Pérez. Liboa : Terramar, 1996, p.48.

A influência de S. Bernardo de Claraval fez-se sentir também em Portugal quer no apoio concedido a D. Afonso Henriques face ao seu desejo de independência, quer no envio dos monges que fundaram mosteiros cistercienses no nosso país, nomeadamente o Mosteiro de Alcobaça.

ligação entre a espiritualidade patrística e as tendências afectivas dos franciscanos»5.

Para além da pregação, o seu prestígio difundiu-se através dos seus escritos6 que tiveram um papel fundamental na renovação da espiritualidade ocidental. Homem religioso e místico, a sua preemi-nência sobrevive à morte que ocorre em 1153, embora a partir do século XVIII se assista a uma alteração da imagem que dele até então fora transmitida7.

O fascínio exercido pela figura de S. Bernardo (canonizado em 1174) levou vários autores, nomeadamente alguns dos seus discípulos, a publicarem obras próprias e a atribuí-las ao Santo, acto aliás bastante corrente na Idade Média em que não havia um sentido de propriedade autoral semelhante ao de hoje.

Testemunho do prestígio e da autoridade de S. Bernardo, as obras a ele imputadas e outras elaboradas a partir de obras suas são em número muito elevado, tendo estas também contribuído para a propa-gação das ideias ascético-cristãs por ele explanadas. Segundo o P. Má-rio Martins8, são cerca de sessenta as obras apócrifas de S. Bernardo9. Escritas em português existem várias, nomeadamente duas cartas10a Afonso Henriques, o texto Contemplaçom de sam Bernardo segundo as TEXTOS DE PROSA LITERÁRIA EM PORTUGUÊS DO SÉCULO XV […] 165

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5 José Mattoso – «Leituras cistercienses do século XV». In Religião e Cultura na Idade Média. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, [1982], p.531.

6 Entre os seus escritos contam-se tratados e sermões, mas também cartas que, embora dirigidas a alguém particular, se destinavam a ser conhecidas publicamente e funcionavam como um forte meio de pressão. Bernardo de Claraval recorreu frequente-mente ao discurso epistolar, conhecendo-se cerca de 550 cartas por ele escritas.

7 Nas palavras de Gérard Leroux, S. Bernardo «homem da Igreja, tão ardente-mente empenhado na defesa da sua unidade, é apresentado pelos iluministas, hostis à vida monástica, como um fanático, quase um precursor da Inquisição. Com os român-ticos, em particular sob a influência de Rousseau, a vigorosa oposição de S. Bernardo às teorias de Abelardo – que a sua infeliz paixão por Heloísa colocara de certo modo num pedestal – é interpretada como uma resistência ao progresso da liberdade e da razão.» In São Bernardo (1090-1990). Catálogo bibliográfico e iconográfico. Introd., selec. e cata-logação por G. Leroux. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1991, p.15.

8 Mário Martins – «O «Tratado das meditações e pensamentos», do Pseudo-Bernardo». In Estudos de Literatura Medieval. Braga: Livraria Cruz, 1956, pp. 266-272. 9 Opusculum Bernardi abbatis in laudibus Marie; De consideratione; De precepto et dispensatione; Vita sancti Malachie episcopi;Epistola sancti Bernardi abbatis ad fratres qui in Hybernia sunt; De gradibus humilitatis são algumas das obras que se encontram nos códices alcobacenses.

10 Cartas apócrifas, datadas do século XVII-XVIII, nas quais o Santo agradece a Afonso Henriques a doação de Alcobaça e lhe prometia que Deus faria com que a Portugal nunca faltassem reis portugueses.

seis horas canonicas do dia11, [Disciplina dos Monges]12, [Pensamentos de S. Bernardo]13, Sentenças de São Bernardo14 e o Tractado das meditaç4es e pensamentos de sam Bernardo.

O Tractado, tradução de uma obra em latim – Meditationes piisime de cognitione humanae conditionis ou De interiori homine, putativa-mente de Hugo de S. Vítor15–, encontra-se no códice16 miscelado alcobacense CCXLIV/211 da Biblioteca Nacional de Lisboa, escrito em letra gótica, com iniciais a vermelho, azul e violeta e algumas decora-das com filigrana, sobre pergaminho, 266×208 mm, contendo 104 fólios. Esta obra do Pseudo-Bernardo, que ocupa os fólios 73 a 90v do referido códice, está escrita em português do século XV e apresenta, num discurso marcadamente moralizante que exulta a supremacia da alma sobre o corpo e incita à vida espiritual, uma interpretação místico-cristã da máxima socrática «conhece-te a ti mesmo».

O texto configura-se como um documento linguístico de grande interesse para a história da língua, mormente de uma fase que, numa perspectiva de periodização bifásica, se caracteriza por ser de tran-sição. Cumulativamente, e como também já referimos, surge como um documento de indiscutível valor para a história da cultura medieval. Estes foram motivos suficientemente fortes para dele fazermos a edição que agora apresentamos17.

Nas normas de transcrição que elegemos para a edição18do Trac-tado da Meditaç4es tivemos em conta a opinião (com a qual concor-——————————

11 Texto datado do século XV, editado por José Pedro Machado em 1939. 12 Este texto é a tradução, segundo Mário Martins (1961), do tratado De institu-tione novitiorum de Hugo de S. Vítor, contendo também vários excertos da Regra de S. Bento. Foi editado em 1940 por Henry Carter.

13 Tradução do século XV, atribuída a Fr. Francisco de Melgaço, monge da Abadia de Bouro, da obra Meditationis piisimae.

14 Conjunto de textos de sentenças, datados do século XVII, que se supõe terem sido retiradas dos tratados e da correspondência do Santo.

15 Cf. Mário Martins (1956), op. cit., pp.267-268.

16 Tal como é referido na folha de rosto do século XVIII, o códice contém os seguin-tes textos de índole cristã e ascética: Catecismo da doutrina cristã; Livro intitulado Vergel de prazer, e consolação, dividido em 5.Partes, e subdividido em 18 capitulos; Medi-taçoens de S. Bernardo traduzidas no idioma portuguez; Hystoria de hum cavaleiro chamado Túndalo ao qual forão mostradas penas do Inferno, e do Purgatorio; e os gozos do Paraiso.

17 A extensão do texto (fólios 73 a 90v) afigurou-se incompatível com a sua publi-cação na totalidade na Revista; assim, apresentamos agora a edição dos fólios 73 a 82v. Pretendemos publicar a segunda parte acompanhada de um estudo linguístico.

18 No Encontro «História da Língua e História da Gramática», que decorreu na Universidade do Minho em Novembro de 2000, tivemos oportunidade de, a propósito da

damos inteiramente) apresentada por Ivo Castro e Maria Ana Ramos, os quais defendem que a transcrição deve ser encarada como fenómeno táctico dependente de razões estratégicas19, pelo que seguimos o que denominamos por «razão do texto»20. Esta decisão assentou em três razões fundamentais: a não existência, tanto quanto nos foi possível apurar, de nenhuma edição do texto; a convicção de que esta obra se institui como objecto de interesse para um público mais restrito de investigadores da língua e da cultura medievais; e o objectivo de, forne-cendo o mais fielmente possível as características da língua em que o texto está escrito, proporcionar uma base filológica propícia para o seu estudo linguístico.

As normas de transcrição seguidas foram as seguintes:

(i) O caldeirão presente no manuscrito não foi representado, tendo sido, no entanto, seguido como indicador de parágrafo.

(ii) Não foram alvo de indicação especial grafemas próprios da escrita da época, tal como o «s» longo.

(iii) O sinal tironiano correspondente à copulativa e foi transcrito por este grafema em itálico.

(iv) Foram conservadas as vogais geminadas e as consoantes duplas, a distribuição do y, do h, do c/ ç, do u/ v e i/ j, independentemente do seu valor vocálico ou consonântico.

TEXTOS DE PROSA LITERÁRIA EM PORTUGUÊS DO SÉCULO XV […] 167

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edição deste texto – «Tractado das Meditaçõees: a edição de um texto apócrifo de Bernardo de Claraval», nos referirmos sucintamente às nossas opções de transcrição do documento. 19 Ivo de Castro e Maria Ana Ramos – «Estratégia e Táctica da Transcrição». In Critique Textuelle Portugaise. Actes du Colloque. Paris : Fond. Calouste Gulbenkian, 1986, pp.99-118.

20 Numa comunicação, intitulada «A edição de textos portugueses da prosa lite-rária do século XV», apresentada no XVe. Congrès International de la Société de Rences-vals, Poitiers, Agosto de 2000 , utilizámos esta expressão por oposição a razão do leitor: «A razão do texto caracterizar-se-á pelo princípio de autoridade do texto, sendo este enca-rado como uma realidade histórica e como uma entidade com voz própria, na medida em que permite aceder a uma mundividência autoral, epocal e linguística que, distante no tempo, tem, por conseguinte, de ser salvaguardada. Argumento semelhante, mas posto ao serviço do leitor, é dado por aqueles que demonstram uma atitude moderniza-dora na edição dos textos antigos. Na verdade, para estes o trabalho de edição tem de ter em conta o público, diverso nos seus interesses, objectivos e formações, e que terá de ver facilitado o seu acesso ao texto. Razão do leitor, portanto, aquela que motiva as edições subjacentes às quais está uma atitude modernizadora de transcrição do texto original e que se pauta sobretudo pela alteração e adaptação de aspectos gráficos e linguísticos que dificultam o trabalho do leitor moderno perante um texto arcaico.»

(v) A vibrante maiusculada foi transcrita por rr.

(vi) A separação e ligação das palavras foi feita na generalidade pela norma actual, embora com poucas intervenções por parte do editor; em alguns casos foi seguida a escrita do manuscrito, nomeadamente no que diz respeito aos proclíticos cuja união com as formas verbais foi sempre seguida.

(vii) As maiúsculas foram apenas introduzidas nos nomes próprios, tendo sido retiradas aquelas que, embora raramente, apareciam no interior das palavras. O manuscrito apresenta várias maiús-culas que, depois de caldeirão, foram mantidas na edição. (viii) Não foram introduzidos acentos segundo a norma actual, dado

que a distribuição de formas susceptíveis de serem confundidas, tais como a/ aa/ ha ou e/ he, permite a distinção (a como artigo ou pronome; aa como contracção de artigo e preposição; ha como verbo; e como conjunção copulativa e he como verbo). Há ocorrências em número reduzido de a e o como interjeições; no entanto, não achámos imprescindível a indicação de acento ou a colocação de h nessas formas, porque facilmente se apreende a sua significação como interjeição pelo contexto verbal em que ocorrem. As plicas existentes sobre as vogais foram mantidas.

(ix) As abreviaturas foram desenvolvidas, tendo as letras desdo-bradas sido transcritas em itálico; exceptuando as abreviaturas por letras sobrepostas.

(x) O til como indicador de nasalidade foi mantido sobre as vogais que formavam ditongo com outros grafemas vocálicos e naque-las em que o texto não fornece outro testemunho, bem como em formas como hü, hüa, nenhüu e nenhüa. Pelo contrário, o til foi desenvolvido em consoante nasal (m ou n, consoante o maior número de ocorrências no texto) nas palavras que, ao longo do documento, ora aparecem grafadas com til sobre a vogal, ora escritas sem til e com consoante nasal.

(xi) Não foram introduzidos sinais de pontuação segundo as normas actuais, tendo sido mantidos os diversos pontos como indica-dores de pausa21.

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21 Cf. Jean Roudil – «Edition de texte, analyse textuelle et ponctuation». In Cahiers de Linguistique Hispanique Médiévale. n.º3. Paris : Klincksieck, 1978.

(xii) O início de cada fólio foi indicado pelo respectivo número entre [ ].

(xiii) As palavras separadas pela mudança de fólio foram inseridas no fólio onde se iniciam.

(xiv) As letras ou palavras acrescentadas foram indicadas entre < >. (xv) Quando, por estarem palavras apagadas ou borratadas no manuscrito, não foi possível fazer a leitura, tal é indicado por (…) ou, como hipótese de leitura, transcritas entre ( ) *.

Tractado das Meditaç4es do Pseudo-Bernardo

[f.73] Aqui se começa o tractado das meditaç4es e pensamentos de Sam Bernardo en o qual reprehende os homeens argulhosos. e querençosos do mundo e negligentes e non conhocedores de si méésmos. E tracta muy altamente en como a alma per sy ha conhoci-mento da Sancta Trindade22.

Muytos homeens son en este mundo que saben muytas sabedorias. e conhocen muitas cousas e non sabem nen conhocen sy meesmos. catam e miram as fazendas alheas e leixam as suas perecer. buscam as cousas que pareçen de fora. desemparando as cousas de dentro. que son nas suas almas meesmas. nas quaes sta Deus.

Aqui declara a materia que deuen os homeens téér. porende eu23

das cousas de fora tornarey aas de de dentro. que son na minha alma e das cousas que son dentro en mjn. subirey aas de suso que son em Deus. E per esta tal materia poderey conhocer. donde uenho e hu vou. e quem son. e donde son. e pelo conhocimento que acalçarey en esta guisa de mjn. poderey vijr ao conhocimento de Deus. Ca quanto eu mais for aproueitando en seruiço de Deus. e en conhocimento de mjn meesmo. tanto mais hyrey chegando ao conhocimento de Deus24.

Segundo o homen (de fora)25e de dentro. acho na minha alma tres cousas pelas quaes me nenbro. e deseio a Deus. Estas cousas som. TEXTOS DE PROSA LITERÁRIA EM PORTUGUÊS DO SÉCULO XV […] 169

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22 «Sancta Trindade». No ms. acrescentado na margem direita. 23 «No ms. o pronome «eu» aparece sempre com letra maiusculada.

* Agradecemos ao Dr. Nuno Pizarro a ajuda valiosa que nos deu na resolução de dificuldades de leitura do manuscrito.

24 No ms. parte da palavra «conhocimento» e «de Deus» encontram-se já na linha seguinte, margem direira, separado por caldeirão.

Tractado das Meditaç4es e pensamentos de Sam Bernardo Fólio 73 do cód. alc. CCXLIV/211 (BN de Lisboa)

scilicet. Memoria. E entendimento. E voontade. Pela memoria. nenbro me de Deus. pelo entendimento. ueioo e conhoscoo. Pela uoontade. deseioo e abraçome con el. Quando me nenbro de Deus achoo na memoria e en ela méesma me deleyto en Deus e enquanto me el manda. pelo entendimento. paro mentes que cousa [f73v] he Deus en si meesmo. e que cousa he nos angeos. e que cousa he nos sanctos. e que cousa he nas outras creaturas e que he nos homeens.

Deus en sy meesmo. he non comprehendiuil. Quero dizer. que Deus he en sy hüa tan alta cousa. que nenhüu entendimento criado. non o pode comprehender. ca he começo e fin. E he começo sen começo e fin sen fin. E en mjn meesmo posso entender. en como Deus en si he tan alta cousa. que se non pode comprehender. Quando eu que son hüa creatura que el fez antre muitas e diuersas maneyras e mjn meesmo non posso comprehender.

Deus nos angeos he hüu deseio. ca elles en toda hora deseiam teer os olhos fitados en el.

En os sanctos he hüu plazer. que he sobre todos os plazeres. ca quantos son no çeeo. toda hora se alegram en ele. e dele tomam todo solaz e toda a folgura.

Deus en as outras creaturas he muy marauilhoso. Ca todas as cousas cria muy poderosamente e gouernaas muy sagesmente e despensa suas graças con todos muy benignamente.

Deus nos homeens he e deue seer hüu amor sobre todo amor ca el he Deus deles e elles son seu poboo e el mora en elles assy como en seu templo. ca eles son seu templo. e todos el quer e per todos fez muyto e non despreça nenhüu e somos teudos de o amar de todo coraçon. Ca el primeyramente nos amou e aa sua figura e aa sua ymagen nos fez. a qual graça non quis fazer a nenhüa outra creatura.

Quem quer que se de Deus nenbra. e o conhoce e o ama con el he. Aa ymagen de Deus somos fectos. que quer dizer ao entendimento e conhocimento do Filho. que he sabedoria de Deus Padre. pelo qual conhocemos e entendemos o Padre. e auemos achegamento a el.

Tan gran diuido e parentesco he antre nos e o Filho de Deus e nos. que como el seia ymagen de Deus. E nos aa ymagen de Deus somos fectos. E por en conuen que o que he fecto aa ymagen. que concorde con a ymagen. e non traga consigo en u1o o nome da ymagen.

Pois que assi he demostramos que he en nos esta ymagen. deseiando (paz). fitando os olhos da alma na uerdade. encendendo os nossos deseios. em amor de uerdade e achemoslo sempre na memoria e tragamoslo sempre na conciencia e en todo logar lhe demos honrra. A minha alma por esso he [f74] ymagen de Deus por que tal (don) el que pode todo caber en ella e pode seer parceyra del.

E non tan solamente a uoontade he (dicto) amor. e ymagen de Deus. por que se nenbra del e o ama e o entende. Mais por que se pode nenbrar del e conhocelo e o amar. ca el o fez tal. pero quando o faz sabedor el o he.

Non he cousa de quantas son tam semelhauil a alta sabedoria de Deus como a alma en que ha rrazon. Ca pela memoria. e pelo enten-dimento. e pela uoontade. sempre sta chegada e casada con aquela alta e Sancta Trindade. da qual con gram rreuerença falam os sanctos doctores. Empero non pode a alma ajuntarse con a Sancta Trindade. a menos de sse nenbrar dela e encenderse en ella e poer en ella todo seu amor e todo seu deseio.

E pois assy he nenbresse a alma do seu criador que he Deus. a cuia ymagen he fecta. E conhoscao e ameo e honrreo con o qual pode seer ben auentuyrada por sempre. Certamente ben auentuyrada he a alma. na qual Deus folga. e en cuia morada pousa . E por tanto he ben auen-tuyrada. por que pode dizer con uerdade esta palaura. O que me criou folga en minha alma e en minha morada. non poderia Deus negar folgança atal alma. Pois esto26assi he gram (marauilha)27cousa he de nos desempararmos nos méésmos. e buscarmos Deus nas cousas de fora de nos. teendoo tan acerca de nos. E nos meesmos se quisermos. staremos con el e en el. Certa cousa he. que el connosco he. Mais he e sta connosco per fe. ataa que mereçamos de o uéér per uista.