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Variantes identificadas como «melhor lingoagë»

O registo de variantes linguísticas no Dictionarium Lusitanicolatinum

2. Variantes identificadas como «melhor lingoagë»

Num número apreciável de entradas empregam-se expressões tais como «melhor diremos …» e «… que he melhor lingoagë» (ou outras, O REGISTO DE VARIANTES LINGUÍSTICAS NO DICTIONARIUM LUSITANICOLATINUM (1611) 129

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por A. Barbosa. Os trechos citados são seguidos pelas referências, entre parênteses, às respectivas colunas.

equivalentes a estas) para indicar a variante considerada de uso prefe-rencial. Seguem-se alguns exemplos, com breves comentários.

«Arraya do reyno. … Melhor diremos, Raya» (c. 108). A forma arraia está amplamente documentada na linguagem regional e popular: no Algarve, por exemplo, por Leite de Vasconcellos (1896: 334). Encontram-se as formas arrayada, arrayado, arrayados, etc. no Livro das obras de Garcia de Resende (1545/1994) e outros textos do século XVI e anteriores. Trata-se da prótese do a-, documen-tada até hoje em várias formas típicas da linguagem popular do Minho; veja-se, por exemplo, Gonçalves (1988: 14, 19, 57-62), que considera o emprego do a- protético especialmente comum antes dos sons representados por r-, l- e s-. A palavra raia é do latim *radia, derivado de radiu-. Neste caso, como em outros, A. Bar-bosa não escolhe a variante popular, que se caracteriza pela pró-tese, para a entrada principal, mas antes opta pela forma mais próxima à palavra latina de origem. No Vocabulario na lingua brasilica (ms. 1621), dicionário português-tupinambá, há duas entradas, a principal na letra A – «Arraya», e na letra R – «Raya ou Arraya… uide in verb. Arraya», o que indica que a forma mais comum entre os colonizadores do Brasil no início do séc. XVII era arraia.

«Catiuar. … melhor diremos Captiuar» (c. 208). As formas cativar e cativo (assim como as suas respectivas variantes gráficas com valores fonéticos correspondentes) estão bem documentadas nos séculos XII-XV. N’Os Lusíadas, Camões emprega só captivo (IV.52) e uma das formas do paradigma de captivar (I.79), mas alterna entre captiveiro (I.97, IV.53) e cativeiro (VIII.46). Garcia de Re-sende (1545/1994) emprega sete vezes formas como captivar, captivo, etc., e sete vezes formas como cativar, cativo, etc., o que indica, como também indicam outros textos, a alternância entre tais formas durante o século XVI. O étimo de cativar e de captivar é o latim captivare. Neste caso, como em outros, A. Barbosa opta pela forma erudita (o cultismo captivar) em vez da forma comum (cativar), que entrou na língua por via popular.

«Deformidade, aliàs disformidade. … Vide, disformidade, que hé me-lhor linguagem» (c. 325). No século XV, documentam-se as varian-tes disforme, desforme e diforme (Cunha 1994: 51). N’Os Lusíadas, Camões emprega disforme (V.39) e disformemente (V.81). O prefixo dis-, do latim dis-, que exprime a noção de negação, é típico, nesta

forma, de vocábulos portugueses provindos do latim por trans-missão erudita, sendo que, por via popular, dis- evoluiu normal-mente para des-, prefixo de grande vitalidade e diversidade de sentido na formação de derivados na linguagem comum. Neste caso, como em outros, A. Barbosa dá preferência à forma culta, com o prefixo na forma dis-, em vez de des-.

«Desemuergonhada cousa. … Vide Desauergonhada cousa, que hé me-lhor linguagem» (c. 363). A forma desavergonhado (representada pela variante gráfica desaavergonhado) encontra-se na Vida de Sam Bernardo (52.32), do século XV. Garcia de Resende (1545/1994) emprega quatro vezes formas do verbo envergonhar, mas nenhuma vez qualquer forma do verbo avergonhar. No fim do século XVI, Frei Pantaleão d’Aveiro emprega a palavra desenvergonhado no Itinerario de Terra Santa (f. 36 v., de acordo com Pereira 1913: 94). O uso do verbo vergonhar com o prefixo a- em vez de em- é menos comum, e por isto talvez sentido como mais culto, sendo possivel-mente por este motivo que A. Barbosa dá preferência à forma desavergonhada, em vez de desemvergonhada. (Por outro lado, as formas en- e em-, em vez de in- e im, e a forma des-, em vez de dis, indicam transmissão por via não culta; vejam-se os comentários referentes a «Deformidade, aliás disformidade…» c. 325, supra, e «Enquirição, … vide Inquirição», c. 452, infra).

«Encorrer. … Melhor lingoagem he cair: assi como, … cair em algum peccado. … cair em doença. … cair nas mãos do inimigo &c.» (c. 437). A palavra encorrer é forma divergente antiga de incorrer, do latim incorrere. A alternância entre os sons representados por en- (ou em-) e in- (ou im-) em posição inicial é comum na linguagem antiga, sendo mantida, actualmente, esta alternância na linguagem popular e regional. A antiga forma encorrer não se encontra em Houaiss 2001, mas ainda era empregada no século XVI (por exemplo, por D. Frei Amador Arrais, Diálogos, III, capítulo 23: «Em quanto ódio e miséria encorreram os Judeus…»), sendo preservada na linguagem regional (por exemplo, no Alen-tejo, segundo Pires 1906: 174). A substituição da vogal, ou ditongo, que se representa por en- (ou em-), em favor da vogal nasal alta anterior (representada por in- ou im-) é comum na linguagem popular do Minho (Gonçalves 1988: 23, 86-89), onde in- também substitui am- nalgumas palavras («imparo» por amparo, por exemplo) e ocorre como prefixo em formas típicas da linguagem regional popular («inligar» por ligar) e, por vezes, no lugar de e-,

ex-, i- e i(l)- (por exemplo, «inducado» por educado, «incelência» por excelência, «ingual» por igual, «inlusõ» por ilusão, etc., ibid.). N’Os Lusíadas, Camões emprega as formas emparo (por amparo, II.96 e IV.90), empede (VIII.92) e empedem (V.96), emperador (VII.36 e 57; IX.79), incurta (IX.20), infiado (I.37 e II.49) e infia (VI.87), embora também use formas de impedir (em sete casos), imperial (III.78) e império (17 vezes, sem excepção), enfia (VI.98), mantendo, porém, sem alternância a maioria das palavras iniciadas por en- (e em-) ou in- (e im-). Em vez da forma antiga e popular encorrer (que era comum na sua época e região), A. Barbosa opta por outra entrada, cair em … .

«Enquirição, … Vide Inquirição, que he melhor lingoagem…» (c. 452). A julgar pelas informações em Cunha (1982: 438), as formas em en- desta palavra eram mais comuns nos séculos XIII-XIV, as em in- (ou outra variante gráfica representando a vogal nasal alta anterior) a partir do século XV. As formas da respectiva família lexical provêm do latim inquirere, de quaerere, e de derivados destas, por via semi-erudita. Como de costume, A. Barbosa opta pela forma mais semelhante à palavra latina (neste caso, como se encontra na forma mais moderna, com in- em vez de en-).

«Reuogar. … Desdizerse he melhor linguagem» (c. 943). Encontra-se em textos a partir dos séculos XIII e XIV a palavra revogar, do latim revocare, por via semi-erudita, assim como desdizer (de base latina, dicere) e outros derivados afins (desdizedor, desdito e, no século XV, desdizimento). Talvez por causa do elevado uso de deri-vados baseados em dicere, A. Barbosa dá preferência, como forma de entrada principal, a desdizer (não obstante a forma não erudita do prefixo des-), em vez de revogar.

«Tanoeyro. … Melhor diremos Tonoeyro, de Tonel» (c. 1018). Em português, a palavra tonel provém do antigo francês tonel, hoje tonneau. Neste caso, A . Barbosa dá preferência à forma do deri-vado que mais se assemelha à raiz do étimo.

3. Variantes seguidas por vide, que aponta para a forma