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Renovação dos discursos – Novas formas de interacção

e legitimação dos interlocutores

MARIA ALDINA MARQUES (Universidade do Minho) mamarques@ilch.uminho.pt

nesta questão um dos fundamentos das suas investigações, enquanto uma das primeiras questões que se colocam ao investigador na defi-nição do próprio objecto de análise. Com efeito, a actividade linguís-tica realiza-se numa heterogeneidade de produções discursivas que tornam empírica e teoricamente necessária a determinação de tipos/géneros de discurso1«relativamente» estáveis e recorrentes e em função dos quais se pode classificar cada discurso particular. Nesta perspectiva, a questão dos tipos/géneros discursivos impõe-se não como um ponto de chegada da investigação mas como ponto de partida para a própria actividade de análise que, na construção de diferentes tipologias, procura assim confinar a diversidade de produ-ções discursivas.

É por isso que a necessidade de estudar e sintetizar, de algum modo, as características e regularidades de funcionamentos discur-sivos tem colocado a questão da tipologização discursiva no centro das discussões da análise linguística do discurso, numa preocupação que não é recente. Esta era já a perspectiva de Benveniste para quem o interesse pelos discursos passava necessariamente pelo estabeleci-mento de tipologia(s) que permitisse(m) passar da diversidade e hete-rogeneidade desses mesmos discursos realizados à «homogeneidade», ao paradigma, do tipo discursivo.

Abandonando ou completando a visão conteudística das tipologias tradicionais, a análise do discurso tem desenvolvido trabalhos que revolucionam a problemática em análise.

Desde logo interessa uma primeira questão da distinção entretipo e género. Não sendo uma distinção adoptada por todos os investiga-dores e não partilhando sequer as definições propostas em trabalhos que os utilizam, «géneros» e «tipos» de discurso constituem matéria de discussão, que, no estado actual dos conhecimentos, mantém toda a pertinência. No entanto, têm-se registado avanços significativos e, se para alguns autores «tipos» e «géneros» de textos/discursos repre-——————————

1 Usaremos o termo «discurso» globalmente, sem considerar uma possível distinção relativamente ao termo «texto», entendendo-o como uma entidade linguístico-pragmática organizada segundo duas vertentes: sequencial e configuracional, um conceito que Jean-Micchel Adam (1990: 98) vai tomar de Paul Ricoeur: «Par la notion de “configuration” Paul Ricoeur a rendu essentiellement compte du fait qu’un récit possède, à la base de son intelligibilité, non seulement un caractère épisodique (venir après), mais également un caractére configuré (former un tout). Étendue à la textualité en générale, cette notion peut nous aider à théoriser linguistiquement le “tout de l’énoncé fini” (Bakhtine).»

sentam conceitos diversos e para outros são quasi-sinónimos2, há já um largo consenso sobre a necessidade de os distinguir. Tipos e géneros são modos diferentes de fazer funcionar a língua nos discursos.

Não significa, porém, que a reflexão sobre esta problemática se paute pela unanimidade e consenso face aos resultados que vão sendo aventados. Bem pelo contrário, a pluralidade de pontos de vista tem dado origem a diferentes tipologias ora complementares ora divergentes.

São essencialmente duas as razões encontradas e avançadas como justificativas dessa diversidade. Por um lado, ela é fruto de perspec-tivas diferentes, de critérios tipológicos diversos e, por outro, da própria natureza heterogénea dos discursos, dificilmente redutíveis a uma classificação única e finita, o que leva Maingueneau (1984: 16) a considerar a imperfeição e desajuste de uma tipologia uma conse-quência intrínseca a qualquer tentativa de classificação:

«Rien d’étonnant si les typologies, dès qu’on les scrute d’un peu près et qu’on veut les app. liquer, volent en éclats, laissant app. araître un immense entrelacs de textes…»

Quanto ao conceito de género3, com largos pergaminhos na história da Literatura, a centralidade que adquire nos estudos sobre a linguagem advém, em primeiro lugar, dos trabalhos de Bakhtine4, onde repetidamente se discute a natureza complexa e heterogénea, da interacção verbal:

«Nous apprenons à mouler notre parole dans les formes du genre et, entendant la parole d’autrui, nous savons d’emblée, aux tous premiers mots, en pressentir le genre (…) dès le début, nous sommes sensibles au tout discursif (…). Si les genres de discours n’existaient pas et si nous n’en avions pas la maîtrise, et qu’il nous faille les créer pour la première fois dans le processus de parole (…) l’échange verbal serait quasiment impossible.» (Bakhtine, 1984: 285) (negrito meu) RENOVAÇÃO DOS DISCURSOS – NOVAS FORMAS DE INTERACÇÃO E LEGITIMAÇÃO […] 191

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2 É uma discussão que sai agravada pelo facto de, por vezes, subscrevendo a distinção de conceitos, o termo «tipo» ser englobante. Fala-se, então, de tipos funcionais e formais, por exemplo.

3 Também ele intrinsecamente heterogéneo, como lembra Maingueneau (1998: 56): «Les genres sont des institutions de parole socio-historiquement définies, leur insta-bilité est grande et ils ne se laissent pas ranger dans des taxinomies compactes».

4 A discussão actual sobre a autoria dos textos tradicionalmente atribuídos a Bakhtine tem levado alguns autores a optar pela indicação de Volochinov ou, mantendo uma neutralidade sempre discutível, pelo par Bakhtine/Volochinov. Continuaremos a usar aqui a referência a Bakhtine, ainda que cientes da problemática que levanta.

Bakhtine acentua a natureza sócio-histórica dos géneros, que pré-existem a cada acto discursivo, escolhas possíveis que a historicidade do uso da língua foi configurando, e o conformam e possibilitam, enquanto modos de dizer, de fazer discursivo, que interferem na produção e na interpretação do discurso, em interacção com o sistema funcional da língua.

A oposição género/tipo de discurso é apresentada repetidamente como uma classificação externa e interna, respectivamente, a partir dos critérios seleccionados que têm por base a situação discursiva ou a arquitectura interna do discurso. A classificação externa5 usa como critérios6: (a) o modo de transmissão; (b) os interlocutores (c) o contexto linguístico-social e intertextual em que se inscreve e (d) a intenção do falante.

Assente a necessidade de distinguir «géneros» e «tipos» discur-sivos, a relação entre ambos e o lugar que ocupam nas construções discursivas não têm, de modo algum, sido sempre adequadamente apresentadas e evidenciadas. Tomados como exterioridade ao texto, os géneros discursivos foram repetidamente preteridos, em momentos fulcrais de análise linguística do discurso, em favor de uma tipologia interna, configurada em «tipos de discurso».

Essa é, aliás, a perspectiva adoptada por Bronckart (1996). Su-blinha que os tipos discursivos entram na «composition des genres» ——————————

5 Os tipos de discursos, determinados a partir de uma classificação interna distri-buem-se por diferentes tipologias. Se Isenberg marcou a discussão no seu início, ao apontar, entre outras características, a necessidade de homogeneidade tipológica, a proposta de Jean-Michel Adam, sem deixar de suscitar críticas, recolocou a questão em termos da heterogeneidade composicional dos discursos, negando, na verdade, o próprio conceito de tipo para lhe contrapor o de sequência. Sobre esta questão veja-se, por exemplo, Isenberg, 1987, Adam, 1992; 1996; Filliettaz e Grobet, 1999 e Fuentes Rodri-guez, 2000.

Laurent Fillietaz e Anne Grobet (1999: 240 falam de tipos de discurso (distintos de géneros) como «représentations stables et sous-jacentes aux configurations discursives qui se manifestent dans les productions langagières» diversos das «sequências» que são as realizações dos tipos de discurso. Em nota de rodapé entendem sublinhar que esta estabilidade é considerada numa perspectiva sincrónica, porque numa perspectiva diacrónica estão, tal como os géneros, sujeitos à mudança.

6 Jean-Michel Adam (1998: 45), a propósito do género epistolar, apresenta as coor-denadas de classificação dos géneros: «Les genres épistolaires sont, comme tous les genres, directement liés aux conditions de l’interaction: aux paramètres du temps et du lieu social, aux interlocuteurs engagés dans l’interaction, à l’objet du discours et, de plus, à une langue donnée. Cet ensemble complexe de paramètres paragmatiques complé-mentaires impose ses lois à la réalisation du texte particulier de chaque lettre.»

(p. 56), mas, acrescenta, «sont définissables indépendamment des «genres», justificando esta posição pelo facto de que «un segment de type narratif peut, par exemple, être identifié dans des textes relevant de genres aussi différents que l’éditorial, le roman, le fait divers, etc.» (p. 61). À mesma questão, onde incluem aliás este autor, se referem, também, Laurent Filliettaz e Anne Grobet (CLF, 21 :231)

«On a vu qu’Adam (1992), Bronkhart (1996) et Roulet (1991b) écartent la problématique des genres de leur champ d’investigation, en soulignant qu’elle relève plutôt du contexte actionnel que du texte lui-même.» Discordando de tal exterioridade7, os autores avançam argumen-tos para justificar que «la prise en compte des genres constitue au contraire un aspect incontournable de l’étude de l’hétérogénéité dis-cursive»8, p.231, na medida em que afectam directamente quer os tipos de sequências dominantes quer a sua organização interna, enquanto determina, por exemplo, a ordem global das partes cons-titutivas, ou ainda, influenciam a percepção das próprias sequências. A opinião assim apresentada recolhe ainda o testemunho de diferentes investigadores a propósito dessa relação, que se exerce em três níveis: «Premièrement, on peut relever que les propriétés génériques d’un discours exercent une influence sélective sur les types de séquences qui y seront dominants. Par exemple, les discours scientifiques privilégient les séquences délibératives, (…). Deuxièmement, (…) le genre constitue également un facteur influençant l’organisation interne des séquences. Par exemple, la forme particulière d’une séquence narrative varie selon le genre dans lequel elle se réalise roman, (…). Troisièmement, on peut souligner que les genres jouent un rôle important dans le repérage des séquences.» (pp. 231-232)

A precariedade das tipologias discutidas não invalida, como já foi referido, a necessidade da tipologia como ponto de partida para abordar a heterogeneidade composicional dos discursos. Apenas, a determinação e análise das produções discursivas, partindo desde logo do conceito de género, deverá prever a variabilidade no elenco dos géneros identificados e a variabilidade dentro de cada género.

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7 Os próprios autores citados têm vindo a defender posições diferentes. Veja-se, a propósito, a nota anterior.

8 Os autores retomam na página 251 a mesma questão: «l’analyse générique ne relève pas directement de la question des typologies discursives ni de celle de la séquen-tialité, mais (…)elle n’est pas sans liens avec la problématique compositionnelle.»

Retomamos aqui a questão dos géneros discursivos, porque, ao definir um género de discurso como a configuração de escolhas que se cristalizam progressivamente no quadro de um grupo social/linguís-tico dado, o entendemos como cristalização temporária. Porque a instabilidade dos géneros – produto sócio-histórico – é factor e ao mesmo tempo consequência da mudança. Porque a memória social dos discursos está, pelo menos em parte, armazenada nos géneros. E desta forma a variabiliadade social e cultural, a mudança em geral que se opera nas sociedades fará necessariamente emergir novas formas, mesmo novos géneros, onde os discursos ganharão também novas configurações.

A sociedade moderna tem posto em destaque uma nova forma de comunicação com suporte electrónico, de que o correio electrónico, vulgo e-mail, constitui um dos meios mais relevantes. Lembrando que o modo de transmissão é determinante na classificação dos géneros, poder-se-á falar de um discurso electrónico emergente?

É uma questão que levanta uma série de interrogações: de que modo as condições de produção interferem na construção destes discursos, ou seja, de que modo este novo parâmetro influencia a construção discursiva? Ou poder-se-á falar da Internet em geral, e do «e-mail» em particular, como potenciador de mais um género, neste caso um subgénero do género epistolar? Que especificidades o indi-vidualizam?

Interessam-nos as implicações que as novas situações discursivas têm em termos da construção enunciativa, da construção das imagens dos (inter)locutores, que se realiza no discurso e pelo discurso, num dinamismo interactivo a que Vion (2001: 350 ) se refere como «res-piration énonciative». Pretendemos, assim, assinalar esse fenómeno particular do discurso em que «le positionnement énonciatif des sujets se modifierait de manière fréquente et affecterait le déroulement discursif au point de faire apparaître une sorte de pulsion interne.» (idem, ibidem).

O género epistolar – a que poderemos agregar, em termos de tipologias existentes, estas novas formas interaccionais em suporte electrónico – é uma forma discursiva complexa, ainda que com carac-terísticas muito específicas. O seu quadro comunicativo individua-liza-se, face a outros géneros discursivos, por impor a ausência do alocutário e, daí decorrendo, ter como único suporte a escrita. No plano discursivo, numa perspectiva composicional, é marcado,

nomeadamente, pela explicitação dos interlocutores9, em estruturas a que Jean-Michel Adam (1998:41-42) se refere como «constantes composicionais»:

«…la forme épistolaire présente un certain nombre de constantes compo-sitionnelles. (…). Dans une perspective pragmatique et textuelle, il est nécessaire de partir de l’existence d’une macro-unité: le texte dialogal. Ce dernier comporte un plan de texte contraignant: des séquences phati-ques d’ouverture et de clôture, d’une part, des séquences transaction-nelles constituant le corps de l’interaction, d’autre part. (…) On distinguera donc, très simplement, dans toute forme épistolaire, le plan de texte de base suivant :

Ouverture Exorde Corps de la lettre Péroraison Clôture

Termes d’adresse Clausule &

& Indications de signature

lieu et de temps

<1> <2> <3> <4> <5> Facultatives et plus ou moins développées, les parties du plan de texte <2> et <4> sont des zones discursives de transition (introduction-prépa-ration et conclusion-chute) entre les moments initial et final à dominante phatique et le corps de la lettre proprement dit.»

A complexidade advém da diferente combinação dos elementos usados como critérios de classificação, originados em diferentes situa-ções sociais de interacção:

«…c’est la nature même de l’ensemble des paramètres énonciatifs qui engendre des différences génériques majeures d’abord et l’infinie variété ensuite.» (Jean-Michel Adam (1998: 46)

As tipologias são, por isso, diversas e, por vezes, mesmo assumi-damente inconclusivas10.

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9 A não explicitação discursiva do locutor implica um subgénero: a carta anónima. 10 Jürgen Siess (1998: 7-8), passe a diferente terminologia, aborda o «género epis-tolar» como: « «un type de discours qui se diversifie en un certain nombre de genres de discours: lettre ouverte, lettre publicitaire; lettre privée, etc., eux-mêmes divisés en sous-genres: par exemple, pour la catégorie du privé, lettre amoureuse, amicale ou familiale». A não exaustividade explícita acaba por ser justificada, com uma citação: «en raison de leur nature sócio-historique les genres (…) sont instables et «ne se laissent pas ranger dans des taxinomies compactes» (D. Maingueneau).»

Também Kerbrat-Orecchioni (1998: 15) mostra a precariedade e complexidade do género: «La communication épistolaire constitue un «genre du discours» qui comporte

Para a questão que aqui nos ocupa, interessa-nos estabelecer alguns subgéneros fundamentais, determinados a partir de critérios que se organizam cumulativamente. A distinção entre carta pública e carta privada11, é talvez a classificação mais geral12 a partir da qual outros subgéneros se individualizam. Não sendo fácil estabelecer fronteiras, o quadro de recepção e o meio de comunicação usado13são os critérios de base, articulados com o «objectivo do locutor». E não é fácil estabelecer fronteiras porque uma carta privada, mais do que poder ser tornada pública – como é o caso da correspondência de escritores, políticos, etc. que tendo sido privada, foi, posteriormente, dada à estampa –, pode respeitar todos os parâmetros da carta privada e ser, no entanto, construída para publicação14. A carta privada ——————————

nombreuses espèces: lettres personnelles, privées ou intimes, vs lettres d’affaires, admi-nistratives ou protocolaires ; lettres d’amour ou de rupture, de faire part ou de condo-léances ; lettres de recommandation, de réclamation, de licenciement ; lettres circulaires, lettres anonymes, lettres ouvertes … sans parler du fait que les correspondances «authentiques» ont inspiré ces simulations littéraires que sont les «romans par lettres».» 11 Ainda que outras tipologias se apresentem, com base noutros critérios, como o de Adam (1998: 46): «On peut probablement distinguer trois premiers grands genres épistolaires séparés par les frontières graduelles de l’intime et du social, c’est-à-dire par la nature des relations, d’une part, entre les correspondants et, d’autre part, de ces derniers aux objets de discours traités.» Este critério possibilita-lhe apresentar uma tipo-logia constituída por três subgrupos a que acrescenta outros dois com base na existência de um destinatário colectivo e da ficcionalidade da construção epistolar, que coloca este subgénero como «género segundo» na distinção proposta por Bakhtine: a) correspon-dência íntima; b) corresponcorrespon-dência socialmente distanciada; c) corresponcorrespon-dência de negó-cios; d) correspondência aberta; e) literatura epistolar.

12 Estamos, obviamente, a fazer economia de uma vertente fundamental do género epistolar: o romance epistolar, que constitui um subgénero próprio.

13 É a este critério que Ruth Amossy (1998: 74) recorre quando afirma: «On peut distinguer entre la lettre au sens propre du terme telle qu’elle s’échange dans une corres-pondance livrée à la poste, et la lettre comme forme empruntée par un discours publié et diffusé dans des circuits étrangers au courrier ordinaire.» Mas são fronteiras graduais entre dois pólos: o íntimo e o social.

14 Neste caso, o meio secunda o objectivo. Os exemplos mais frequentes aparecem em época eleitoral. É de lembrar em passado recente a publicação, com fins obviamente políticos, de uma carta que, pelas características da relação interpessoal e conteúdo do texto, se classificaria como «carta de amor». Em sentido inverso, e mais frequente, está a carta de propaganda/publicidade que chega a cada eleitor levada pelo carteiro, em envelope fechado, fingindo uma relação interpessoal próxima que não existe. Tradicio-nalmente, o discurso jornalístico, discurso público com características fundamentais, dá espaço ao privado nas «cartas ao director» que assim abrem a porta a considerações pessoais, que não vinculam senão o próprio autor da carta. A formalidade da relação instituída é marcada na própria designação, aproximando este género discursivo das

engloba os subgéneros das cartas pessoais e das cartas oficiais, segundo o tipo de relação interpessoal construída e, pelo menos em parte, o conteúdo15, particularmente na forma de discursivização adoptada. Impôs-se como forma quase única, em tempos não muito recuados, de comunicação à distância.

A carta pública, por sua vez, implica uma abertura do quadro comunicativo, no seu formato de recepção, para usar a terminologia goffmaniana. Nas variantes de carta aberta, de carta publicitária ou de carta ao director, pressupõe sempre, a par de participantes não ratificados16, um destinatário colectivo, porque é um discurso desti-nado à difusão em comunidade alargada, mesmo quando «finge» um alocutário específico, que, na verdade, não passa de uma «désigna-tion-prétexte ou postiche d’un interlocuteur unique. En fait, le desti-nataire véritable de la lettre ouverte est représenté par la commu-nauté des lecteurs.» (Adam, 1998: 50). A relação interlocutiva é distante e formal, em consequência do estatuto assumido pelos interlocutores: «Dans la lettre ouverte, l’allocutaire direct et indirect représentent un groupe ou un courant d’opinion» (Amossy, 1998:75) e o locutor é uma instância social (o escritor, o intelectual, …) a figura pública mais do que o indivíduo na sua unicidade. É um indivíduo porta-voz.

E por essa razão, ainda que o aceite, a verdade é que a carta aberta não prevê/exige uma resposta.

Neste caso específico, a contaminação de géneros parece inevi-tável, enquanto o seu objectivo, sempre consensualmente apresen-tado, é criar ou alimentar um debate público17. Tal particularidade coloca-a numa zona de «marginalidade» mas integra-a, de pleno direito, no chamado discurso público.

A análise do discurso18 tem vindo a interessar-se pelo género epistolar, colocando a questão do estatuto dialogal ou monologal da carta, numa análise contrastiva da carta e da comunicação face a face. RENOVAÇÃO DOS DISCURSOS – NOVAS FORMAS DE INTERACÇÃO E LEGITIMAÇÃO […] 197

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exposições a entidades abstractas. Por outro lado, em termos de formato de recepção, permanece o destinatário colectivo para além do alocutário formalmente convocado. 15 Reconhecendo que as variações de conteúdo não podem estar na base da cons-trução tipológica, não podemos deixar de lhes atribuir, no entanto, alguma importância, em coordenação com outros parâmetros básicos.

16 São os «bystanders» que participando do quadro espácio-temporal da comuni-cação são, no entanto, dela excluídos.

17 Cf. Maingueneau, 1998: 58.

18 Estamos a fazer referência a uma área de estudos linguísticos que tem no discurso o seu objecto de análise, sem implicar nenhuma corrente teórica em particular.