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3 PRÁTICAS EUGENÉSICAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO

3.1.4 Psicograma individual

Denominava-se psicograma individual o estudo das propriedades biológicas e psicológicas de uma pessoa, levando-se em conta a observação direta do seu comportamento e seus antecedentes hereditários e pessoais, sendo o mesmo composto por três etapas: a arvore genealógica, a curva da vida e o exame direto.461

Através do psicobiograma, a concepção eugâmica elaborava um juízo relativo à personalidade biossocial do sujeito e embasava o aconselhamento no sentido de direcionar cruzamentos benéficos ao melhoramento da raça, o que considerava um dos elevados fins da instituição matrimonial.462

A curva da vida tinha como principal objetivo demonstrar as oscilações físicas e psíquicas do indivíduo frente às diversas variáveis surgidas durante sua existência, obedecendo a ordem cronológica, através da coleta de dados relativos à conduta externa do sujeito, desde o momento do nascimento até a data da realização do procedimento, demonstrando, através da observação das consequências dos seus atos as propriedades psicológicas de sua personalidade.463

Considerava-se que esta começava a se destacar na infância e iria completando o seu desenvolvimento no transcurso da vida do sujeito, sofrendo ingerências diversas ao chegar à puberdade, na idade núbil, cristalizando-se na idade adulta, atingindo sua plenitude na maturidade, e vindo a se deteriorar progressivamente na terceira idade. Sendo assim a investigação das patologias graves que acometeram o indivíduo durante a sua vida eram de suma importância,

459 Ibid., p.113. 460 Ibid., loc. cit. 461 Ibid., p. 115. 462 Ibid., loc. cit.

463 NÁGERA, A. Vallejo. Eugamia: Seleção de Novios. San Sebastian: Española, 1938, p. 115 – 116,

assim como as datas e circunstâncias em que ocorreram, seu grau de reversibilidade, tempo de duração e sequelas que deixaram.464

A principal dificuldade inerente a este procedimento dizia respeito geralmente ao nível de informação do analisado, visto que muitas vezes os entrevistados davam maior ênfase aos fatos meritórios e ocultavam os que lhe imputavam deméritos.465

Por outro lado, as qualidades relativas ao temperamento e caráter eram deduzidas a partir das reações individuais deflagradas pelos estímulos ambientais, assim como pelo comportamento habitual do sujeito. Defendia-se que as pessoas que respondiam emotivamente aos estímulos externos até chegar à cólera ou que, por outro lado, permaneciam impassíveis frente a emoções profundas apresentavam estas reações no plano da psicoestesia, podendo seu temperamento variar entre o esquizotímico e o ciclotímico.466

Desta forma, acreditava-se que a partir da conduta social eram deduzidas as relações entre o instinto e a inteligência e entre o “eu” e o mundo externo, o que refletia a estrutura do caráter do indivíduo. Por outro lado supunha Nágera, ser muito mais fácil diagnosticar o tipo de temperamento do que o de caráter, uma vez que não existia uma classificação biopsíquica satisfatória para este último, assim como o conjunto de suas qualidades do caráter se confundiriam facilmente com os aspectos temperamentais.467

A conduta escolar do indivíduo, avaliada durante toda vida discente do candidato, era valorada de acordo com sua aplicação aos estudos, seu índice de aproveitamento, as conquistas exitosas e as punições disciplinares porventura auferidas. Ao contrário, o cômputo dos fracassos escolares, era relevado em detrimento da análise de suas reais causas e proporções, inclusive tendo em conta o fato de que um mau desempenho funcional em uma área poderia ser compensado por uma excelente atuação em outra.468

Por outro lado os êxitos e fracassos profissionais dos aspirantes a matrimônio eram rigorosamente considerados, uma vez que cabia ao conjugue varão possuir condições financeiras para arcar com uma família, sendo de primordial

464 Ibid., p. 116. 465 Ibid., loc. cit. 466 Ibid., loc. cit. 467 Ibid., p. 117.

importância a conduta profissional do candidato, assim como a troca de funções e o sucesso auferido em função disto.469

A vida amorosa do sujeito também era apreciada, quando se observava se o mesmo seria refratário às paixões ou se enamorava facilmente, se havia assumido muitos compromissos e a duração destes, assim como os motivos que propiciaram o rompimento. A idade do pretendente, assim como o fato de não se haver casado até então, quando na maturidade, também eram avaliados, assim como o estado de viuvez, o grau de felicidade do antigo casamento e os motivos da morte do conjugue.470

Uma das formas mais interessantes de diagnóstico da personalidade individual seria através do programa médio de vida cotidiana onde as reações individuais frente às diversas situações da vida diária eram valoradas, como a tendência à provocação de conflitos familiares ou sociais, a delinquência, o ócio, a extravagância, o que revelaria a reatividade pessoal do sujeito, importante elemento de juízo no psicograma.471

O estado de ânimo também era ponderado, assim como a alternância de humor. A vida sexual pregressa era muito valorizada nesse estudo, a despeito da dificuldade na coleta dos dados, especialmente no que tangia aos complexos psicoafetivos sexuais e as experiências vivenciadas, muitas vezes só descoberta através da exploração psicanalítica.472

O registro da curva da vida iniciava-se com a idade, a profissão, o estado civil, o número de irmãos e a posição que o analisado ocupava entre eles. Continuava relacionando os antecedentes patológicos, os referentes ao desenvolvimento físico e motor, e aqueles relativos à escolaridade e profissão. Na sequência eram descritos os programas médios relativos a um dia de trabalho e um dia festivo, no que eram seguidos pelos costumes, aptidões e habilidades no que tangia às questões éticas, religiosas, estéticas, políticas e científicas.473

No item relativo à sociabilidade eram avaliadas a filia ou repulsão pela vida social, a frequência a clubes, cafés, atividades campestres, viagens, passeios. A maneira como se apresentava na sociedade também era aferida, assim como a

469 Ibid., p. 118. 470 Ibid., loc. cit. 471 Ibid., loc. cit. 472 Ibid., p. 119.

forma arrogante, negligente, humilde, simpática de portar-se no trato social. A forma elegante de trajar-se também era observada, assim como o gosto pela dança, a realização de viagens longas imotivadas, muitas vezes interpretadas como fugas, e a tendência à provocação de conflitos familiares ou sociais.474

Em seguida, eram enumeradas as tendências patológicas porventura existentes tais como o alcoolismo, a toxicomania, a insônia, a vadiagem, e as tendências suicidas. O estado habitual de ânimo também era considerado, tais como a apatia, o mau humor, a alegria ou tristeza frequente, assim como mudanças bruscas e ostensivas de comportamento.475

A adaptabilidade ao meio ambiente também era aferida, através do conceito que tinham os familiares a respeito do avaliado, assim como seus companheiros de trabalho e amigos, além de ser computada a tendência a trocar frequentemente de companhia e de meio ambiente social. Informações também sobre o serviço pré-militar e militar eram registradas, tais como seu caráter voluntário ou obrigatório, graduações, recompensas e certificações alcançadas, participações em guerras e o respectivo desempenho.476

Quanto aos antecedentes sexuais, entre os que eram valorizados estavam a idade em que surgiu a puberdade, a época da iniciação sexual, a idade das primeiras relações amorosas platônicas, a constância nos relacionamentos, os desenganos amorosos com suas naturezas e consequências, a influência dos êxitos e fracassos nos relacionamentos sobre o caráter do avaliado, formas de início da vida sexual ou existência de virgindade, tendência a homo ou heterossexualidade, presença de impotência ou medo da mesma, ciúme excessivo, motivos dos desenlaces amorosos passados, e as aspirações a respeito do que almejava conseguir através do matrimônio.477

Em última análise, as ideias de Galton acabaram sendo conhecidas como “eugenia positiva”, no sentido em que visavam sugerir, facilitar, predizer e mesmo ordenar legalmente os casamentos biologicamente condutíveis. Porém no alvorecer do século XX as noções sobre o planejamento familiar voluntário e estruturas

474 Ibid., p. 120. 475 Ibid., loc. cit. 476 Ibid., p. 120 - 121.

governamentais positivas seriam transfiguradas numa constelação de pensamentos negativos e coercitivos inteiramente diferentes.478

Embora normalmente a teoria eugênica seja responsabilizada por carrear atitudes e práticas racistas e elitistas, não se pode esquecer que também serviu de ponto de apoio para atitudes liberais e progressistas, tais como a maternidade consciente, a educação sexual, o direito da mulher a controlar seu corpo, a democratização e a difusão do planejamento familiar e a contracepção.479

Galton faleceu em 1911 e com sua morte os princípios da eugenia positiva e dos casamentos regulamentados também foram desaparecendo do cenário principal do palco eugenista. Não tardou, porém, para que outras mentes “mastigassem” suas ideias e as cuspisse como algo macabro, deturpando inclusive a ideia original. As novas táticas incluiriam a segregação, a deportação, a castração, a proibição marital, a esterilização compulsória, a eutanásia passiva e em última análise o extermínio.480