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Quadro de Formações Discursivas – Tema Filhos

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3.4 Análise das Cartas

3.4.2 Quadro de Formações Discursivas – Tema Filhos

Para que articulemos numa mesma análise temas que julgamos relevantes, fizemos nestes próximos blocos uma reflexão em conjunto, trazendo para o estudo as principais formações discursivas emergentes sobre a questão da cura de filhos, salvação e problemas de rejeição em consonância com os objetivos apontados.

Nas transcrições apresentadas nos Anexos VII, VIII e IX, tratamos das cartas que reportam aos filhos, conforme apontado na metodologia deste trabalho. Falamos, então, da maternidade, deste sentimento/atitude que é construido na cultura e está intrínseco ao imaginário coletivo como instinto maternal. Ou seja, as mulheres já nascem com ele, é uma extensão natural da própria natureza feminina.

A convicção de que o amor materno é inato se dá basicamente por duas razões. Uma delas foi apontada no primeiro capítulo deste trabalho quando nos reportamos à mulher do passado e ao modelo de amor materno conhecido. A segunda se refere à própria constituição da família. Se um homem e uma mulher não têm filhos, eles são um casal. Caso contrário, já se constituem em uma família. Essa é uma cobrança recorrente na nossa sociedade, é só nos reportarmos às perguntas sempre tão frequentes aos recém- casados. Quando terão um bebê? Uma ação de consequência, de causalidade.

Cabe pensar também sobre a relação mulher x maternidade. O que fica em evidência? Lemos (2009, p.92) escreve sobre isso e nos explica que a palavra mãe “é vista como mulher protetora, serviçal e cuidadosa, mas no caso da maternidade a mulher fica normalmente escondida, uma vez que a característica que recebe destaque é a maternidade e não o ser mulher”.

A representação social da mãe perfeita, carinhosa, generosa ensina que o amor de mãe é, de fato, algo inato, e esta representação é reforçada no campo religioso quando ensina e perpetua o discurso que a mulher deve ser boa mãe e boa dona de casa, exemplo da mulher cristã. As desigualdades de gênero se mostram de forma clara se observarmos a maneira como

muitas mulheres vivenciam a maternidade. Muitas se culpam por não passarem tempo “suficiente” com seus filhos, por razões diversas. Essa culpa acarreta outros problemas relacionados à sua própria individualidade, por isso não fazem nada em benefício próprio, como cuidar do corpo ou simplesmente não fazer nada.

Este é um assunto que gera muita polêmica, inclusive entre as próprias mulheres, pois só de pensar que não desejam ser mães ou não são tão dedicadas quanto a sociedade espera que sejam, já se deslocam insensivelmente do seu papel social. Este discurso todo serve para questionar de novo as verdades aceitas e analisar todos os sistemas de pensamento.

A filósofa francesa Elisabeth Badinter, uma das vozes mais importantes e controversas do movimento feminista francês, recebeu muitas críticas ao escrever o livro: Um amor conquistado: o Mito do amor Materno (1985). Nele, ela questiona se o amor materno é mesmo um instinto, uma tendência feminina inata, ou depende, em grande parte, de um comportamento social, variável de acordo com a época e os costumes. A autora chega à seguinte conclusão:

O amor materno não constitui um sentimento inerente à condição de mulher, ele não é um determinismo, mas algo que se adquire. Tal como o vemos hoje, é produto da evolução social desde princípios do século XIX, já que, como o exame dos dados históricos mostra, nos séculos XVII e XVIII o próprio conceito do amor da mãe aos filhos era outro: as crianças eram normalmente entregues, desde tenra idade, às amas, para que as criassem, e só voltavam ao lar depois dos cinco anos. Dessa maneira, como todos os sentimentos humanos, ele varia de acordo com as flutuações socioeconômicas da história (BADINTER, 1985, p.22).

Em contraponto ao pensamento de Badinter, citemos Leonardo Boff, quando fala sobre os temas da complexidade, da interconexão de todas as coisas entre si e da centralidade da vida, colocando a mulher como referência:

A mulher capta e vivencia a complexidade e a interconexão do real por instinto e por uma estruturação toda singular. Por natureza, ela está ligada diretamente ao que há de mais complexo do universo, que é a vida. Finalmente é ela a geradora mais imediata da vida. Por nove meses carrega em seu seio o mistério da vida humana. E o acalenta ao largo de toda a existência mesmo que o fruto de seu ventre se tenha afastado, seguido os caminhos mais adversos ou morrido. Do seu coração nunca sairá o filho ou a filha (BOFF, 1995, p.66)

Nesta linha de pensamento de Boff, refletimos a respeito da complexidade que envolve a condição da mulher e mãe, mostrando que as mulheres se deixam reger pela emoção, pelo coração, e com o seu corpo cria uma relação de intimidade e integralidade bem diversa da que o homem tem com os filhos. E ainda com Boff (1995, p. 67) “a mulher desenvolveu melhor que o homem uma consciência aberta e receptiva, capaz de ver o caráter

sacramental do mundo, de ouvir a mensagens das coisas que vão para além da simples decifração das estruturas de inteligibidade”.

Formação Discursiva 7 (FD7) “Mulher x Maternidade”:

Programa 5 fevereiro 2012 (domingo)– 14h- IN 0:52:30 OUT 0:54:33 (Anexo VII) Mulher idosa pede pela vida dos filhos por não serem salvos.

Programa 11 Março 2012 (domingo)– 9h- IN 1:05:55 OUT 1:06:58 (Anexo VIII) Mulher pede pela vida da filha que está com câncer

Programa 15 abril 2012 (domingo)– 9h IN 1:04:11 OUT 1:05:25 (Anexo IX) Mulher tem problema com filho que a rejeita.

Tendo como referência as palavras recém-citadas de Boff, talvez possamos compreender o que faz uma mulher de setenta e oito anos pedir a Deus que não a leve sem que veja os filhos salvos por Deus (compreensão religiosa resultante da conversão ao cristianismo). O seu ventre gerou vida, por nove meses carregou o mistério da existência humana. Muitas mulheres vivem em dedicação absoluta aos filhos, porque o fantasma da mãe ideal as persegue, e esta situação pode gerar não só a rejeição dos próprios filhos como um esgotamento físico e psicológico a elas próprias. A resposta gira em torno daquilo que é óbvio: O mundo está repleto de possibilidades e não é estranho que os filhos não queiram acompanhar a mãe, mesmo sendo pessoas adultas, com liberdade de escolha. Observamos a resposta do enunciador (Anexo VII):

Essa rejeição é natural. Se você tivesse talvez, não se convertido a Cristo, mas passado a torcer por um clube de futebol, talvez, vamos lá com a mamãe porque a mamãe já tá idosa, precisamos tá do lado dela. É isso mesmo! É o Coríntias, é o São Paulo, é o Palmeira, é o sei lá mais o quê (risos), mas como é de Cristo tem a força do inimigo que não quer.

É inevitável que a mãe, responsável pela vida e pela salvação de seus filhos, saiba inclusive orar, pois pedindo com entendimento Deus ouvirá: “[...] procure saber como é que Deus salva a família” (Anexo VII), mostrando que o que move o fiel para a salvação é a fé que é condição primeira para alcançar o que foi prometido por Deus e ratificado pelos seus porta-vozes aqui na Terra.

Já no programa 11 março 2012 domingo (Anexo VIII), mulher pede pela vida da filha que está com câncer. Notamos, nestes casos, nos quais o assunto estava relacionado à doença, uma resposta mais curta e subjetiva:

Duas respostas eu posso lhe dar. A primeira é triste, o que sua filha tá passando, e não só a minha oração, mas todo o povo de Deus vai falar com Jesus a respeito disso. Segunda coisa, não sou eu que tenho que lhe ensinar. Quando você entender algo na Palavra, pode ser um versiculozinho assim, se sobressaiu, segura aquilo, ali ta a sua saída. Ore de acordo com aquilo e Deus vai lhe abençoar (Anexo VIII).

A mulher escreve ao programa em atitude de desespero por sentir-se impotente diante da doença de sua filha: “Na condição de mãe, eu me sinto impotente”, o que demonstra que de uma mãe - do amor materno - espera-se, inclusive, a cura. Boff (1995, p.66) fala sobre a ética do respeito, resgatando suas palavras “é a atitude básica diante do sagrado”. Essa ética demanda uma atenção especial a cada detalhe e a valorização de cada sinal que fala da vida, do amadurecimento e também da morte. Ele explica que é decisiva a ética do cuidado na condução da complexa vida cotidiana de uma família, e que este papel cabe à mulher.

É principalmente à mulher (embora não exclusivamente), com sua presença como mulher, mãe, esposa, conselheira, companheira, que maneja esta arte e esta técnica do complexo, que constituem, sabiamente, a técnica e a arte do próprio processo evolucionário cosmogênico (BOFF, 1995, p.67).

Compreendemos dessa forma que a mulher é a responsável pela condução de um lar saudável, pois o que importa é que se viva com o mínimo de desgaste possível.

E quando isso não acontece? Na carta apresentada no programa de 15 abril 2012 domingo (Anexo IX), toma-se como premissa que os relacionamentos entre mãe e filho aconteçam sempre com base no amor e no respeito, mas há casos em que a convivência não é possível. E a mulher indaga: “Eu me pergunto dia e noite, onde errei na educação dele? Por que vim para a terra para ser mãe de alguém que passou a ser o meu inimigo?”

Essa relação de mãe e filho não se rompe com o nascimento da criança. Studart (1974) explica de forma descontraída que assim que a criança nasce ela se desprende do útero da mãe, todos sabem disso: médicos, enfermeiros, os parentes ansiosos, todos sabem que a criança nasceu; menos a mulher. Para ela, a criança continua sendo parte do seu ser, continua a se integrar à sua carne, aos seus tecidos. O filho cresce e começa a se relacionar com outros grupos sociais. Mas a mãe cria uma espécie de placenta moral em torno do filho e faz de tudo para tirá-lo da rua, dos bandos. Até que, finalmente, os filhos se tornam independentes e elas olham em torno e notam que só existiam por intermédio deles. A mulher se vê sem nenhum objetivo próprio e passa então a cobrar do filho o tempo de dedicação:

A mãe frustrada quer que o filho pague o que fez por ele. Pague efetivamente, moralmente, mas pague. Passamos a vida a ver essas pobres mães que não tiveram vida própria, sonhos e objetivos pessoais, a correr atrás dos filhos, apresentando-lhes a nota da cobrança. Às vezes, de tão

desamparadas e ansiosas, concordam com o sistema de prestações. E se nada recebem, envelhecem acusando os filhos de insensíveis e ingratos (STUDART, 1974, p.19)

Relações conflituosas sempre existiram e sempre existirão, isso porque nos referimos à natureza humana. Não há um culpado, há indivíduos com escolhas e percepções diferentes sobre a vida, inclusive sobre a relação de parentesco. O enunciador se refere a esta mulher como se tivesse cometido um erro, um crime por não ter sido a mãe ideal: “[...] quando a gente não vê o nosso erro, nós somos o pior dos cegos” (Anexo IX). Carregar esta culpa é pesado demais para quem, muitas vezes, não passa de um bloco informe: “a mãe é aquele bloco informe e sem face, para o qual ninguém olha; ele não assinala nada, não significa nada e apenas tem a função de manter, sustentar, realçar e glorificar a estátua definitiva – o filho” (STUDART, 1974, p.17).

As mulheres, mesmo que sem consciência do que estão fazendo, se tornam carcereiras de si mesmas e dos filhos, se vitimizam: “Missionário, eu não mereço todas as ofensas que o meu filho me fez, é muito triste para uma mãe passar por isso”, como forma de expulsar de si o peso que carregam por não terem sido exemplares neste papel que dá a elas algum poder. Neste ponto, retomamos às palavras de Scott apontadas no capítulo 1:

[...] as mulheres não podem mais ser vistas como vítimas ou abnegadas à sua condição de sujeito em favor das relações de poder. Para isso o conceito de gênero foi criado, com a finalidade de deslocar o foco das relações entre os homens e mulheres para o social, antes concebidas no âmbito biológico, e tidas como naturais (SCOTT, 1989, p.11).

A definição de gênero apresentada por Joan Scott (1989) nos ajudará a compreender a relação de gênero e poder, se interpretarmos que o status da maternidade dá às mulheres certo prestígio, um lugar de privilégio na sociedade, em detrimento das mulheres que não são mães por decisão pessoal, pois estas sofrem preconceito, como se algo lhes faltasse.

Esta relação de poder está implícita na resposta, uma vez que a mãe é questionada sobre a sua postura de educadora, sobre a forma como disciplinou seu filho, para que ele seja hoje considerado um inimigo.

Com o devido respeito, a senhora tá igual à mulher de Jó. O Jó tinha uma mulher assim. Você fala igual qualquer louca falaria. Isso lá é conversa de cristã? Você tem que olhar na Bíblia Sagrada vê o que Deus te falou. Quando a gente não vê o nosso erro, nós somos o pior dos cegos. O pior cego é aquele que não quer ver, pessoal. Deus tá mostrando, ele mostra na palavra, hoje aqui nós tivemos um banquete sobre esse caso da perversidade.

Então a pessoa tem que aprender: Deus eu to errando tudo, eu vou me acertar e você pode se acertar (Anexo IX).

Como todos os fracos e dependentes, só existe uma pessoa sobre quem a mulher – pobre ou rica – exerce autoridade: aqueles que são mais fracos do que ela. No caso, os filhos. Stuard (1974) explica que não há ninguém mais autoritário com as crianças do que as mulheres, elas dizem ao filho pequeno: "não me responda". Isso por que:

[...] no desejo de manter valores que a sacrificam, esse tipo de mulher busca fechar o lar, como um útero. Daí as trancas das casas modestas, os cadeados sofisticados dos apartamentos e o isolamento de que senhoras de classe média se vangloriem: não conhecemos ninguém no prédio. Nós vivemos em família (STUARD,1974, p.22).

O enunciador faz alusão à história bíblica de Jó para mostrar que as mulheres não devem falar sem sabedoria, e não devem aceitar com resignação a sua derrota. Cabe à mulher a missão de educar um homem com os olhos voltados para o que “Deus falou”. Podemos entender essa afirmação de duas maneiras, a saber: lembrando que a identidade social da mulher, assim como a do homem é construída através da atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes categorias de sexo - a primeira, como nos apontou Scott, como poder. A mulher tem a missão, o poder, o encargo de educar bem seus filhos, ela é quem cuida de todos e zela para que tudo esteja em seu lugar; a segunda, já mais romantizada, segundo Boff (1985, p.67) descreve a mulher como superior ao homem quando diz: “ela desenvolveu melhor que o homem uma consciência aberta e receptiva, capaz de ver o caráter sacramental do mundo e de ouvir a mensagem das coisas, os significados que vão para além da simples decifração das estruturas de inteligibilidade”.

A sociedade investe muito na naturalização deste processo, fazendo com que a mulher se sinta privilegiada, decorrente da sua capacidade de ser mãe, assim é natural que a mulher se dedique aos filhos, como é natural a sua capacidade de conceber e dar a luz. De uma forma ou de outra, a mulher se reconhece responsável pela educação e felicidade de seus filhos, por isso, estas cartas mostram que a distância é imensa entre o ideal descrito e sonhado da mãe exemplar e aquilo que as mulheres que aparecem na cena enunciativa são capazes de oferecer.

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