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Quando o mundo percebe novamente que tem voz

CAPÍTULO 2 O ECO É UMA PROPAGAÇÃO

2.2 Quando o mundo percebe novamente que tem voz

Para entender o conceito de imaginário, é preciso antes abrir-se às possibilidades de uma sociedade que amadurece para o reconhecimento de uma vida imaginada. Tratando-se do contexto da sociedade ocidental, o combate às imagens vem permeando a história e a cultura das populações - com a suspeita que esse conflito tenha relação com a apropriação e imposição das imagens pela prática cristã, movimento esse responsável pela destruição da memória de muitas civilizações originárias.

A essa ideia, o antropólogo francês Gilbert Durand coloca que é a consideração de que o imaginário não é uma ciência, mas sim uma abstração poética, que é responsável por manter o empobrecimento sobre o entendimento das imagens, ao mesmo tempo que preserva um estado de alienação sobre a importância da imaginação (DURAND, 1997).

Para o autor, “a primeira característica da imagem que a descrição fenomenológica revela é que ela é uma consciência e, por tanto, como qualquer consciência, é antes de mais nada transcendente” (DURAND, 1997, p. 22). O fato de que a imagem é uma consciência eleva a importância do imaginário, visto que surge como uma ciência do sensorial, de uma prática milenar em que a humanidade constrói repertórios imaginados, muitas vezes expressos por meio dos mitos e de rituais simbólicos. Ainda sobre o que coloca Maurice Halbwachs (1968), é esse repertório de símbolos, códigos e imagens que mantém a memória coletiva e, por consequência, a memória individual. É uma espécie de simbiose entre memória e imaginário, que alimenta tanto a esfera coletiva quanto a esfera do indivíduo - em graus diferentes, em escalas de tempo diferentes, mas de maneira transversal. (HALBWACHS, 1968).

Ainda sobre isso, Durand coloca que outra característica que diferencia imaginação de outros modos da consciência é que “o objeto imaginado é dado imediatamente no que é, enquanto saber perceptivo se forma lentamente por aproximações sucessivas” (DURAND, 1997, p. 22). O fazer da imagem está ancorado no presente, na experiência do indivíduo, por isso age de maneira transcendente e cria, junto à memória, um imaginário que é compartilhado. É esse repertório imaginado - que depende de variáveis culturais, sociais e econômicas - que age como um guia na construção de relações coletivas. O que Gilbert Durand reflete na sua análise antropológica do imaginário, é que há imagens gerais responsáveis por determinar de modo inconsciente o pensamento (DURAND, 1997), que reverbera para além da esfera do individual, mas que se expande para uma teia de conexões imaginadas pelos indivíduos. “A unidade do pensamento e das suas expressões simbólicas apresenta-se como uma constante correção, como uma perpétua afinação” (DURAND, 1997, p. 30).

Sobre este tópico, se apresenta como consequência o entendimento de que a formação das imagens, seja ainda no campo das abstrações subjetivas, é uma constante intrinsecamente

ligada ao comportamento humano. Comportamento esse que se caracteriza pela reprodutibilidade incessante de um imaginário dotado de memória, códigos de linguagem, padrões culturais, sociais e econômicos que regem a trajetória das civilizações.

Essa ideia, que requer uma perspectiva complexa do entendimento, nos evoca para o campo das sensorialidades, onde a lógica da materialidade física não é suficiente. Para o entendimento do imaginário é necessário, via de regra, abrir-se à percepção de que existe a produção constante de comunicações mais sensíveis, que sobrevivem além da corporeidade entre emissor e receptor. Uma comunicação que se permeia em uma estrutura rizomática, multilateralizada e dependente da experiência. Para Durand:

Porque a percepção humana é rica em tonalidades elementares muito mais numerosas que as consideradas pela física aristotélica. Para a sensorialidade, o gelo e a neve não se resolvem em água, o fogo permanece distinto da luz, a lama não é a rocha ou o cristal (DURAND, 1997, p. 35)

É este campo de sentidos e metáforas, que repousa na subjetividade do inconsciente, que é a matriz original a partir da qual todo o pensamento racionalizado surge (DURAND, 1997). O que significa que para o entendimento dessas relações é preciso, como havia afirmado Edgar Morin, ligar uma informação ao seu contexto e mobilizar o saber, a cultura, para chegar a um conhecimento apropriado (MORIN, 2002).

Neste recorte, especificamente, não é possível dar-se conta sobre o imaginário, caso o faça por meio de uma estrutura de pensamento bipolarizada, lógica e não pautada na experiência do indivíduo, visto que o pensamento do fazer imaginativo só é dado a partir da concepção do complexo. É preciso uma estrutura de pensamento que não cria polaridades, mas que as permite - mesmo na sua contradição - criar dinâmicas únicas em uma abertura à transmutação para o novo.

Erick Felinto (2005) traz a lógica do imaginário nos moldes desenhados pelo epistemólogo Stéphane Lupasco, em que estabelece a combinação paradoxal de X e Y a partir do entendimento da inclusão, que ao mesmo tempo é paradoxal e contraditória, mas que ainda assim mantém o antagonismo. “Lógica fundada na “lei de um dualismo antagonista, cujo antagonismo não é somente uma oposição, não é apenas uma contrariedade, mas a própria contradição, e uma contradição essencialmente dinâmica” (LUPASCO, 1947, p. 9 apud FELINTO, 2005, p. 78).

Essa reflexão traz à tona a necessidade de um pensamento multifacetado, em que oposições não representam necessariamente a anulação do seu predecessor, mas em que as

contradições criam um repertório de sucessões. A essa lógica cabe bem o pensamento sobre o que é o imaginário, no sentido mais objetivo, como uma sensorialidade capaz de criar a partir da construção das imagens.

Neste aspecto, é válido resgatar o pensamento complexo de Edgar Morin (2005):

O pensamento complexo é, portanto, essencialmente aquele que trata com a incerteza e consegue conceber a organização. Apto a unir, contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo a reconhecer o singular, o individual e o concreto (MORIN, 2002, p. 21).

É deste centro do pensamento que advém, segundo o autor, a identificação de que somos produtores na mesma medida que somos produto (MORIN, 2002), gerando imagens e criando uma realidade imaginária e mitológica, a partir de uma estrutura imaginada consciente e inconscientemente por uma população que compartilha imagens.

Esse padrão foi indicado por Gilbert Durand, em análise à pesquisa do historiador e arqueologista francês André Piganiol, quando reflete acerca da conexão dos padrões sociais e

culturais refletidos pelos rituais coletivos.

Nota com que facilidade mitos, costumes e símbolos no mundo mediterrânico se encaixam em duas rubricas sociológicas: enquanto certas populações pastoris ou certas camadas étnicas levantam altares, prestam culto ao fogo masculino, ao Sol, aos pássaros ou ao céu, outros, pelo contrário, levam uma vida sedentária de agricultores, contentam-se com pedras esfregadas com sangue â guia de altar, invocam divindades femininas e telúricas (DURAND, 1997, P. 37).

Outro aspecto interessante a ser observado, é que nas leituras de Edgar Morin, Manuel Castells, Philip Kotler e Gilbert Durand, que analisam o comportamento a partir de perspectivas científicas distintas, parece haver uma tendência da valorização da experiência como elemento- norte para o avanço das ciências humanas e econômicas.

O que Kotler (2017) indica como uma reorganização das estruturas de poder econômico, responsável pela transformação do consumo para a perspectiva do consumidor, Castells (2003) indica para o entendimento de uma sociedade em rede individualizada, que valoriza o espaço comunitário, mas que faz o pedido urgente do reconhecimento individual, enquanto Edgar Morin (2005) acena para um pensamento unificado complexo, onde o individual e o coletivo vivem em uma paralela contradição reprodutora de novas realidades, e

Gilbert Durand (1997) faz menção para um mundo ocidentalizado que passa a reconhecer a importância da imaginação - e por consequência, do seu imaginário.

Essa convergência das Ciências Humanas-Econômicas no sentido da valorização das subjetividades, abre espaço para o fazer midiático digital com mais assertividade e, para além disso, mais representatividade, onde as narrativas precisam ser consideradas de modo muito mais diverso - o que não significa simplista, mas complexo naquilo que Edgar Morin (2005) conceituou no seu pensamento sobre tecnologias de imaginário e cibercultura.

Como indica Kotler (2017), a tendência de um Marketing destinado a um público-alvo que agora é humano, agora abre espaço para um novo mergulho nas relações entre marcas e público, onde o Marketing Digital é responsável pelo aprofundamento dessas relações e, por consequência, responsável pela investigação das variáveis subjetivas que envolvem o contexto ao qual está público está inserido. Fato este que me parece indicar a uma tendência ocidental, onde os indivíduos não despertam mais para o consumo simplificado, mas que exigem reconhecer o seu próprio imaginário no ato de consumir.

Em uma análise mais pessoal, considero que é um indicativo positivo, tanto para a valorização das experiências dos corpos dissidentes e marginalizados, criando uma comunicação mais ampla e na contramão da mídia hegemônica, na mesma medida que possibilita pensar comunicação a partir de um espectro mais amplo e menos simplificado, construindo novos cenários de uma comunicação digital que precisa, via de regra, adaptar-se a complexidade de um público com repertório imaginário.

Como aponta Castells (2003), a questão talvez não seja se ater ao debate sobre uma sociedade que se transfere para o cenário digital e perde a própria consciência, mas dar-se conta de uma sociedade que reproduz a si mesma e que estabelece relações agora em dois meios distintos. Uma sociedade que usufrui da internet como uma tecnologia da informação que é regida pelas tendências humanas e, por isso, adaptável ao ritmo da humanidade.

Se na gênese da rede de computadores com o projeto ARPANET deu-se vida a uma rede de pesquisadores, hackers, comunidades e empresários, é porque havia uma estrutura social e econômica nos Estados Unidos para além da internet que permitiu essa configuração. Esse elo nunca foi desconfigurado, o passado da internet não some como num filme dos irmãos Wachowski, na vida real ele permanece na memória e no imaginário coletivo e norteia, em escalas de tempo variáveis, o comportamento e as tendências humanas.

A tendência de uma sociedade individualizada, apontada por Castells em 1997, e que ressoa na opinião pública como o aprisionamento das mentes em dispositivos móveis, parece ser um ótimo indicativo se vista por esta perspectiva. Os indivíduos exigindo o reconhecimento

do seu espaço individual e por consequência, das suas identidades, enquanto esse movimento transforma o repertório coletivo imaginado, a memória, as relações comunitárias e, por consequência, as relações econômicas - porque, na luz de que a internet depende da humanidade por ser uma tecnologia, o capital também depende dessa humanidade e precisa acompanhá-la para manter-se como sistema hegemônico. O resultado disso seja, talvez, a reconfiguração dos discursos da comunicação, que agora parece apontar para uma polifonia entre gritos e ecos.

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