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Tudo que coloco no mundo é responsabilidade minha

CAPÍTULO 3 O ECO É UM NOVO GRITO

3.1 Tudo que coloco no mundo é responsabilidade minha

Se grito a plenos pulmões no corredor de um hospital, certamente algum profissional da saúde virá ao meu encontro para se certificar se está tudo bem - ou pelo menos para manter a ordem. Se me contam uma mentira sobre alguém que conheço, algo ofensivo e calunioso, e eu repasso essa mentira para o próximo ouvinte, eu também sou responsável pela propagação dessa agressão.

Se presencio as violências de raça, gênero e às diversidades sexuais diariamente e a elas me mantenho calado, também serei responsável por sua propagação. Se violento e propago discurso de ódio, eu também serei responsável por essa materialização.

Toda vez que uma imagem é posta no mundo, essa imagem é materializada por meio de palavras, gestos e códigos de comportamento, como indica Gilbert Durand (1997) no seu estudo antropológico do imaginário. A memória que sustenta uma estrutura imaginária age como disparadora de uma sucessão infinita de imagens que racionalizadas criam pensamentos, palavras e discurso.

A memória coletiva, como indica Halbwachs (1968), depende da estrutura de códigos específicos que são influenciados pelas instituições, pela estrutura econômica e pelas normas sociais de um povo. São essas memórias que servem à manutenção da memória individual, uma espécie de sistema autossustentável de imagens que, aceitas pela opinião pública, passam a agir do coletivo para a esfera do indivíduo. É essa troca de imagens que, ao meu ver, mantém também a manutenção de discriminações e violências sistemáticas vistas pelas civilizações ocidentais.

Por esta perspectiva, essas violências não são somente discursivas, mas também fazem morada no campo da memória e, por consequência, do imaginário. Sobre isso, o filósofo alemão Byung-Chul Han reflete o conceito de “psicopolítica”, uma ideia que nas sociedades atuais os indivíduos são seduzidos por novas formas de poder. A pesquisadora e filósofa Valéria Lima Bontempo (2018), em resenha ao texto da psicopolítica de Byung-Chul Han, faz emergir o entendimento de que não se vive mais o recorte de exploração da burguesia para o proletário, mas que sobressai uma espécie de ditadura do capital que mantém o domínio do comportamento (BONTEMPO, 2018).

O capital, enquanto sistema econômico, é um dos pilares que mantém os valores comunitários e, por isso, também pode ser visto como um responsável pela formação do repertório imaginário destas comunidades. Uma vez que os pilares sociais, econômicos e institucionais são guiados por forças conservadoras, a manutenção das imagens também será influenciada por essas forças, como são os casos de extremo conservadorismo e violência identificados nas nações que, por algum motivo, vivenciaram sistemas de autoritarismo depois de períodos tidos como democráticos.

O modelo de proposição de pensamento que trago nesta reflexão é, antes de tudo, voltado para a o entendimento de uma comunicação mais sensível, que abraça as possibilidades de estruturas mais complexas e sensoriais do ato de comunicar, e que vivem para além da fisicalidade. Clama pela responsabilidade em entender, antes de qualquer coisa, a força do legado das imagens, seja para o entendimento das opressões que cercam a humanidade ao longo de séculos, seja para identificar os potencializadores de uma comunicação que materializa equidade e inclusão.

A este ponto, evoco o pensamento de Edgar Morin (2002), tratado ao longo deste trabalho, em que reflete acerca da importância de um pensamento complexo, onde a humanidade percebe a si mesma enquanto reprodutora das suas próprias ideias. Reflexão essa que impulsiona ao entendimento de duas capilaridades iniciais: a lógica da continuidade na reprodutibilidade imaginária, a importância do entendimento multidimensional sobre as questões humanas.

Lógica da continuidade5 quando trata de perceber que as imagens criadas pela comunidade, bem como a memória comunitária, não deixam de existir a partir da sucessão de novas imagens. O entendimento de que vivemos em uma sociedade que armazena imagens em

5 “Continuidade na reprodutibilidade imaginária” enquanto reconhecimento do próprio passado, dos seus signos

e como eles interferem no presente. “Entendimento multidimensional” para avaliar comportamento por perspectivas distintas.

um imaginário coletivo, responsável por perpetuar esse sistema por várias gerações, é importante para perceber que a humanidade constrói uma espécie de rizoma imaginário6, não

linear e repleto de contradições, mas que ainda assim se mantém em uma estrutura complexa. As sociedades compartilham imagens que perpassam tempo e espaço, mas que permanecem influenciando a estrutura imaginária e, por consequência, o campo discursivo. É o entendimento desta continuidade que é importante aqui, visando pensar comunicação para além do presente, mas reconhecendo o repertório imaginado levando em consideração que a humanidade não rompe com o seu imaginário apesar das variáveis sociais, econômicas e culturais. A lógica desta continuidade na reprodução imaginária está em reconhecer que o imaginário vive entre passado e presente e que, para o reconhecimento de uma comunicação mais sensível e pautada na experiência, é preciso levar em consideração essa conexão atemporal das imagens.

Essa lógica nos leva à segunda capilaridade, que é o entendimento multidimensional sobre as questões humanas. Ora, se as sociedades compartilham estruturas imaginárias diversas, atemporais e para além da fisicalidade, é impossível entender as questões que envolvem essas sociedades, bem como a importância destas questões, a partir de uma unilateralidade do pensamento. Deste modo é preciso, para o entendimento dos legados imaginários e de seus valores, a consciência de que todas as estruturas sociais, econômicas e culturais precisam ser lidas a partir da sua multidimensionalidade, onde normas, códigos morais, estruturas de poder e outras tantas variáveis das sociedades ocidentais são vistas a partir dos aspectos físicos e sensoriais.

A partir desta lógica, é possível entender a responsabilidade em pensar comunicação a partir do viés imaginário, onde o acesso a essas informações deve, via de regra, ser tratado com o mesmo nível de cuidado que se trata um patrimônio da humanidade. No recorte específico deste trabalho, que pretende o entendimento do imaginário na comunicação digital, é de extrema importância frisar que até mesmo os dispositivos do capital, como é o caso do marketing, apontam para uma sociedade em rede individualizada - como coloca Manuel Castells (2003) - que grita pela necessidade de ser ouvida e vista em suas particularidades.

6 Os bulbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com raiz ou radícula podem ser rizomórficas num outro sentido

inteiramente diferente: é uma questão de saber se a botânica, em sua especificidade, não seria inteiramente rizomórfica. Até animais o são, sob sua forma matilha; ratos são rizomas. As tocas o são, com todas suas funções de hábitat, de provisão, de deslocamento, de evasão e de ruptura. O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos. Há rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros. Há o melhor e o pior no rizoma; a batata e a grama, a erva daninha. Animal e planta, a grama é o capimpé-de-galinha. Sentimos que não convenceremos ninguém se não

Quer seja pelo apelo humano e pelo valor deste conhecimento - que já devia ser o suficiente nesta análise - ou pelas tendências do capital, o imaginário surge para a comunicação digital como potencializador do entendimento sobre a humanidade, que não pode ser reduzida as variáveis de um algoritmo ou a um objetivo de venda.

Pensar comunicação imaginária é despertar para a necessidade indispensável de contemplar as experiências, de reconhecer a importância das narrativas diversas, contraditórias, e abraçá-las dentro da comunicação.

Diversidade essa que não deve ser recebida a partir do entendimento generalizador deste discurso. Diversidade que vai na contramão do discurso igualitário, mas que valoriza a individualidade das experiências dos corpos e que, ao mesmo tempo, também reconhece a força de controle a partir das técnicas de poder, como pontua Byung Chul Han em Psicopolítica, quando reflete sobre o uso das emoções e desejos para a manipulação das massas.

Ao que parece, pensar comunicação nesta perspectiva também é reconhecer a força que um estado exerce sobre a população e seu repertório imaginado, percepção essa que também está contemplada na ideia de multidimensionalidade. Ao que indica os estudos de Kotler (2017) e Castells (2002), as estratégias de poder econômico não são atuais, mas acompanham a sociedade ocidental ao longo de séculos de produção. Elas fazem parte do repertório imaginário e da memória das civilizações a esse tempo, e da mesma forma que a sociedade não deixa sua fisicalidade e hábitos simbólicos por causa da internet, esses sistemas não deixaram de existir - o que não significa que permaneceram imutáveis.

Se há algo que a internet evoca de otimismo para o futuro, é o fato de que a tecnologia de informação - por sua natureza aberta - transforma o cenário do acesso às informações. O que a primeira vista representa um simples acesso a uma rede, em grande escala pode representar a transformação e necessidade de adaptação dos moldes econômicos, visto que o sistema do capital só funciona se o consumo e as indústrias permanecerem, em átomos ou em bits.

Acredito que o reconhecimento dessas estruturas de poder não devem ser recebidas pela ideia de inviabilização das novas estratégias, mas que deve ser considerada em sua multidimensionalidade para entender o contexto complexo, onde opressões e legados podem ser identificados para ressignificar os moldes de uma comunicação futurista, bem como o consumo a ela atrelado - o que, reitero, se apresenta como uma tendência nos estudos de Castells, Kotler e Durand.

Ao que aparenta, o grito da humanidade perpassa as estruturas físicas e pode ter feito uma viagem no espaço e tempo do imaginário, onde a própria humanidade narra as tendências

econômicas e do marketing digital, como fez Neo ao buscar o centro da Matrix na cidade das máquinas no filme Matrix Revolution, uma estratégia aparentemente pacífica que culminou na extinção do programa Smith e na paz entre a humanidade e os computadores.

Pensar comunicação digital e imaginária não é excluir o que a sociedade ocidental é para além da internet, é ir no reconhecimento que as novas tecnologias estão se fundindo à humanidade e adaptando-se ao seu modo de organização coletiva. Se vivemos em um espaço em que estratégias de poder são reproduzidas o tempo inteiro, a gênese do problema não está na tecnologia, mas sim nas relações físicas e sensoriais. É o entendimento dessa multidimensionalidade que pode, acredito eu, garantir a criação de novas possibilidades para uma comunicação digital pautada na experiência em todas as suas faces, a partir de uma criação mais responsável e consciente dos seus efeitos comunicacionais - seja na esfera física ou nos aspectos sensoriais.

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