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4.2 QUANTO AOS FUNDAMENTOS DE MÉRITO

4.2.1 O que fazer frente à inexistência de previsão constitucional expressa? Saídas

Como relatado anteriormente, os dois âmbitos de reivindicação residiram na contestação da nomeação de ministros pela Presidência da República, o que ocorreu em caráter específico e também abstrato, e na limitação do exercício de cargos parlamentares. Podem-se diferenciar as discussões de mérito que circundaram os pleitos em dois planos: um que tratou da verificação dos indícios existentes a comprovar o cabimento do requerimento do ponto de vista material e outro dirigido à possibilidade de aplicação de tal medida ao cargo político em análise. A esta monografia interessa identificar as saídas empregadas pelo STF para resolver a inexistência de previsão constitucional expressa a autorizar a interferência. Assim, apresentar-se-ão os fundamentos utilizados pela Corte para resolver essa problemática.

Recuperando os ensinamentos apresentados no segmento 2.1.2 deste trabalho, elegeu- se a categoria de agrupamento das decisões: a presença, ou não, da inexistência de previsão constitucional expressa. Tal categoria estabeleceu-se por duas razões: inicialmente, porque esse foi o olhar, introduzido desde o primeiro capítulo do trabalho, que foi direcionado ao estudo das decisões. Compreender a ausência de previsão constitucional expressa como um problema digno de ser investigado já é, do ponto de vista das escolhas de pesquisa, conceber a

322 Note-se, portanto, que a partir deste momento a Reclamação n. 23.418 não foi contabilizada para fins

interferência entre os poderes como algo digno de atenção.323 De maneira complementar, tal elemento foi, quantitativamente, identificado em parte considerável dos juízos emitidos, sendo, a partir da concepção adotada pelo ministro que o empregou, eixo do qual decorreram soluções opostas, consistindo, portanto, em categoria passível de estampar as principais tendências identificadas.

Dos doze juízos de mérito emitidos,324 foi possível identificar seu conteúdo em dez325 deles e, destes, foi abordada a problemática da inexistência de previsão expressa na Constituição Federal em oito. Sua presença não foi constatada apenas nas decisões proferidas nos autos do MS n. 34.609 e do MS n. 34.070. A solução dada a esses casos foi a partir de dispositivo da própria Constituição Federal,326 tendo o veredito sido diverso em cada um dos casos em razão da valoração das evidências apresentadas.

Uma das decorrências da inexistência de previsão constitucional para interferir foi a inviabilidade da interferência. Tal abordagem foi adotada por quatro decisões. A fundamentação apresentada por Marco Aurélio Mello na decisão proferida nos autos da AC n. 4.327 datada de 30 de junho de 2017 ilustra essa perspectiva: “Em quadra de abandono a princípios, de perda de parâmetros, de inversão de valores, de escândalos de toda ordem, cumpre ser fiel aos ditames constitucionais e legais, sob pena de imperar o descontrole institucional, com risco para a própria democracia”327 Quanto ao mérito, reforçou: “O quadro revela mecanismos aptos a respaldarem a atuação desinibida, sem peias de qualquer ordem, dos parlamentares. Restringiu-se, a mais não poder, embaraços ao exercício do mandato, vinculados os Poderes da República a premissas inafastáveis”328.

323 É válido pontuar, uma vez mais, que tal afirmativa não reflete posição favorável ou contrária à interferência

do STF. Não é disso que se trata. Concebe-se, isso sim, que esse fenômeno é relevante para a sistemática institucional brasileira, de modo que estudar seus pormenores e possibilitar a multiplicação desse conhecimento parece pertinente.

324 Em que pese tenham sido identificados quatorze juízos de mérito, dois deles consistiram em referendos

integrais das decisões monocráticas, de modo que, para efeitos de análise da fundamentação, não será contabilizado o julgamento plenário de ratificação da decisão individual, o que ocorreu na AC 4.039 e na AC n. 4.070.

325 Excluíram-se os votos proferidos na sessão de julgamento de três de novembro de 2016 e a decisão

monocrática proferida em cinco de dezembro de 2016 nos autos da ADPF n. 402, pois não foram publicados até o momento e não foi possível identificar a presença do elemento em comento por meio das demais fontes de pesquisa. Atente-se, ainda, em que dois desses dez juízos de mérito foram integralmente referendados pelo plenário, de modo que se poderia considerar que foram doze os julgamentos em que tal problemática esteve presente.

326 Essa fundamentação foi denominada construção constitucional do enquadramento e será apresentada no

decorrer do capítulo.

327 Decisão Monocrática na Ação Cautelar n. 4.327. Requerente: Procurador Geral da República. Requerido:

Aécio Neves. 30 jun. 2017. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=5188006>. Acesso em: 16 out. 2017. p. 7.

A outra perspectiva foi a que se pautou pela excepcionalidade do caso concreto. Essa abordagem levava à conclusão de que a situação sob exame ensejava a aplicação da medida interventiva em razão de suas peculiaridades. Tal solução foi adotada pelos outros quatro casos. Passagens da decisão liminar proferida por Teori Zavascki nos autos da AC n. 4.070 ilustram tal posição: “Decide-se aqui uma situação extraordinária, excepcional [...]. A sintaxe do direito nunca estará completa na solidão dos textos, nem jamais poderá ser negativada pela imprevisão dos fatos”329. O ministro concluiu exemplificando de forma contundente o padrão de fundamentação que ora se apresenta: “Mesmo que não haja previsão específica, com assento constitucional, a respeito do afastamento [referindo-se a parlamentares e ao Presidente da Câmara] [...], está demonstrado que, no caso, ambas se fazem claramente devidas”330. A fundamentação da excepcionalidade apresentada nessa decisão é considerada digna de destaque, visto que, além de ter sido uma das primeiras decisões a apresentar tal fundamentação, foi invocada pelas que vieram posteriormente.

O Quadro 1 exibe a relação das fundamentações adotadas pelas decisões.

Quadro 1 – Padrões de fundamentação a partir da ausência de previsão constitucional

expressa

Padrão Compreende inexistir previsão constitucional expressa

Não compreende inexistir previsão constitucional expressa

Decorrência Não cabimento da interferência Excepcionalidade que autoriza Enquadramento constitucional que autoriza Decisões MS n. 34.196 AC n. 4.039 MS n. 34.070 ADPF n. 402 – decisão de 7 de dezembro de 2016 AC n. 4.070 MS n. 34.609 AC n. 4.327 – decisão de 30 de junho de 2016 AC n. 4.327 – decisão de 17 de maio de 2017 AC n. 4.327 – decisão de 26 de setembro de 2017 ADI n. 5.526

Fonte: elaboração própria a partir da consulta às decisõese base de informações disponibilizadas pelo STF.

Dimitri Dimoulis, comentando posicionamentos adotados por ministros do STF no ano de 2016, problematizou tal questão, indagando: “O que ‘vale’, afinal? A letra da Constituição

329 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão Monocrática na Ação Cautelar n. 4.070. 5 mai. 2016. p. 72. 330 Ibidem, p. 72-73.

ou a solução ‘justa’ mediante interpretação livre?”331. Reconhecendo que o debate é complexo, sustentou que, embora não se possa esperar uma posição definitiva, o STF teria externalizado resposta institucional a tal questionamento:

O debate é secular e não se pode esperar resposta definitiva. Mas, em nível descritivo, já temos uma resposta institucional do Supremo. Os ministros não consideram a letra da Constituição como relevante obstáculo quando a solução que essa letra dita lhes parece disfuncional.332

Em que pese o autor compreenda haver uma resposta do Supremo nas demandas que analisou – diversas das ora em comento –, não parece ser possível dizer o mesmo no caso deste trabalho. Como exposto, as decisões variaram consideravelmente, tanto no juízo relativo à interferência, quanto na possibilidade, ou não, de interpretação não literal da Constituição. Observando a disposição da tabela acima, é possível observar que, dos dez juízos de mérito que foi possível acessar, apenas quatro abordaram a excepcionalidade como justificativa da posição adotada. É preciso considerar, entretanto, que duas dessas posições foram referendadas pelo plenário integralmente, aumentando estatisticamente as vezes em que tal compreensão foi aceita em instâncias decisórias do Supremo. De todo modo, essa concepção esteve presente em vereditos de todas as ações cautelares estudadas, compondo pelo menos uma das decisões proferidas em seus autos, o que permite concluir que a interpretação que entende viável a interferência em mandato parlamentar sem previsão expressa no texto constitucional consistiu na tônica dos juízos mapeados.

Em que pese tal fato, cumpre atentar na mudança que parece representar a decisão proferida na ADI n. 5.526333. Após a sequência de cautelares admitidas pelo Supremo, o último julgado proferido, único a nível abstrato na temática, limitou o poder de intervenção da Corte, determinando que, em que pese possível a imposição de cautelares a parlamentares, estas poderão ser afastadas pela casa legislativa a que pertence o parlamentar quando interferirem no mandato. Parece pertinente aventar, nesse sentido, se o fato de o pleito ser abstrato não concorreria para o juízo de mérito que foi proferido, haja vista que, a nível abstrato, a excepcionalidade, em tese, não se concretizaria. No tocante ao objeto dessa ação, tal raciocínio encontra amparo na realidade, haja vista que as três ações cautelares que compartilhavam do debate retratado na ação de constitucionalidade receberam, ao final, juízo procedente, de

331 DIMOULIS, Dimitri. Constituição Interpretada sem Regras. In: FALCÃO, Joaquim; ARGUELHES, Diego

Werneck; RECONDO, Felipe (Orgs.). Onze Supremos: o supremo em 2016. Belo Horizonte: Letramento, Casa do Direito, Supra, Jota, FGV Rio, 2017. p. 64.

332 Ibidem, loc. cit.

333 A fim de facilitar a leitura, recupera-se o pleito da ADI n. 5.526, que foi a submissão ao Congresso Nacional

das medidas cautelares impostas a parlamentares pelo Poder Judiciário que interfiram no exercício do mandato.

interferência, portanto. De outra parte, quando da apreciação – posterior – do tema em juízo abstrato, obteve maioria a posição relativa à submissão das cautelares de interferência no mandato à casa parlamentar. Ademais, conforme será exposto no apartado 4.3.1, as medidas impostas a Aécio Neves na AC n. 4327 foram proferidas contemporaneamente à tramitação da ADI n. 5.526, inclusive sob mesma relatoria.

Em sua análise, Dimitri Dimoulis ainda aponta que, ao invocar construções interpretativas tradicionais, os ministros não justificariam suas opções, tampouco se preocupariam com a previsibilidade dos juízos emitidos.334 Esses aspectos também foram verificados neste estudo, em que a separação de poderes foi eixo de fundamentação consideravelmente presente, mas em relação ao qual não parece ter havido maior aprofundamento. A interpretação de tal princípio adquiriu contornos opostos de acordo com a posição adotada pelo ministro que a empregou, o que corrobora a importância de haver um delineamento capaz de diferenciar as concepções adotadas. É a esse tema que se dirige o apartado seguinte.