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1.2 Quem é e quem foi Dietrich Bonhoeffer (1906 – 1945)?

Juntamo-nos a José Carlos Souto33 na afirmação de que é possível encontrar- se dois tipos de relatos a seu respeito. A um relato é dado um tratamento histórico- cronológico, de modo que a vida de Bonhoeffer é concebida por etapas (trabalho com jovens, ministério pastoral, militância ecumênica, militância política, etc). Neste tipo de relato, tende- se a enfatizar o contexto político em nível governamental e político-eclesiástico, além das questões mais próprias a seu respeito, como o seu desenvolvimento acadêmico, as posturas e vacilações por que fora passando ao longo do desenrolar dos acontecimentos, bem como as implicações presentes e futuras de seus atos, além de questões de ordem psicológica.

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“Sob a liderança de Niemöller, a ala radical da BK insistiu em afirmar que a BK era a única legítima representante da Igreja Protestante na Alemanha e que entre ela e os DC não havia nenhuma crença comum.” Cf.: STEIGMANN-GALL, O Santo Reich, p. 214. Quanto à opinião de Bonhoeffer sobre a BK, temos o seguinte: “Ora, a Igreja Confessante de modo geral esqueceu totalmente a abordagem barthiana e passou do positivismo para a restauração conservadora.” Cf.: BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2003. p. 438. Também teceu considerações sobre este assunto em suas “Reflexões para o batismo de Dietrich Wilhelm Rüdiger Bethge”, em maio de 1944: “[...] Nossa igreja, que nestes anos lutou apenas pela sua própria preservação, como se fosse um fim em si mesma, é incapaz de ser portadora da palavra reconciliadora e redentora para os seres humanos e para o mundo. Por isso, as palavras anteriores têm de perder a força e ficar mudas, e nossa existência cristã consistirá hoje apenas em duas coisas: em orar e praticar o que é justo entre as pessoas.” No entanto, chegou à profética conclusão: “[...] Não é de nossa alçada prever o dia – mas esse dia virá – no qual pessoas serão novamente vocacionadas para expressar a Palavra de Deus de tal maneira que o mundo seja transformado e renovado por ela. Será uma nova linguagem, talvez totalmente arreligiosa, mas libertadora e redentora como a linguagem de Jesus, diante da qual, as pessoas se assustam e, ainda assim, são dominadas pelo seu poder, a linguagem de uma nova justiça e verdade, a linguagem que proclama a paz de Deus com as pessoas e a aproximação do seu reino.” BONHOEFFER, op. cit., p. 397, 398.

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Paráfrase do título da obra de Bonhoeffer “¿Quién es y quién fue Jesucristo?”. Este tópico baseia-se, especialmente, na biografia: BETHGE, Eberhard. Dietrich Bonhoeffer: Teólogo, cristiano, hombre actual. Bilbao: Editorial Española Desclée de Brouwer, 1970. (Nueva Biblioteca de Teologia). p. 35 – 92. [Trad. nossa].

33 SOUTO. José Carlos Soares. Bonhoeffer e a pregação do evangelho: uma proposta de comunicação da fé

para os dias atuais. Belo Horizonte, outubro de 1997. Monografia (Trabalho de conclusão do curso Bacharel em

Teologia) - Faculdade de Teologia da Igreja Metodista. p d fMachine

A outra concepção de relato, que do nosso ponto de vista, é ainda mais comum, é quase um conto épico34. Apresenta-se Bonhoeffer como um tipo de “herói da fé”, “um mártir cristão”, “um exemplo para a Alemanha e para o mundo”. Neste tipo de abordagem, “a ordem dos acontecimentos é bem delineada pelo embasamento histórico e dá um tom emotivo crescente à medida que vai aproximando-se das considerações finais. A grande importância do segundo relato é a riqueza de detalhes imediatos” 35. Quanto mais próximo vai ficando o relato de suas últimas ações mais importante se torna; e é exatamente a partir disso que se passa a ver o desenvolvimento do “menino” e do “homem” Bonhoeffer.

Isto dito, nos esforçamos por apresentá-lo, cruzando as duas versões a seu respeito. Dietrich Bonhoeffer nasceu em Breslau, Alemanha, em 04 de fevereiro de 1906, e viveu ali alguns anos de sua curta vida. Filho de um célebre psiquiatra e neurologista, que começou ensinando em Breslau para depois ser professor e clínico em Berlim, no Hospital da Caridade, cuja postura diante da família criava uma atmosfera doméstica severa, de ordenação impecável, mas também onde se podia sentir ternura. A mãe, Paula von Hase (nome de solteira), originária da Renânia, cuja ancestralidade remetia a teólogos e artistas, assumia a formação religiosa e afetiva das crianças. Esta tornou-se uma grande família de quatro meninos, donde seus três irmãos adentraram o mundo da ciência, de modo que um tornou-se físico (Karl-Friedrich), outro jurista (Klaus), e ainda outro, naturalista (Walter), e quatro meninas, uma delas sua irmã gêmea, Sabine (as outras eram Ursula, Christine e Suzanne), todos sob uma formação cristã, humanitária e liberal. Começada a Primeira Guerra, alguns primos seus que haviam sido mobilizados para os campos de batalha vieram a falecer, seguindo a estes, um de seus irmãos mais velhos (Walter), fato que teve sobre ele grande influência.

Em 1923, matriculou-se na Universidade de Tübingen, dando início à sua formação teológica, passando pelas classes de A. Schlatter, V. Heitmüller, K. Heim. No ano seguinte, tornou-se aluno de Adolf von Harnack, A. Deissmann, H. Leitzmann e E. Sellin. Contrariando o desejo de Harnack, que queria fazer dele um historiador da igreja, interessou-

34 Pode-se incluir aqui o tipo de relato fornecido por LEIBHOLZ, G. Memória. In. BONHOEFFER, Dietrich. Se

não morrer... Fica só. Lisboa: Livraria Alegria, 1963.

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SOUTO, Bonhoeffer e a pregação do evangelho, p. 8, 9. p d fMachine

se pela dogmática. Na seqüência, participa das turmas de Karl Holl e Reinhold Seeberg.36 Laureia-se, em 1927, em teologia dogmática, com a dissertação Sanctorum Communio: eine Dogmatische Untersuchung zur Soziologie der Kiche. Em 1928, foi para Barcelona, ficando lá durante um ano como coadjutor e, em 1929, torna-se leitor de Teologia Sistemática, ou seja, habilita-se ao ensino na Universidade de Berlim com o seu Akt und Sein: Transzendentalphilosophie und Ontologie in der Systematischen Theologie (Ato e Ser: Filosofia Transcendental e Ontologia na Teologia Sistemática, obra ainda não traduzida para o português ou mesmo para o espanhol). Também estudou no Union Theological Seminary, em Nova York. Em agosto, Bonhoeffer ingressa na Faculdade de Teologia de Berlim como professor assistente e, em outubro, assume o posto de pároco universitário na escola Politécnica, o que marca o início de seu trabalho pastoral e catequético com os meninos da vila berlinesa de Wedding.

Em relação à teologia, observa-se uma tendência à Teologia Dialética de Karl Barth, com quem encontra-se, em 1931, e do qual é conhecedor das obras desde 1924. Este encontro fomentou uma amizade marcante e de sérias conseqüências futuras. O real, a “dimensão mundana”, adquire o protagonismo que mais tarde haverá de constituir-se numa das características de sua teologia. Outro dado que vale a pena ser colocado, são suas atividades ecumênicas junto ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI), como secretário juvenil.

Em 1933, quando da ascensão de Hitler ao poder, pastoreava duas comunidades em Londres, Sydenham e St. Paul. Utilizou-se de suas relações ecumênicas para instar, sem muitos resultados, as comunidades do exterior a interferirem nas mutações da Igreja Evangélica Alemã. Paralelamente, atraía-lhe os ensinamentos de Gandhi, na Índia, a quem intentava conhecer. A densidade dos novos acontecimentos, agravando o ambiente político-eclesial, dá conta de um aprimoramento de concepções em relação à Igreja, de modo que, estando em oposição a ela, nos moldes em que se apresentava na Alemanha daqueles dias, ao mesmo tempo, modificava a sua forma de entendê-la.

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MONDIN, Battista. Os Grandes Teólogos do Século Vinte: Os teólogos protestantes e ortodoxos. Trad. José Fernandes. v. 2. São Paulo: Edições Paulinas. s.d. p. 166. (Teologia hoje, v. 16); BETHGE, Teólogo, cristiano,

hombre actual, p. 103 – 129, 157, 162 – 164, 177 – 197, 248 – 284, 316 – 355, 447 – 459, 571 – 659, 670 – 791,

806, 917 – 938, 941, 984. p d fMachine

Em 1935, ingressa no seminário que, com grandes alternativas em diversos lugares e sob distintos nomes, o mais conhecido deles, Finkenwald, haveria de funcionar até ser desfeito pela Gestapo, em 1940, donde vem boa parte das obras a ele atribuídas. Ali se dedicou à tarefa formativa, espiritual e comunitária, num período que pode ser caracterizado como de relativa serenidade e de alta produtividade teológica.

Quanto às restrições que lhe foram aplicadas, sabe-se que, em 1936, teve que deixar a Universidade; em 1938, deixar de residir em Berlim (indo a Schlawe, depois a Munich); em 1940, falar em público; e recebeu a imposição de apresentar-se periodicamente à polícia; finalmente, em 1941, imprimir ou publicar de qualquer forma seus escritos. Não obstante a existência dessas limitações, continuava e até intensificava suas viagens ao exterior, o que, em parte, tem a ver com a sua inserção no movimento ecumênico, mas também com sua atividade conspiratória em conexão com o grupo militar do qual tomam parte o general Oster, o almirante Canaris e seu cunhado Hans von Dohnanyi, responsável pela sua inserção neste. Esperava-se dele o fornecimento e a recepção de informações que vinham, dentre outros lugares, da Suíça, Suécia e Itália.

Quando, em 1939, havendo cedido às pressões de seus amigos norte- americanos, aceitou realizar uma turnê como conferencista nos Estados Unidos, recebeu uma carta sendo informado de que a guerra estava preste a começar, decidiu, então, retornar imediatamente à sua pátria, e sobre isto escreveu a Reinhold Niebuhr37:

Sentado no jardim do Seminário, tive tempo de pensar e orar no que se refere à minha situação e a da minha nação, obtendo algumas luzes sobre a vontade de Deus. Cheguei à conclusão de que fiz um erro em vir para os Estados Unidos. Neste período difícil da história de minha pátria, devo viver junto com o meu povo. Não terei o direito de participar da reconstrução da vida cristã depois da guerra se não tiver compartilhado com o meu povo as provas deste período. Os cristãos alemães terão que desejarem (sic) a derrota de sua pátria para a salvação da civilização cristã ou desejarem a vitória de sua pátria e, conseqüentemente, a destruição de nossa civilização. Eu sei a escolha que devo fazer, porém

não posso fazê-la e manter-me ao mesmo tempo em segurança38.

Em 05 de abril de 1943, foi preso em Berlim, na casa de seus pais, por causa de acusações no tocante ao contrabando de 14 judeus para a Suíça, a chamada Operação 7,

37 LEIBHOLZ, G. Memória. In: Sociedade Internacional Bonhoeffer – Seção Língua Portuguesa. Boletim, n. 3,

Ago. 2003. p. 8; BETHGE, Teólogo, cristiano, hombre actual, p. 873 – 884.

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BONHOEFFER apud MONDIN, Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p. 169. p d fMachine

dentre outras questões qualificadas de “crime de alta traição ao país”.39 Foi trancafiado na prisão militar de Tegel, passando 18 meses no cárcere. Mesmo lá dentro, ele continuava a desenvolver atividades pastorais; ocupou parte do seu tempo dando assistência aos companheiros de prisão, lendo a Bíblia para eles, dedicou-se também à correspondência com familiares e amigos, em especial, com Eberhard Bethge, amigo que, futuramente, seria o organizador e editor de boa parte de seus textos e que viria a casar-se com uma sobrinha sua. Foi ainda nesse período que descobriu-se o seu envolvimento no planejamento de um atentado contra Hitler.

Em fevereiro de 1945, foi transferido dessa prisão, em razão de sua destruição por um dos ataques aéreos à Berlim, ao campo de concentração de Buchenwald, onde passou seus últimos dias, sendo, ao final, conduzido a Flössenburg, onde foi enforcado por ordem de Himmler. Com referência ao episódio de sua morte, um companheiro de cela disse o seguinte:

Num domingo, 8 de abril, o pastor Bonhoeffer pronunciou-nos um breve sermão, falando de modo que tocou o coração de todos e encontrando as palavras adequadas para exprimir o espírito de nossa condição e os pensamentos e propósitos que ele determinará em nós. Nem bem ele concluiu a última oração quando a porta foi escancarada; entraram dois homens à paisana e de aspecto malvado, dizendo: “Prisioneiro Bonhoeffer, prepare-se para vir conosco.” Aquelas palavras – “venha conosco” – já tinham assumido para nós um único significado: a forca. Despedimo-nos. Ele se retirou dizendo: “Isto é o fim.” Depois acrescentou prontamente: “Para mim, é o início da vida!” No dia seguinte, 9 de abril, foi

enforcado. Estava com 39 anos. 40