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Uma questão crucial quando buscamos compreender a ação da imprensa e sua capacidade de influenciar no debate público é conhecer, com a maior clareza possível, quem são os seus leitores. Na primeira metade do século XIX, no Brasil, o público leitor tinha características muito peculiares e que limitavam o alcance das publicações.

Os jornais, folhetos, avisos e panfletos impressos naquele período eram geralmente escritos por homens esclarecidos, membros de uma elite intelectual e política que buscavam atingir um determinado público na expectativa de que esse fosse capaz não só de ler, mas também de produzir sentido sobre aquilo que se discutia nessas publicações. E, com isso, estabelecer uma corrente de opinião apta a interferir na ação política.

É evidente que o potencial de leitura depende do número de habitantes. Os dados disponíveis sobre a população brasileira naquele período são extremamente precários. Ainda assim, a partir de uma Memória Estatística do Império, é possível afirmar, com certa segurança, que por ocasião da independência, a população brasileira livre girava em torno de 2 milhões e 800 mil pessoas, sendo que a população do Rio de Janeiro chegava perto de 43 mil habitantes (NEVES, 2002:54).

Mas qual seria o percentual de alfabetizados, aqueles a quem, evidentemente, essas publicações eram dirigidas? Além do país não contar com uma estrutura educacional que permitisse uma inclusão significativa da população no universo de leitores, somente aqueles que pertenciam às classes sociais mais abastadas tinham acesso ao ensino.

Na ausência de dados estatísticos confiáveis, a pesquisadora Lúcia Maria Bastos P. Neves, do Departamento de História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) utilizou, para estimar a população letrada do Rio de |Janeiro durante o Primeiro Reinado, alguns recursos que, segundo ela, podem ajudar a esclarecer a questão. Ela cita o procedimento utilizado pelo historiador Roderick Barman (1988), que analisou o Manifesto do Fico, assinado por um grande número de pessoas no Rio de Janeiro, em 1821.

Depois de considerar o número de habitantes e o número de assinaturas constantes do documento, Barman concluiu que cerca de 56% da população masculina, adulta, do Rio de Janeiro eram alfabetizados, o que não deveria, certamente, repetir-se em outras cidades, pois esses números equivaliam à porcentagem de alfabetizados em cidades francesas do século XVIII (Ibidem:55).

(...) o estranhamento e a perplexidade com os quase 80% de analfabetos são uma reação pública posterior ao final do século XIX. Em uma sociedade basicamente rural – mais de 80% da população -, comandada pelos grupos oligárquicos, com precários sistemas de comunicação, a demanda social de educação era também muito baixa (BONEMY, 2003:2).

Com relação ao restante do País, usamos como referência os dados obtidos durante o censo de 1872 (levantados decorridos cerca de cinquenta anos do período de agitação dos panfletos e periódicos publicados logo após a independência), que apontam, com absoluta clareza, que mais de 70% da população eram formados por pessoas incapazes de ler e escrever.

TABELA 1- Número de pessoas livres que sabiam ler e escrever no Brasil em 1872

PROVÍNCIA SABEM LER E ESCREVER ANALFABETOS

ALAGOAS 41.860 270.408 AMAZONAS 7.613 49.018 BAHIA 249.072 962.720 CEARÁ 79.560 610.213 ESPÍRITO SANTO 9.732 49.746 GOIÁS 22.656 127.087 MARANHÃO 68.571 215.530 MATO GROSSO 10.922 42.828 MINAS GERAIS 224.539 1.444.737 MUNICÍPIO DA CORTE 97.956 124.924 PARÁ 60.395 187.384 PARAÍBA 41.212 313.488 PARANÁ 31.816 84.346 PERNAMBUCO 147.325 605.186 PIAUÍ 27.770 150.657 RIO DE JANEIRO 114.600 375.487

RIO GRANDE DO NORTE 39.822 181.137

RIO GRANDE DO SUL 95.303 271.719

SANTA CATARINA 21.926 122.892

SÃO PAULO 141.067 539.675

SERGIPE 29.134 124.486

TOTAL 1.562.851 (22,8%) 6.853.668 (77,2%)

Fonte: Censo de 1872. Dados ajustados a partir das pesquisas do Núcleo de História Econômica e Demográfica – UFMG –

Observação: a tabela não contempla o percentual da instrução escolar (06 a 15 anos).

Mas quantos desses potenciais leitores estariam plenamente qualificados para participar do processo de esclarecimento político promovido pelos jornais? Essa é outra questão importante a ser respondida, se pretendemos definir o perfil dos leitores daquela época. Novamente nos deparamos com a dificuldade em obter dados a respeito dessa questão. E a resposta pode ser encontrada na própria imprensa, utilizando como referência os redatores e a maneira como avaliavam seus leitores.

Foi exatamente isso o que fizeram os pesquisadores Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros (MOREL; BARROS, 2003), que conseguiram definir alguns aspectos quantitativos sobre o perfil socioprofissional dos leitores do início do século XIX. Os próprios pesquisadores admitem que são dados escassos e não- sistematizados, e culpam a precariedade dos arquivos brasileiros sobre o assunto.

Ainda segundo eles, um primeiro vislumbre sobre o perfil dos leitores pode ser obtido pela divulgação que alguns jornais faziam da quantidade de seus assinantes. Por meio desses dados, publicados nos próprios periódicos, foi possível definir um quadro que classifica os leitores dentro de categorias socioprofissionais.

Os comerciantes formavam o maior contingente, com 35% dos leitores. Em seguida, vinham os militares, 22%. Os clérigos ficavam em terceiro lugar, com 15%. Com isso, essas três categorias formavam a maioria dos leitores dos jornais no Rio de Janeiro, no início do século XIX (MOREL; BARROS, 2003:36).

É interessante registrar que nos dados levantados pelos pesquisadores, aparecem, ainda, senadores, deputados, diplomatas, médicos e cirurgiões, empregados da alfândega e secretarias de estado, ou seja, segmentos profissionais que acabaram por construir um espaço público para o debate político no Brasil (Ibidem:36).

Outro fator importante para determinarmos o alcance do discurso jornalístico naquele período diz respeito ao preço dos jornais. Quanto custava a leitura de um diário? Quanto representava esse tipo de gasto para o cidadão da época? Neves (2002) faz uma comparação interessante entre os preços cobrados pelos jornais e os preços cobrados por outros produtos disponíveis no comércio do Rio de Janeiro,

chegando à conclusão que esses periódicos não eram inacessíveis a grande parte do público.

Numa época em que uma empada de recheio de ave custava 100 réis; um arrátel de linguiça, 280; um quartilho de tinta para escrever, 320; a aguardente de cana, 80 réis a garrafa; um sabão inglês, 120 réis a libra, os periódicos custavam, por número, em 1821, entre 80 e 120 réis. Os panfletos, segundo os catálogos do livreiro Paulo Martim, vendiam-se por um valor entre 80 e 320 réis. Chegava-se a afirmar na época que o povo, por faltar condições de ir ao teatro, divertia-se com os ―bufões [os periodiqueiros] por pouco dinheiro‖ (NEVES, 2002:55/56).

Além do custo das publicações e do alto índice de analfabetismo entre os cidadãos das classes mais baixas, a forma como a sociedade brasileira estava organizada não contribuía para que houvesse uma maior participação política por uma significativa parcela da sociedade. Havia um contingente de excluídos, formado por escravos e despossuídos de toda a sorte. A esses, os jornais nem sequer mencionavam.

O redator do jornal A Malagueta, em seu primeiro número, reconhecia que seu objetivo era o de provocar a análise crítica e justa de todos os cidadãos, isto é, ―proprietários, gentes de guerra, diplomatas, legistas, comerciantes, lavradores, artistas, e de todos os que aqui compõem a grande família de homens livres‖ (Ibidem:57).

A renúncia de Pedro I ao trono do Brasil dá início a um novo período na história política do país, com o surgimento e a consolidação de instituições até então inexistentes (como os partidos políticos), a consequente ampliação do campo de luta político e de suas práticas.

Essas mudanças, aos poucos, irão se refletir também na imprensa, definindo novas configurações para o jornalismo no Brasil, sem, no entanto, provocar alterações essenciais no modelo que perdurou até o final do século XIX, mantendo-o ―a serviço das lutas políticas‖ (ADGHIRNI, 2012:62).

Os pasquins praticamente desaparecem durante a ―Conciliação‖, período que ocorre logo após a chegada ao poder de Pedro II, em que liberais e conservadores firmaram um pacto político com o objetivo de dar governabilidade ao País. O ministério formado pelo Marquês do Paraná, em 1853, o primeiro que reuniu ―saquaremas‖ (conservadores) e ―luzias‖ (liberais) foi uma tentativa de reduzir a tensão política e fazer avançar reformas econômicas necessárias às mudanças provocadas pelo avanço da cultura cafeeira e o fim do tráfico de escravos.

Esse ambiente de aparente entendimento teve reflexos interessantes para a atividade jornalística, que viveu um período de liberdade plena que se prolongou por seis décadas. Conservadores e liberais alternavam-se no poder pacificamente, garantindo a manutenção das políticas e ações do governo que atendiam à elite rural e a manutenção dos inúmeros privilégios por ela conquistados.

[...] o segundo reinado, passados os seus primeiros anos, seria um longo e remansoso período de grande liberdade de imprensa. Basta dizer que durante quase 60 anos o direito substantivo não sofreu, no tangente à imprensa, qualquer alteração (COSTELLA,1970:66).

E os jornais, de uma maneira geral, aproveitaram essas condições favoráveis para ampliar as mudanças que fariam com que a imprensa viesse a se tornar uma atividade comercial lucrativa, melhor organizada, ainda presente nas lutas políticas, mas cada vez mais preocupada em manter-se distante da paixão partidária.