I. BEM AMBIENTAL E PATRIMÔNIO AMBIENTAL
2. Das normas federais específicas
2.3. Decreto n. 99.556/1990 modificado pelo dec. n. 6.640/2008: novo paradigma
2.3.1. Questão preliminar: da inconstitucionalidade formal da nova versão
Nos termos do art. 225, § 1.º, III, da Lei Maior, cumpre ao Poder Público,
no fito de assegurar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, definir,
em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a
serem especialmente protegidos. Em sua segunda parte, tal inciso III frisa que a
alteração e a supressão desses espaços serão permitidas “somente através de lei”,
e veda qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que
justifiquem sua proteção.
Em outras palavras, a Constituição Cidadã permite ao Poder Público
definir (criar) espaços territoriais especialmente protegidos por meio de quaisquer
atos, tenham eles ou não forma de lei, mas, uma vez definidos, seja qual for a
natureza do ato criador, sua alteração ou supressão somente se admitem por meio
56
Nos termos da redação original da Res. CONAMA 01/86, todo e qualquer empreendimento
poluidor estaria sujeito a prévio estudo de impacto ambiental. A Constituição da República, no art.
225, § 1.º, IV, e a Res. CONAMA 237/1997, no seu art. 3.º, porém, preveem sua obrigatoriedade para
as obras e atividades potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente,
sendo que, nos termos do citado dispositivo da Resolução, as demais obras e atividades
potencialmente poluidoras podem submeter-se a outras espécies de estudos ambientais.
de lei em sentido formal, ou seja, estão subordinadas ao princípio da reserva legal.
Prescindirão da forma de lei, tão somente, atos que autorizem a utilização desses
espaços sem comprometer a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.
O pleno do Supremo Tribunal Federal, por maioria, já se manifestou sobre
o tema, ao examinar a constitucionalidade da medida provisória n.º 2.166-67/2001,
que, alterando dispositivos da Lei n. 4.771/1965
57, introduziu a admissibilidade de,
em determinadas hipóteses, autorizar-se administrativamente a intervenção em
áreas de preservação permanente. No célebre acórdão, o egrégio sodalício
reconheceu que o art. 225, § 1.º, III, de fato, consagra o princípo da reserva legal,
mas, entendeu que a medida provisória em questão, em que pese desvestida da
forma de lei, não vilipendiava o preceito constitucional, por não abrir azo para o
comprometimento da integridade dos atributos que estribavam a proteção daqueles
espaços especialmente protegidos
58:
“(...) O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDIDA PROVISÓRIA Nº
2.166-67/2001: UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA DAS ÁREAS DE
PRESERVAÇÃO PERMANENTE. - A Medida Provisória nº 2.166-67, de
24/08/2001, na parte em que introduziu significativas alterações no art. 4o
do Código Florestal, longe de comprometer os valores constitucionais
consagrados no art. 225 da Lei Fundamental, estabeleceu, ao contrário,
mecanismos que permitem um real controle, pelo Estado, das atividades
desenvolvidas no âmbito das áreas de preservação permanente, em
ordem a impedir ações predatórias e lesivas ao patrimônio ambiental, cuja
situação de maior vulnerabilidade reclama proteção mais intensa, agora
propiciada, de modo adequado e compatível com o texto constitucional,
pelo diploma normativo em questão. - Somente a alteração e a supressão
do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente
protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III,
da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal. - É
lícito ao Poder Público - qualquer que seja a dimensão institucional em que
se posicione na estrutura federativa (União, Estados-membros, Distrito
Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou permitir a execução de obras
e/ou a realização de serviços no âmbito dos espaços territoriais
57
Antigo Código Florestal, revogado pela Lei n. 12.651/2012.
58
especialmente protegidos, desde que, além de observadas as restrições,
limitações e exigências abstratamente estabelecidas em lei, não resulte
comprometida a integridade dos atributos que justificaram, quanto a tais
territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art.
225, § 1º, III)”.
Assim como a Lei n. 4.771/1965, por razões ambientais, definira um
regime jurídico de especial proteção para as áreas de preservação permanente, o
Decreto n. 99.556/1990, também impelido por escopo ambiental, deferiu especial
proteção às cavidades naturais subterrâneas situadas em território nacional. Afinal,
guindou tais espaços à condição de patrimônio cultural brasileiro (art. 1.º), e
garantiu-lhes, de conseguinte, não apenas a conservação, mas, sobretudo, a
preservação (arts. 1.º e 4.º), admitindo a utilização de tais cavidades e de sua área
de influência somente dentro de condições que assegurassem sua integridade física
e a manutenção do seu equilíbrio ecológico (art. 2.º).
Já o Decreto 6.640/2008, como visto, alterou profundamente tal regime
jurídico, passando a admitir, em relação à grande maioria das cavidades naturais
subterrâneas (todas aquelas que não sejam consideradas como de grau de
relevância máximo), a incidência de impactos negativos irreversíveis. Nessa
categoria de impactos inserem-se desde aqueles que afetem negativamente, em
caráter definitivo, a biota cavernícola, sua beleza paisagística, sua riqueza cultural,
suas funções ecológicas, como, até mesmo, aqueles que importem a supressão
integral da cavidade, ou seja, sua destruição completa. Em qualquer dessas
hipóteses, não há dúvida de que o novo decreto retirou dessas cavidades o status
de espaços territoriais especialmente protegidos, ou, seja, suprimiu a proteção ele
inerente àquela condição, ou, no mínimo, reduziu-a significativamente, dando ensejo
a utilizações que poderão comprometer os atributos que justificam sua proteção.
Ocorre que o decreto em questão é despido da natureza jurídica de lei em
sentido formal, pois promanado do Poder Executivo sem a participação do Poder
Legislativo. Portanto, jamais poderia haver suprimido ou reduzido a proteção
outorgada a tais espaços territoriais pelo dec. 99.556/1990, permitindo utilizações
que comprometerão os atributos que justificavam sua proteção. Assim o fazendo,
não apenas violou o princípio da reserva legal, concretizado no art. 225, § 1.º, III, da
Constituição da República, como, também, ofendeu o princípio da separação dos
Poderes, consagrado no art. 2.º do Estatuto Constitucional, pois ingressou
indevidamente em campo reservado ao Poder Legislativo
59.
Em que pese à patente inconstitucionalidade formal da nova versão do
decreto, tal questão será abstraída nos itens e subitens subsequentes deste
trabalho. Neles, prosseguir-se-á na análise da atual redação do decreto, buscando
interpretá-lo, sob o prisma material, de modo compatível com os preceitos
constitucionais e legais protetores do meio ambiente.
Nos subitens seguintes, passar-se-á em revista, com mais minúcia, ao
conjunto das regras emergentes da versão atual do decreto. Em suma, elas visam a
disciplinar em que condições as cavidades naturais subterrâneas podem ser alvo de
impactos negativos irreversíveis. Para começar, cumpre tentar preencher o conteúdo
da locução “impacto negativo irreversível”, fundamental para a análise do decreto.
No documento
Tutela do Patrimônio Ambiental Espeleológico no Direito Material Brasileiro
(páginas 130-133)