I. BEM AMBIENTAL E PATRIMÔNIO AMBIENTAL
3. Das normas estaduais
3.12. Tocantins
Por fim, urge evocar a Constituição do Estado de Tocantins, que, em seu art.
138, § 1.º, V, reconhece o patrimônio espeleológico como componente do patrimônio
cultural:
Art. 138. O Poder Público, com a colaboração comunitária, protegerá o
patrimônio cultural, na forma desta Constituição e da lei.
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§ 1º. Constituem patrimônio cultural do Estado os bens de natureza
material e imaterial, individualmente, ou em conjunto, considerados
portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes
grupos formadores dassociedades tocantinense e brasileira, nos quais se
incluem:
(...)
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
científico, ecológico, espeleológico, arqueológico e paleontológico.
CONCLUSÕES
1. As cavidades naturais subterrâneas, popularmente conhecidas como
cavernas, grutas, lapas, tocas, abismos, furnas ou buracos, configuram microbens
ambientais, seja em função de seu valor natural (importância para o equilíbrio
ecológico do meio ambiente e sadia qualidade de vida), seja em razão de sua
importância cultural (registro da identidade, ação ou memória de grupos formadores
da sociedade brasileira, e, portanto, importância para sua sobrevivência histórica e
cultural).
2. O patrimônio espeleológico (do latino spelaeum ou do grego spelaion,
significando “caverna”, com o grego logos, significando “estudo”), por sua vez, é
composto, no que toca aos seus valores ambientais naturais, dos ecossistemas
formados pelas cavidades, pelas águas, pelo ar e pelas rochas que a integram
(elementos naturais abióticos) e pela fauna e flora que as habitam (elementos
naturais bióticos), e, no que se refere aos seus valores ambientais culturais, pela
beleza cênica das cavidades naturais subterrâneas, pelas manifestações culturais
com elas associadas, pelos vestígios de animais e de seres humanos de priscas
eras e demais informações de cunho científico que elas possam estar hospedando,
enfim, por todos os elementos que possam trazer referência à identidade, à ação ou
à memória dos grupos formadores da sociedade brasileira.
3. Sendo, portanto, formado de microbens ambientais naturais e culturais,
o patrimônio espeleológico é uma espécie de patrimônio ambiental, recebido pelas
gerações presentes, que podem fruí-lo, mas têm o dever de transmiti-lo, com as
mesmas potencialidades, às gerações futuras.
4. Esse patrimônio está ameaçado por diversas fontes de impacto, dentre
as quais se destacam o desmatamento, a urbanização, a mineração, a
agropecuária, a visitação, os represamentos e outras obras de engenharia.
5. Diversas normas de direito material são aptas à tutela do patrimônio
espeleológico. Algumas delas foram declaradamente criadas com tal propósito,
sendo o exemplar mais relevante o Decreto n. 99.556/1990. Já outras, embora não
especificamente voltadas a tal fim, podem prestar-se ao mesmo propósito, como é o
caso da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981), da Lei do
Sistema Nacional das Unidades de Conservação (Lei n. 9.985/2000), da Lei de
Proteção do Patrimônio Arqueológico (Lei n. 3.924/1961), da “Lei do Tombamento”
(Decreto-lei n. 25/1937) e da Lei dos Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/1998).
6. Um determinado ecossistema cavernícola pode estar inserido no
âmbito de proteção de uma Unidade de Conservação como seu objeto principal, ou
como pressuposto necessário à proteção do seu objeto principal. No primeiro caso,
a Unidade é criada com o propósito específico de proteger um dado ecossistema
subterrâneo. No segundo, este não é seu foco principal, embora esteja nela inserida
por influir na estabilidade do ecossistema superficial (LSNUC, art. 24).
7. O solo e subsolo de uma Unidade de Conservação não são realidades
estanques, mas que mantém entre si uma cadeia de inter-relações de ordem física,
química e biológica. Portanto, normalmente, a estabilidade do ecossistema
superficial depende da estabilidade do ecossistema subterrâneo, e o uso indevido
dos atributos deste pode comprometer a integridade dos atributos que justificam a
proteção daquele (CF, art. 225, § 1.º, III). De conseguinte, em regra, o subsolo
integra os limites de unidades de conservação criadas especificamente para a
proteção de ecossistemas superficiais, não podendo o silêncio dos atos que as
instituir, nem dos respectivos planos de manejo, ser interpretado em sentido
contrário.
8. Uma vez integrando os limites de uma Unidade de Conservação, o
regime jurídico a elas aplicável incidirá também sobre as cavidades naturais
subterrâneas, como um piso mínimo de proteção, podendo ser ampliado por outras
normas jurídicas, mas jamais diminuído, pois a redução comprometeria a integridade
dos atributos que justificam a proteção do ecossistema tutelado pela unidade de
conservação.
9. Independentemente do grau de relevância da cavidade natural
subterrânea, não se admitem impactos irreversíveis naquelas que façam parte de
unidades de conservação de proteção integral, ressalvadas as hipóteses
expressamente previstas na LSNUC (art. 7.º, § 1.º). Já nas que integram unidades
de proteção de uso sustentável, antes da aprovação do seu plano de manejo, são
admissíveis, tão somente, as atividades destinadas a assegurar a integridade dos
recursos que a unidade objetiva proteger, e, mesmo após tal aprovação, poderá
haver restrições a impactos irreversíveis, pois são proibidas as alterações, atividades
ou modalidades de utilização em desacordo com os seus objetivos, bem como com
o que dispuser o seu plano de manejo e regulamento (art. 28).
10. Especificamente no caso das Reservas Extrativistas, a LSNUC veda
expressamente a exploração de recursos minerais (art. 18, § 6.º), que, na prática,
costuma ser uma das principais fontes de impactos irreversíveis sobre cavidades
naturais subterrâneas.
11. Em razão das características brasileiras de clima e de solo, as
cavidades naturais subterrâneas acabam sendo, em comparação com a superfície,
mais favoráveis à preservação de registros arqueológicos e paleontológicos, e locais
onde eles são mais encontradiços. Por tal razão, a Lei n. 3.924/1961, que visa à
tutela do patrimônio arqueológico, condicionando sua exploração, muitas vezes, a
prévia permissão ou autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), acaba sendo um instrumento normativo a mais à disposição da
tutela do patrimônio espeleológico.
12. Quando integrantes do patrimônio cultural, as cavidades também
podem ser tuteladas por força do Decreto-lei n. 25/1937, que cuida do tombamento.
13. As hipóteses de tombamento já não se resumem àquelas constantes
do vetusto decreto-lei (fatos memoráveis da história do Brasil, excepcional valor
arqueológico, etnográfico, bibliográfico, artístico ou paisagístico), uma vez que o
patrimônio cultural já não se restringe àqueles bens, sendo composto, à luz da Lei
Maior, pelos portadores de relevante referência à identidade, ação ou memória de
qualquer dos grupos formadores da sociedade brasileira. Essa ampliação permite
que, presentes tais características, o tombamento possa incidir sobre cavidades
destinadas a manifestações histórico-culturais, bem como sobre as que ostentem
valor ecológico, paleontológico, ou de outra natureza científica.
14. Ao descrever condutas lesivas ao meio ambiente e à administração
ambiental e cominar-lhes sanções, a Lei n. 9.605/1998 (regulamentada, quanto à
responsabilidade administrativa, pelo Decreto n. 6.514/2008) exerce força preventiva
de danos ambientais. Essa lei introduz, também, instrumentos que facilitam a
reparação do dano ambiental. Seja no aspecto inibitório, seja no reparador, seus
efeitos aproveitam ao patrimônio espeleológico, composto que é por microbens
ambientais naturais e culturais, e cujo acesso e exploração, em regra, depende de
autorização, permissão ou licença da Administração.
15. Em sua versão original, o Decreto n. 99.556/1990 consubstanciou-se
na principal norma de direito material em favor do patrimônio espeleológico, seja por
haver sido elaborada por órgão com inequívoca competência, seja porque conferiu
às cavidades naturais subterrâneas e às respectivas áreas de influência o status de
patrimônio cultural, insuscetível, portanto, de intervenções que prejudicassem seu
equilíbrio ecológico.
16. O Decreto n. 6.640/2008 alterou radicalmente o Decreto n.
99.556/1990, modificando por completo o regime jurídico antes aplicável às
cavidades naturais subterrâneas e às suas áreas de influência, suprimindo-lhes a
presunção absoluta de que integram o patrimônio cultural brasileiro, e, admitindo
que maior parte delas seja passível de impactos negativos irreversíveis.
17. À luz da redação original do Decreto n. 99.556/1990, as cavidades
naturais subterrâneas podiam ser consideradas espaços territoriais especialmente
protegidos. O Decreto n. 6640/2008, sem possuir natureza de lei em sentido formal,
suprimiu ou, pelo menos, reduziu significativamente a proteção outorgada a tais
espaços territoriais pelo Decreto n. 99.556/1990, permitindo utilizações que
comprometem os atributos que justificavam sua proteção. Logo, o decreto alterador
incorreu em afronta ao princípio da reserva legal, inscrito no art. 225, § 1.º, III, da
Constituição da República, bem como ao princípio constitucional da separação dos
Poderes.
18. Os impactos negativos tratados na atual redação do Decreto n.
99.556/1990 são ambientais, por incidirem sobre o meio ambiente. A partir da forma
como o conceitua a Res. CONAMA n. 01/1986, é possível afirmar que o impacto
ambiental negativo é sinônimo de poluição. Portanto, ele consiste numa degradação
das propriedades físicas, químicas ou biológicas do meio ambiente, que pode
importar um prejuízo não apenas ao meio ambiente natural, como, às vezes,
também ao cultural. É necessário, ainda, para que se configure tal impacto, que a
degradação afete negativamente a saúde, a segurança ou o bem estar da
população, as atividades sociais e econômicas, a biota, ou as condições estéticas e
sanitárias do meio ambiente.
19. Impactos negativos irreversíveis sobre cavidades naturais subterrâneas
são os impactos ambientais negativos que, uma vez ocorridos, não permitem a
recondução ao statu quo ante (restauração ambiental) desses bens. Logo, se o
impacto possibilitar, tão somente, a recuperação ambiental, ele, ainda assim, será
considerado irreversível.
20. Embora os admita em relação às cavidades de graus alto, médio e
baixo de relevância, ou suas áreas de influência, o decreto não admite impactos
negativos irreversíveis em cavidades de grau máximo de relevância e em suas áreas
de influência, bem como em cavidades naturais subterrâneas que apresentem
táxons novos, enquanto não se proceder à descrição científica desses novos táxons,
mesmo porque, a depender dessa descrição, o grau de relevância poderá ser
eventualmente classificado no máximo.
21. A aferição do grau de relevância da cavidade será realizada no
procedimento de licenciamento ambiental, pelo órgão competente para licenciar o
empreendimento ou atividade. Em sendo previsto, em relação a ela, impacto
negativo irreversível, e desde que tal impacto seja admissível pelo decreto (o que
dependerá do grau de relevância da cavidade), o licenciamento será condicionado à
sua compensação ambiental.
22. A relação entre preservação e conservação, no decreto, é de espécie x
gênero, afastando-se, portanto da clássica dicotomia preservacionismo isolacionista x
conservacionismo exploratório. Nem por isso aquela relação chega a equiparar-se à
existente na Lei n. 9.985/2000 (LSNUC). Se nesta a diferenciação entre espécie e
gênero se faz com base no tipo de usos dos recursos naturais admissíveis dentro
das unidades (uso direto ou indireto), no decreto ela leva em conta a necessidade ou
não de que a medida compensatória seja suficiente para proteger a cavidade em
caráter permanente (adoção de cavidades testemunhos).
23. Assim, medidas compensatórias de preservação de cavidades são
suficientes para a adoção de cavidades testemunho, ou seja, cavidades protegidas
por tempo permanente, ao passo que medidas compensatórias de conservação são
um gênero, que podem comportar medidas compensatórias de preservação (adoção
de cavidades testemunho), ou outras medidas e ações que contribuam para a
proteção de cavidades (insuficientes para a proteção por tempo permanente).
24. Nos licenciamentos que demandem medidas compensatórias de
preservação, o órgão licenciador não poderá admitir que os empreendimentos sejam
concebidos de modo a inviabilizar a possibilidade de que a preservação das
cavidades testemunho se dê na mesma área do empreendimento (área contínua e
no mesmo grupo geológico da cavidade que sofreu o impacto).
25. Nos licenciamentos de empreendimentos que gerem impactos
negativos irreversíveis a cavidades de alto grau de relevância ou suas áreas de
influência, o órgão licenciador deverá exigir que as cavidades testemunho a serem
preservadas possuam os mesmos atributos as cavidades de alto grau de relevância
impactadas irreversivelmente.
26. Já nos licenciamentos de empreendimentos que gerem impactos
negativos irreversíveis a cavidades de médio grau de relevância ou suas áreas de
influência, o órgão licenciador deverá avaliar, segundo o caso concreto, se o caso é
de medida de compensação de preservação (adoção de cavidades testemunhos),
ou outra espécie de medida. No primeiro caso, deverá exigir que as cavidades
testemunho a serem preservadas possuam os mesmos atributos das cavidades de
médio grau de relevância impactadas irreversivelmente.
27. No caso de impactos negativos irreversíveis sobre cavidades de grau
baixo de relevância, a norma veda a fixação das medidas compensatórias de
preservação de cavidades (adoção de cavidades testemunho). Todavia, não impede
sejam aplicadas outras medidas compensatórias. Logo, por força do princípio do
poluidor-pagador no viés repressivo, o órgão licenciador deve exigir outras espécies
de medidas compensatórias, voltadas à conservação do patrimônio espeleológico.
28. Sempre que fixar medida compensatória de preservação de cavidades,
o órgão licenciador deverá exigir que o empreendedor comprove ser o proprietário
do imóvel sito na área de infuência das cavidades testemunho, bem como deve
inserir na licença prévia, como condicionantes: as obrigações que incidirão sobre
esse empreendedor-proprietário, imprescindíveis à preservação da cavidade; a
obrigação de assunção dessas obrigações, pelo empreendedor, num termo de
compromisso de ajustamento de conduta; e a obrigação de que conste, em tal termo
de compromisso, o dever de o empreendedor levá-lo à averbação na matrícula do
imóvel situado na área de influência das cavidades testemunho.
29. Se houver impactos negativos irreversíveis a cavidades de grau de
relevância máximo, gerados por empreendimento potencialmente causador de
significativa degradação ambiental, será necessário cumular a compensação do art.
36 da LSNUC com a medida compensatória do § 1.º do art. 4.º do Decreto n.
99.556/2008 (preservação de cavidades testemunho), sempre que a compensação
do art. 36 não conceder a mesma eficiência reparatória da medida compensatória do
decreto. Nessa hipótese, porém, o impacto compensado pela medida do decreto
deverá ser abatido da base de cálculo da compensação do art. 36 da LSNUC, a fim
de evitar bis in idem.
No documento
Tutela do Patrimônio Ambiental Espeleológico no Direito Material Brasileiro
(páginas 191-200)