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QUESTÕES SOBRE A ESCOLARIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

No documento Currículo, inclusão e educação escolar (páginas 163-171)

Kelly Maia Cordeiro

Mestra em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e professora na Rede Municipal de Educação de Angra dos Reis, atuando na educação especial

Grupo de Pesquisa- Observatório da Educação Especial e Inclusão Escolar: Práticas Curriculares e Processos de Ensino e Aprendizagem-Campus da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro em Nova Iguaçu.

Palavras-chave: Deficiência intelectual. Jovens e adultos; Ensino e aprendizagem Introdução

Se discrimino o menino ou a menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não os escuto, não posso falar com eles...

(FREIRE, 1996, p. 120).

Constantemente durante a atividade de rotina realizada no Atendimento Educacional Especializado (AEE) para jovens e adultos com deficiência intelectual (DI), a jovem Marcela, de 26 anos de idade, pergunta a sua professora: “Eu sei lê?” De pronto, a professora olhando em seus olhos responde: “Você sabe lê algumas coisas.” A jovem não diz mais nada e a professora dá seguimento à atividade de rotina do dia. Ao relembrar desse episódio passado no campo de pesquisa, nos remetemos à questão da aprendizagem e da epígrafe de Freire (1996), ao enfatizar a necessidade da escuta, da abertura à fala dos educandos, para uma educação que vai além da observação, com respeito às potencialidades e saberes dos educandos.

Ao dizer que a “leitura do mundo precede a leitura da palavra”, Freire (2003, p. 11) está incorporando a leitura pessoal de mundo, de vivências guardadas na memória e na compreensão dos códigos linguísticos que nos rodeiam. Nesse sentido, compreendemos que a resposta da professora corresponde a um significado abrangente do conceito de leitura, que se desloca para um bem maior, que não somente a decodificação de palavras.

A leitura vista pela ótica do contexto social, cultural e histórico, citada por Freire (2003), corrobora com a teoria histórico-cultural de Vigotski. Suas obras tornaram-se referência para diferentes pesquisas nas áreas da psicologia e da educação. Vale destacar que a teoria histórico-cultural trouxe estudos sobre o desenvolvimento cognitivo e a valorização das relações sociais nesse âmbito. Sua contribuição para a

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educação especial tem possibilitado importantes reflexões acerca da internalização de conceitos científicos preconizados pelas escolas.

Portanto, o presente artigo busca apresentar a pesquisa em processo inicial de andamento, que investiga a escolarização de jovens e adultos com deficiência intelectual, com base na perspectiva histórico-cultural de Vigotski em diálogo com outros autores, como Fichtner e Pletsch, que pesquisam a educação especial.

Justificativa

A inclusão de alunos com deficiência em turmas regulares vem acontecendo no Brasil desde a década de 1990, a partir da publicação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008). Essa discussão vem sendo feita tanto na academia quanto nos organismos que discutem as produções dessa área (JANUZZI, 1992; MAZZOTTA, 1996; GLAT; PLETSCH, 2012; entre outros), demonstrando a necessidade de maiores estudos que visem a inclusão e a escolarização desses sujeitos.

Ao realizar o levantamento bibliográfico sobre a inclusão de jovens e adultos com deficiência intelectual no contexto da escolarização, Almeida (2016) evidenciou que há poucas pesquisas nessa área, e aquelas existentes tratam de forma precária a formação desses sujeitos, que demonstram ter muito interesse no aprendizado da leitura, escrita e no desejo de ingressar no mercado de trabalho.

O Ministério da Educação lançou recentemente a Nota Técnica nº 36/2016/DPEE/SECADI/MEC, com “Orientações para a organização e oferta do Atendimento Educacional Especializado na Educação de Jovens, Adultos e Idosos”. O documento enfatiza o direito dos jovens, adultos e idosos com deficiência à educação ao longo da vida; a educação especial articulada à EJA e o atendimento educacional especializado nessa modalidade de ensino. Isso reafirma a perspectiva de educação inclusiva, o que tensiona as políticas públicas locais e as práticas pedagógicas voltadas para jovens e adultos.

No município de Angra dos Reis-RJ, a Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia (SECT), por meio da Gerência de Educação Especial (GEE), tem desenvolvido algumas ações, visando cumprir as determinações para o atendimento aos sujeitos da educação especial. O censo escolar de 2015 do município demonstrou que o maior número de educandos da educação especial é de

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deficientes intelectuais, e a maior parte deles está matriculada nos anos finais do ensino fundamental ou na modalidade da EJA.

Apesar dos esforços, muito se tem a avançar no direito à educação para todos na perspectiva da inclusão. Percebemos que ao se tratar de jovens e adultos com deficiência intelectual, a oferta se torna mais escassa e mais problemática, principalmente se pensarmos na transição para o trabalho.

O município apresenta uma perspectiva de inclusão que envolve o AEE nos espaços escolares e fora deles através da Unidade de Trabalho Diferenciado (UTD). Portanto, consideramos relevante nos debruçarmos numa investigação ao público- alvo da educação especial, jovens e adultos com deficiência intelectual, contribuindo socialmente e cientificamente com a ampliação de pesquisa nessa área.

Objetivos

Historicamente a sociedade percebe os jovens e adultos com deficiência intelectual como crianças para vida toda. É comum na UTD-DI os responsáveis relatarem práticas infantilizadas de comportamento, vestimentas e linguagem. Um controle excessivo sobre o sujeito e a tudo o que ele faz ou tenta fazer. Limitando o desenvolvimento do seu aprendizado ao tratá-lo como criança ou incapaz de realizar alguma tarefa.

Compreendemos que jovens e adultos com deficiência intelectual, pelo seu histórico escolar, têm experiência de vida acumulada pelos anos de idade e escolarização com trajetórias irregulares advindas de anos acumulados na escola. De acordo com FICHTNER (2010, p.72)

Devemos aprender a compreender que seu desenvolvimento intelectual acontece de numa maneira diferente de uma criança normal. A criança portadora de deficiência mental não pode usar na mesma forma e com a mesma facilidade a possibilidade e as vantagens de apropria-se da sua cultural. O desenvolvimento decorre aqui de um nível cultural e um nível intelectual diferente.

Na pessoa com deficiência intelectual os processos de desenvolvimento humano ocorrem de modo atípico, o que necessita de compreensão diferenciada do seu desenvolvimento.

Assim, a pesquisa tem por objetivo: analisar a relação entre ensino e aprendizagem de jovens e adultos com deficiência intelectual no contexto do Atendimento

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Educacional Especializado (AEE) e na perspectiva de vida mais independente. A partir desse propósito emergem os seguintes objetivos específicos: verificar quais as principais especificidades dos sujeitos da pesquisa na relação do ensino e aprendizagem; identificar como são construídas as práticas educativas na perspectiva de vida mais independente; refletir e problematizar sobre as questões da mediação, a fim de provocar intervenções propositivas e afirmativas com aqueles que atuam nessa área.

Para a abordagem dessa temática e desse objetivo, partimos das seguintes questões: como jovens e adultos se posicionam diante dos desafios lançados nas práticas pedagógicas realizadas no AEE para o aperfeiçoamento das funções psicológicas superiores? O que podemos inferir sobre a mediação no contexto do AEE e nas relações parentais desses jovens e adultos? Que estratégias podem ser utilizadas para o fortalecimento das condutas sociais e práticas dos sujeitos da pesquisa?

Referencial teórico

De acordo com Vigotski (2009), para o desenvolvimento de conceitos científicos é necessária a participação de uma pessoa adulta, promovendo interações entre as construções aprendidas e as novas construções. Assim, estimula-se o desenvolvimento de processos psicológicos, possibilitando que o sujeito avance na formulação de conceitos, ultrapassando a fase inicial para os conceitos mais elaborados (estágios: sincretismo, pensamento por complexo e pensamento por conceito).

A construção de conceitos científicos está intimamente ligada ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores (FPS) e das interações sociais que o sujeito vivencia. Para Fichtner (2010), as estruturas psicológicas superiores são exemplificadas como: “ações conscientemente controladas, atenção voluntária, memorização ativa, pensamento abstrato, ação intencional.” (p.19)

A prática em sociedade pela interação entre sujeitos gera experiências diferenciadas que potencializam o desenvolvimento das FPS. Por isso Vigotski (2012) enfatiza a importância da colaboração e das atividades coletivas, principalmente para pessoas com deficiência:

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Na relação social se produz uma espécie de serviço mútuo. O que é intelectualmente mais dotado adquire a possibilidade de manifestar sua atividade social com respeito ao que é menos dotado e ativo. Este último, por sua vez, extrai da comunicação social com o mais ativo aquilo que todavia lhe resulta inacessível, o que com frequência constitui um ideal inconsciente ao que tende a criança intelectualmente deficiente. (VIGOTSKI, 2012 p.224).

Todavia, os estudos nos mostram que ao longo da história da humanidade, a segregação e o isolamento mais se evidenciaram no trato da pessoa com deficiência (OLIVEIRA, 2016), afetando o desenvolvimento não só das FPS, mas de toda a vida em sociedade da pessoa com deficiência.

Com o avanço no conceito sobre deficiência intelectual produzido historicamente, a Associação Americana de Deficiência Intelectual e Desenvolvimento (AADID, 2010 apud PLETSCH; SOUZA, 2105) propositalmente traz no conceito de deficiência intelectual o comprometimento das áreas cognitivas e do comportamento adaptativo (expresso em habilidades adaptativas, conceituais, sociais e práticas), corroborando com os estudos de Vigotski acerca da necessidade de se promover a circulação desse sujeito socialmente, em fomentar atividades de participação coletiva e colaborativa para o seu desenvolvimento.

Para conhecimento das necessidades e desenvolvimento intelectual da pessoa com deficiência, é importante que a formação docente permita a este:

“Os conhecimentos sólidos sobre desenvolvimento humano e áreas, como, por exemplo, a linguagem. A relação entre esses conhecimentos e a promoção de interações sociais de forma dialógica, sem desconsiderar a subjetividade dos partícipes (aluno e professor, aluno e aluno), é que possibilitarão a aprendizagem dos conceitos necessários para o desenvolvimento.” (PLETSCH, 2014, p.16).

Metodologia

A proposta de pesquisa apresentada está ancorada na perspectiva histórico-cultural de Vigotski, por entendermos que esta prima pelo desenvolvimento cognitivo a partir das relações sociais, dando suporte teórico às questões de investigação e dialogando com o contexto atual, que busca resgatar processos sociais mais humanos, com mais respeito às diferenças entre os sujeitos.

Diante do fato de sermos, ao mesmo tempo, pesquisadores e professores da educação especial, compreendemos que a pesquisa além do caráter de investigação, busca contribuir propositivamente no espaço da pesquisa. Nesse

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sentido, optamos pelos caminhos da pesquisa-ação devido à proximidade do pesquisar com o local de pesquisa e pelo favorecimento de ações positivas no grupo. Para Thiollent (2005, p. 16):

A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.

Para tanto, lançaremos mão da observação, filmagem, diário de campo e de entrevistas semiestruturadas que, de acordo com Bauer e Gaskell (2007), têm a finalidade de explorar as opiniões, as representações subjetivas sobre um assunto. Além disso, a perspectiva de semiestrutura permite a flexibilidade, a variação para pequenas modificações no planejado que cabe em um roteiro previamente estruturado – escolha dos entrevistados, momento, questões, análise, entre outros. Subsidiado pelas políticas nacionais que orientam a educação especial, o campo de pesquisa caracteriza-se com AEE , pois trata-se de um dos núcleos da Unidade de Trabalho Diferenciado (UTD) que atende jovens e adultos com deficiência intelectual. Está situada no município de Angra dos Reis-RJ, vinculada à Secretaria Municipal de Educação Ciência e Tecnologia (SECT), matricula alunos da educação especial de diferentes bairros e como desenvolvimento diferenciado de aprendizado. A unidade foi criada em 2014 e no seu projeto inicial se apresenta como um espaço para a realização de oficinas pedagógicas voltadas para desenvolver habilidades para a vida adulta mais autônoma e independente e com a ampliação ser um projeto de transição para o trabalho.

A escolha dos sujeitos da pesquisa foi balizada sobre dois aspectos: o primeiro ser atendida por professoras diferentes, pois uma das questões se refere à mediação, então é importante termos ampliado as estratégias de trabalho; o segundo é ser uma indicação do grupo de trabalho da UTD-DI.

Com base no relatório da unidade, apresentamos as jovens que participarão da pesquisa.

 Marcela: 26 anos de idade, fala e comportamento bastante infantilizado, em função da superproteção familiar. Os pais (por adoção) não investem muito na sua autonomia e, portanto, ela é extremamente dependente deles. A mãe refere quadro de agressividade quando contrariada ou exigida em algumas

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tarefas. Não lê nem escreve. Usa medicamentos e tem acompanhamento médico;

- Arielle tem 31 anos de idade, é mãe de um menino de 12 anos com Transtorno do Espectro Autista, mora com a mãe e irmã e apresenta boa adaptação e autonomia. Faz uso de medicamento e demonstra desejo por atividades laborais.

A pesquisa está em fase inicial, as observações foram iniciadas com essas duas jovens, posteriormente serão gravadas e reavaliados outros sujeitos para a pesquisa. Realizaremos um cronograma das atividades de campo que terá entrevista com a família das jovens e as professoras.

Entendemos que sujeitos sem os comprometimentos da deficiência intelectual se sustentam, tomam decisões, circulam e participam da vida em sociedade de forma autônoma. O que corresponde aos mesmos direitos da pessoa com deficiência, porém, os que se enquadram neste perfil necessitam de um tempo maior e de estratégias diferenciadas para seu aprendizado. Imergir nesse campo pode trazer contradições inerentes aos processos educacionais e ao fazer pedagógico. Essas provocam reflexões e embates, aspectos necessários para o fortalecimento das convicções e possíveis defesas aos diretos da pessoa com deficiência intelectual.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Rosiney Vaz de Melo. Escolarização de alunos com deficiência

intelectual: a construção de conhecimento e o letramento. 2016.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão, 2016.

BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e

som: um manual prático. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

BRASIL. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na

Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, DF: SEEP, 2008.

FICHTNER, B. Introdução na abordagem histórico-cultural de Vygostky e seus

colaboradores. 2010. Disponível

em:http://www3.fe.usp.br/secoes/inst/novo/agenda_eventos/docente/PDF_SWF /226Reader%20V ygotskij.pdf. Acessado em: 10 abr. 2016.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática

educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 45. ed. São Paulo: Cortez, 2003.

GLAT, Rosana; PLETSCH, Márcia Denise. A escolarização de alunos com

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Desenvolvimento Educacional Individualizado. Revista Linhas Críticas,

Brasília, v. 18, n. 35, p. 193-208, jan./abr. 2012.

JANUZZI, Gilberta. A luta pela educação do deficiente mental no Brasil. São Paulo: Autores Associados, 1992.

MAZZOTTA, Marcos José Silveira. Educação especial no Brasil: história e

políticas públicas. São Paulo: Cortez, 1996.

OLIVEIRA, Mariana Corrêa Pitanga. A escolarização de alunos com deficiência

intelectual à luz da perspectiva histórico-cultural: avaliação mediada e

apropriação conceitual. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação)

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu-RJ, 2016.

PLETSCH, Márcia Denise; SOUZA, Flávia Faissal. Atendimento educacional

especializado: das diretrizes políticas à escolarização dos alunos com deficiência intelectual. Educação e Fronteiras On-Line, Dourados-MS, v. 5, n.

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PLETSCH, Márcia Denise. Educação Especial e Inclusão Escolar: políticas,

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Pedagógica, Catalão-GO, v.12, n.1, p. 7-26, jan/jun. 2014.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-ação. 14. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2005.

VIGOTSKI, Lev Semenovich. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

VYGOTSKI, Lev. Semenovitch. Obras escogidas V: fundamentos de

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O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA E A INCLUSÃO

No documento Currículo, inclusão e educação escolar (páginas 163-171)

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