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Raízes Bíblico-Teológicas da Autoridade-Poder no Cristianismo

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CAPÍTULO III A IGREJA CATÓLICA, A SANTA SÉ E O ESTADO DA CIDADE

3.1. A Igreja Católica

3.1.1. Raízes Bíblico-Teológicas da Autoridade-Poder no Cristianismo

De uma maneira mais pedagógica, escolhemos o autor Edward Schillebeeckx, em sua obra Por uma Igreja mais humana (1989), para mostrarmos de maneira mais cronológica como o pensamento teológico sobre o poder e seu exercício na Igreja passou por mutações.

O acontecimento Jesus de Nazaré, como nos é narrado pelos evangelhos, apresenta-se com pouca ou quase nenhuma atenção à formação de uma estrutura organizacional. Aliás, as estruturas religiosas presentes no tempo de Jesus são por ele duramente criticadas. O movimento religioso revolucionário que Jesus de Nazaré propõe vai noutra direção.

Esta proposta inicial logo teve que passar por adaptações com a expansão da pregação do evangelho. Foi precisamente com Paulo de Tarso, em suas viagens de pregação do evangelho e formação das primeiras comunidades em cidades greco- romanas, que se apresentou a necessidade de se criar um mínimo de estruturas. Para tentar resolver alguns conflitos na comunidade de Corinto, ele apela para a imagem do corpo com suas múltiplas funções em harmonia umas com as outras:

Vós todos sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros desse corpo. Assim, na Igreja, Deus estabeleceu, primeiro os apóstolos; segundo,

os profetas; terceiro, os que ensinam; depois, dons diversos: milagres, cura, beneficência, administração, diversidade de línguas (1Cor 12, 27-28). Os pregadores do evangelho gostam de falar que nesta lista de Paulo está um elenco de possíveis carismas. Ainda que o sejam, eles moldaram as comunidades e estabeleciam uma ordem hierárquica, pois o próprio Paulo fala em µSULPHLUR VHJXQGR e WHUFHLUR¶ H LVWR IRL PROGDQGR D YLGD GD FRPXQLGDGH sem a presença física do Apóstolo.

Um dos aspectos culturais do tecido social greco-romano que mais fortemente marcou a estruturação do ambiente cristão foi a questão da subordinação:

A relação subordinada de Eva Ecclesia com Adam Christus é tema teológico legítimo, mas que se tornou o modelo ilegítimo da sujeição social GD PXOKHU DR KRPHP DWp ³HP WRGDV DV FRLVDV´ Mi TXH R DPRU FULVWmR consegiu tornar mórbido este código da casa e das relações de sujeição, que foram aceitas pela sociedade civil (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 94). A herança social greco-romana não conhecia uma espécie de dicotomia entre as relações dentro da casa (ôikos) e aquelas públicas ou sociais. Então, o tipo de sujeição que existia nas relações privadas, na família, eram reproduzidas nos ambientes públicos ou externos à família. De alguma maneira, o caráter de liberdade pregado pelo cristianismo foi lenta e solidamente sendo substituído pelos valores da família greco-romana, preponderando mais ainda a romana, visto que este é o império no qual o evangelho se expande. Assim:

Há uma tensão entre uma ordem eclesiástica anterior e uma ordem eclesiástica nova em formação (...) nesta nova proposta as mulheres são elogiadas pela sua obediência. A palavra-chave não é liberdade, mas obediencia (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 95-96).

Percebemos que os valores não só mudam, mas rapidamente se LQVWLWXFLRQDOL]DP2³IRLSDUDDOLEHUGDGHTXH&ULVWRYRVOLEHUWRX´WUDQVIRUPD-se em obediência ao statu quo social no que se refere às relações homem-mulher-homem.

Passemos para o exercício da autoridade na comunidade cristã nas cidades onde Paulo e outros evangelizadores anunciavam o evangelho e como consequência fundavam uma comunidade de discípulos de Jesus:

Além do apostolado propriamente dito, as comunidades cristãs não receberam nenhum ordenamento ou ordem eclesial das mãos de Jesus, TXDQGRHOHDLQGDFRPSDUWLOKDYDGHQRVVDKLVWyULDWHUUHQD$OLiVRV³GR]H´ eram símbolo da comunidade de Deus escatológica e vindoura, que no princípio e por longo período de sua história terrena ficou sem ser

organizada. Este dado primário, fundamental do Novo Testamento, deve deixar-nos muito cautelosos (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 101).

Esta advertência do autor é importante, pois nos ajuda a buscar nas Escrituras o que elas mesmas querem nos dizer e não fundamentos antiquíssimos para as estruturas que se foram formando pelos séculos.

Um conflito estruturante nos é narrado em At 621. Alguns grupos étnicos, especificamente hebreus e gregos, começaram a queixar-se sobre o atendimento aos marginalizados da comunidade:

De qualquer maneira, não deveríamos esquecer que somente três anos depois da morte de Jesus (isto é, antes que Paulo se tornasse cristão) graves dificuldades surgiram em Jerusalém, especialmente entre os cristãos que falavam aramaico ± ³RV KHEUHXV´ ± e os judeus cristãos que falavam grego ± ³RVKHOHQLVWDV´RVVHJXLGRUHVGH(VWHYmR$RFDVLmRSURStFLDSDUD estas dificuldades pode ter sido oferecida por certa dose de negligência por parte dos cristãos que falavam aramaico na iniciativa de providenciar auxílio material aos membros judeus-cristãos da comunidade que falavam grego. No entanto, todos os sinais indicam que a causa do conflito era mais profunda, porque, desde o princípio, os judeus que falavam grego alimentavam outras e mais amplas expectativas do que os representantes da tradição de Jerusalém e eles introduziram no cristianismo estas idéias mais largas (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 104-105).

Este tipo de conflito, pessoas que chegam na comunidade trazendo sua compreensão de mundo diferente daquela vivida na comunidade, perpassará a história do cristianismo. O encontro com novas idéias ou culturas muitas vezes torna-se ocasião de confronto de conceitos ou concepções. Mas como a comunidade, chamada da primeira hora, resolveu aquela tensão?

2 FRQIOLWR IRL ILQDOPHQWH UHVROYLGR TXDQGR ³RV DSyVWRORV MXQWR FRP WRGD D comunidade encarregaram sete membros da comunidade cristã de Jerusalém que falavam grego a se ocuparem dos judeus-cristãos de

21 Eis o texto completo segundo a versão da Bíblia de Jerusalém: At 6,1-7. Naqueles dias, aumentando o número dos discípulos, surgiram murmurações dos helenistas contra os hebreus. Isto porque, diziam aqueles, suas viúvas eram esquecidas na distribuição diária. Os doze convocaram então a multidão dos dLVFtSXORV H GLVVHUDP ³1mR p FRQYHQLHQWH TXH DEDQGRQHPRV D 3DODYUD GH Deus para servir às mesas. Procurai, antes, entre vós, irmãos, sete homens de boa reputação, repletos do Espírito e de sabedoria, e nós os encarregaremos dessa tarefa. Quanto a nós, permDQHFHUHPRV DVVtGXRV j RUDomR H DR PLQLVWpULR GD 3DODYUD´ $ SURSRVWD DJUDGRX D WRGD D multidão. E escolheram Estevão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timon, pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentaram-nos aos apóstolos e, tendo orado, impuseram-lhes as mãos. E a palavra de Deus crescia. O número dos discípulos multiplicava-se enormemente em Jerusalém, e considerável grupo de sacerdotes obedecia à fé. Na versão da Bíblia GR3HUHJULQRRYGL]³GHVLJQDLVHWHKRPHQV´2YHUERGHVLJQDUGiXPWRPGHPDLVDXWRULGDGH dando a entender que aos apóstolos coube a tarefa de confirmar o ato de designação da comunidade. Esta proposta difere do processo de centralização que se institucionalizou posteriormente. As questões que envolviam a vida da comunidade pelos seus próprios membros eram resolvidas.

Jerusalém que falavam grego. [...] De fato, eles eram em certo sentido ³QRYRV DSyVWRORV´ HPERUD D FRPXQLGDGH GH -HUXVDOpP PDQWLYHVVH VXDV atividades sob um pouco de vigilância (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 104). Aqui começava a se estruturar um tipo de poder colegiado, sobretudo para os assuntos de interesse vital para a comunidade que eram pensados e decididos por todos aqueles que tinham o poder de condução e outros membros que tinham outros poderes e funções. Isto ILFDFODURQDH[SUHVVmRGD(VFULWXUD³RVDSyVWRORVMXQWRFRP WRGDDFRPXQLGDGH´GHFLGLUDP$LQGDTXHFRPRSDVVDUGRWHPSRRSRGHUGHFLVyULR da comunidade cristã foi-se restringindo até o ponto de se chegar ao poder monárquico, esse aspecto fundacional das primeiras comunidades, decidir conjuntamente, está presente, ainda que de maneira silenciosa e discreta, nas decisões monolíticas das hierarquias. Isto ajuda a explicar as longas demoras WHPSRUDLV SDUD TXH DV ³$OWDV 3DUWHV´ tomem uma decisão. O poder colegiado faz pensar nas múltiplas consequências que uma decisão pode trazer para a coletividade dos fiéis.

Depois da morte e ascensão de Jesus aos céus:

Os cristãos da segunda geração, que haviam conhecido Jesus através dos apóstolos, começaram a ser chamados de apostólicos quase que da mesma maneira, como por exemplo, os seguidores de Bento começaram a se chamar de beneditinos, não imediatamente depois, porém em estágio posterior. Para o Novo Testamento a apostolicidade é, antes de mais nada, título distintivo para a próSULDFRPXQLGDGHFULVWmFRPEDVHQR³HYDQJHOKRGH -HVXV&ULVWR´TXHIRUDSURFODPDGRjFRPXQLGDGHGRVSULPHLURVGLVFtSXORV de Jesus (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 106).

A referência às raízes apostólicas ou à apostolocidade, via de regra, é feita para acentuar o aspecto de uma autoridade e seu exercício de maneira centralizada. No entanto, os estudos bíblicos, desde final do século XIX, têm mostrado que a apostolicidade se refere àqueles que com sua pregação fundavam as comunidades cristãs e depois partiam para outras missões. Neste contexto, a autoridade na comunidade era exercida mais como serviço do que poder. Desta maneira,

Era natural que, quando estes apóstolos missionários partissem, a sua função de direção e coordenação fosse assumida por líderes naturais e espontâneos nas várias comunidades (frequentemente os primeiros convertidos e os primeiros colaboradores, masculinos e femininos, do apóstolo); naturalmente existem testemunhos históricos deste fato. Nos escritos primitivos do Novo Testamento 3DXORMiGL]DXPDFRPXQLGDGHTXHHOHIXQGRX³1yVYRVURJDPRVLUPmRVTXH tenhais consideração por aqueles que se afadigam no meio de vós, e vos são superiores e guias no Senhor. Tende para com eles um amor especial, por causa GRVHXWUDEDOKR´ 7VVFI5PV  6&+,//(%((&.;p. 106).

É importante ressaltar que Paulo se refere àqueles que exercem a função de ³VXSHULRUHVHJXLDV´QRSOXUDORXVHMDQmRHUDDSHQDVXPDSHVVRDTXHGHWLQKDD autoridade na comunidade. Além do mais, ele não os trata com títulos específicos, presbíteros ou diáconos.

Fora do universo bíblico oficial (aquilo que foi escrito e canonizado), também encontramos suporte teológico do progressivo caminho de mudança do eixo no que se refere ao exercício do poder na comunidade cristã:

O episkopos nas cartas de Inácio de Antioquia22 é o centro de toda a unidade da Igreja. Ele é pessoalmente apoiado pelos diáconos e governa a Igreja junto com seus presbíteros. É impressionante constatarmos que a autoridade do bispo, dos presbíteros e dos diáconos não provém dos apóstolos através de uma sucessão apostólica. Pelo contrário, estes ministros são imagem terrena de um protótipo ou modelo celeste. O bispo representa Deus; os diáconos são o próprio Cristo e os presbíteros são os apóstolos. A autoridade do bispo vem diretamente de uma relação arquetípica entre o único Deus do céu e o bispo, seu representante na terra (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 97).

A institucionalização da pessoa e autoridade do bispo23 na Igreja Católica encontrou em Santo Inácio de Antioquia um dos mais sólidos fundamentos teológicos, pois, até então, a função episcopal nas comunidades nascentes ora era exercida por um presbítero, ora por um diácono, sem conflito. Porém, a partir do século II, os papéis foram se cristalizando e, no século IV, tomam conceitos tipicamente da realeza:

Exatamente como na literatura greco-URPDQDVHGL]LD³XPVy'HXVXm só LPSHUDGRUHXPVyLPSpULR´DVVLPWDPEpPRSULQFtSLRQD,JUHMDDJRUDHUD ³XP Vy 'HXV XP Vy ELVSR H XPD Vy ,JUHMD´ [...] O bispo preside a FRPXQLGDGH RFXSDQGR ³R OXJDU GH 'HXV´ [...] Deste modo, o bispo é, por assim dizer, colocado fora e acima da comunidade crente. Naturalmente ele não tem poder soberano por direito de nascimento ou independentemente e QHPHOHRUHFHEHGRVILpLV5HFHEHHVWHPLQLVWpULR³GRDPRUGH'HXV3DLH GR6HQKRU-HVXV&ULVWR´ )LODGHO 7XGRRTXHRELVSRID]pDSURYDGR pRU'HXV 6PLUQ SRUTXH'HXV3DLp³R episkopos GHWRGRV´ 0DJQ 6,1) (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 96-97).

A partir deste suporte teológico, o poder colegiado diluiu-se em papéis e funções na comunidade, mas as decisões tornaram-se monolíticas, ao menos aparentemente, como disse acima. No caso específico desta pesquisa, a Santa Sé,

22 As Cartas de Inácio de Antioquia que chegaram até nós podem ser encontradas em versão recente na Coleção Patrística editada pela Paulus Editora. Inácio de Antioquia. IN: Padres Apostólicos. São Paulo: Paulus, 2014, p. 10-70.

23 Sobre a crescente centralidade do bispo nas comunidades dos primeiros séculos, além da obra de Inácio de Antioquia, temos outro suporte teológico nas Cartas de Clemente Romano, as quais podem ser encontradas na Coleção Patrística, editada pela Editora Paulus, em 2014.

desde a proclamação da República, mostrou-se interessada em assinar uma concordata com a República Brasileira, mas os bispos brasileiros mostravam desinteresse ou desconfiança. O exercício do poder colegiadamente pode explicar os silêncios e as demoras históricas nas tomadas de decisões.

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