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Capítulo 1 RESISTÊNCIAS NEGRAS: AS LUTAS DOS MOVIMENTOS NEGROS

1.3 Trabalho

1.3.1 Racismo e anti-racismo no trabalho

A história econômica brasileira está ligada ao trabalho do povo negro, pois foi através da exploração do trabalho de milhões de africanos trazidos a força ao Brasil que se construiu a estrutura básica que possibilitou que o país atingisse o desenvolvimento.

Durante quase quatro séculos de história o Brasil prosperou sob a égide do trabalho escravo. “O que tornou o país possível foi a escravidão. Ela domou com o suor e, sobretudo, o sangue do negro, a hostil natureza tropical”, argumenta Santos (SANTOS, 2001, p.83).

Os negros produziram a riqueza que sustentou o desenvolvimento nacional e as fortunas da metrópole sob condições de vida e laborais extremamente precárias. Até o início do século XIX, as formas de atividade laboral brasileiras eram múltiplas; em alguns estados

do Nordeste, as atividades econômicas estavam ligadas, principalmente, à agricultura e à pecuária de subsistência e agricultura de exportação (cana de açúcar e algodão). Em Minas Gerais vigorava o ciclo do ouro, enquanto ao longo do litoral, sobretudo em Recife, Salvador e Rio de Janeiro, despontavam alguns nichos de concentração urbana que contavam com serviços especializados no comércio e atividades manufatureiras.

Na primeira metade do século XIX os trabalhadores escravos representavam a maior parte da força de trabalho nas áreas urbanas. Subdividiam-se entre os escravos domésticos, responsáveis pelas tarefas de manutenção da casa – cozinheiras, aias, damas-de-leite, lavadeiras, cocheiros, etc. – e os negros de ganho, que durante o dia vendiam seus serviços nas ruas e praças em atividades profissionais, como artesãos, cozinheiras, carregadores, vendedores e pedintes, garantindo, assim, a renda e o sustento de grande parte de famílias cariocas.

Segundo Theodoro

havia ainda um segmento de mão-de-obra mais qualificada formado por artesãos, prestadores de serviços de reparações e mesmo trabalhadores adaptados aos serviços industriais”, (...), pois naquela época, o Rio de Janeiro já contava com um incipiente, mas efetivo, processo de crescimento da atividade industrial.(Theodoro, 2008, p22),

De acordo com os dados da Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Rio de Janeiro, citados por Soares

ao final da década de 1850, a cidade contava com 95 manufaturas nos mais diferentes ramos industriais, com destaque para a produção de sabão, velas, fundição e máquinas, metalurgia de ouro, prata e rapé, além de cordaria, calçados, móveis, produtos químicos e papel (SOARES, 2007, apud Theodoro, 2008, p22).

Se até a metade do sec.XIX os cativos constituíam a base laboral nas áreas urbanas brasileiras, a partir da segunda metade deste século essa situação foi alterada significativamente. O aumento gradativo da população mestiça livre e liberta e as novas demandas do mercado econômico, além da chegada de levas de imigrantes nas cidades do Sudeste e Sul, configuraram um novo panorama urbano para o país.

O crescimento da produção do açúcar, somado à modernização dos engenhos e ao surgimento das grandes usinas de produção, repercutiu no processo de urbanização da cidade de Recife, já que para lá se dirigiu uma grande quantidade de negros. Com diminuição da exportação de açúcar, no entanto, reduziu-se a necessidade de trabalhadores, e a cidade ficou

inchada de “uma população pauperizada e vivendo de atividades marginais e informais, situação que perdura até os dias atuais” (THEODORO, 2008, p.23).

A cidade de Salvador, antiga capital do país, concentrava uma elevada população negra, responsável pela execução de serviços urbanos diversos. Esse contingente populacional habitava as áreas de favelas e palafitas, “processo de estratificação social bastante comum na maioria das cidades de países periféricos, gerando concentração de pobreza e miséria em áreas urbanas” (SANTOS, 1965 apud Theodoro, p.23).

Em Minas Gerais, a atividade de mineração contribuiu para o desenvolvimento de um complexo sistema de transporte e de pecuária. Contudo o café, cuja produção se alastrou pelo Vale do Paraíba, no oeste paulista, tornou-se o filão mais dinâmico da economia por várias décadas. A produção cafeeira dependia, a princípio, quase exclusivamente da mão-de-obra africana. Porém, com a proibição formal do tráfico de escravos, em 1850, a demanda de trabalhadores para o setor foi suprida por escravos vindos de outras regiões do país, principalmente da Região Nordeste.

A aglomeração nos grandes centros urbanos trouxe sérias implicações para a vida do segmento negro, subgrupo populacional que mais cresceu nas áreas urbanas no decorrer do século XIX. Enquanto nas áreas rurais exerciam atividades ligadas principalmente à agricultura e à pecuária de subsistência, nas cidades e vilas ocupavam-se das atividades artesanais e manufatureiras. Entretanto, nem todos conseguiam inserir-se na realização dessas atividades. Na avaliação de Lúcio Kowarick “o sistema colonial-escravocrata era duplamente excludente, pois a um só tempo cria a senzala e gera um número de livres e libertos, que se transformam nos desclassificados da sociedade”. (KOWARICK, 1994, p.58),

O fim do tráfico, a composição racial e os movimentos de resistência, que causavam medo às elites brancas, fizeram com que se aprofundassem as discussões sobre o futuro da nação no que diz respeito ao trabalho escravo. O país começava a constituir-se como uma nação capitalista, razão pela qual era necessário pensar a sua identidade nacional. Coube ao Estado buscar alternativas para solucionar o problema da composição étnica do país, e a alternativa encontrada foi subsidiar a vinda de imigrantes estrangeiros.

Destarte, nas primeiras décadas do século XIX milhares de trabalhadores de origem portuguesa vieram para o Brasil para serem engajados na força de trabalho, subsidiados pelo Estado Brasileiro. O mesmo ocorreu a partir de 1871, quando levas de povos europeus vindos de Portugal, Itália e Espanha engrossaram o contingente de trabalhadores imigrantes em terras brasileiras.

A substituição da mão-de-obra escrava pela dos imigrantes começou bem antes da abolição da escravatura e não significou o fim da exploração do negro no Brasil, tampouco a sua integração igualitária à sociedade brasileira. Na transição do trabalho escravo para o trabalho livre os ex-escravos não foram incorporados à classe trabalhadora assalariada nem tiveram direito à terra, que já havia sido distribuída aos grandes fazendeiros através da Lei de Terras de 1850.

Como sintetiza Theodoro

no Brasil, a abolição significará a exclusão dos ex-escravos das regiões e setores dinâmicos da economia. Em sua grande maioria, eles não serão ocupados em atividades assalariadas. Com a imigração massiva, os ex-escravos vão se juntar aos contingentes de trabalhadores nacionais livres que não têm oportunidades de trabalho senão nas regiões economicamente menos dinâmicas, na economia de subsistência das áreas rurais ou em atividades temporárias, fortuitas, nas cidades (THEODORO, 2008, p.31).

O recurso de utilização da mão-de-obra imigrante em detrimento da negra é interpretado por Furtado, em seu livro “A formação econômica do Brasil”, como fruto da racionalidade econômica dos empresários do café, pois consideravam que

os homens livres e libertos, além de não adaptados ao trabalho regular assalariado, estariam muito dispersos no setor de subsistência, que se estendia de Norte ao extremo sul do país, tornando difícil e extremamente custoso o seu recrutamento. (FURTADO, 1970, p.137).

Além disso, o autor ressalta o despreparo para o assalariamento que caracterizava os negros:

o homem formado dentro desse sistema social (a escravidão) está totalmente desaparelhado para responder aos estímulos econômicos. Quase não possuindo hábitos de vida familiar, a idéia de acumulação de riqueza é praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente suas necessidades, cabendo-lhe um papel puramente passivo nas transformações econômicas do país (FURTADO, 1970, p. 140-141).

Embora estudos sobre ocupação de escravos e homens livres de cor no século XIX apontem para a ocupação de profissões especializadas de diferentes naturezas, outro argumento utilizado para a marginalização do negro era a sua desqualificação para o trabalho. Esse argumento é bastante superficial e discriminador, pois até antes da abolição a maioria das atividades laborais nas áreas rurais e urbanas eram realizadas pelos negros – de um momento para outro, portanto, estes ter-se-iam tornado inaptos e desqualificados. A esse

respeito, Hasenbalg (1979) adverte que “os imigrantes, salvo exceções, tampouco dispunham de qualificação profissional especializada”.

A extinção da escravidão, ocorrida em 1888, mudou o status jurídico da população negra, mas não lhe conferiu os direitos de cidadania. Os negros permaneceram alijados da terra, do mercado formal de trabalho e do acesso à instrução.

Segundo Guimarães,

das senzalas, partiram as populações negras para as margens, tanto no sentido físico, quanto no social, de onde até hoje não saiu. O processo de enfavelamento se agigantou, a partir daí. As doenças (sífilis, tuberculose, lepra... e outros males, como a loucura) cuidaram de reduzir a vida média da população negra.

A repressão militar cresce aos poucos contra aqueles que de escravo-trabalhador adquirem o status de trabalhador escravo, órfão de direitos e estigmatizado por 350 anos de escravismo.

Também, a partir daí, temos o início da discriminação racial no trabalho, já que a presença do ex-escravo estigmatizado pelo escravismo, prostituía as relações de trabalho livre (GUIMARÃES, 2000, p.57-58).

Com a aceleração do processo de urbanização, as tentativas de desenvolvimento da indústria, a construção de ferrovias e a organização de instituições de crédito e incremento do comércio abriram perspectivas de progresso, todavia os ex-escravizados não tiveram acesso às novas frentes de trabalho, que privilegiavam a mão-de-obra imigrante.

A literatura sobre a questão racial no Brasil tem mostrado que a ausência de políticas públicas com finalidade de integração dos ex-escravizados nos setores dinâmicos da economia tinha como objetivo a sua diluição como grupo racial no contexto nacional, uma vez que, no período pós-abolição, era patente que a população brasileira era menos branca do que se pretendia e mais negra do que desejava.

Nesse sentido observamos como a constituição do mercado de trabalho brasileiro foi pensada de forma racializada, excluindo, sobretudo, a população negra. Outro aspecto importante a ser considerado quando pensamos a estruturação do mercado de trabalho é a construção da ideologia da vadiagem.

De acordo com Lima,

com a construção de um novo ethos do trabalho, criou-se simultaneamente o seu oposto, a vadiagem. Sua principal característica foi a vigilância e a repressão das autoridades policiais em relação à população negra, transformando a ausência de emprego em uma opção por não trabalhar. Foi uma forma de estabelecer um novo tipo de controle sobre a população recém-liberta e de defini-la como inapta ao trabalho também em termos morais (LIMA, 2001, p.56).

Essa visão do trabalhador negro como inapto para o trabalho formal atravessou os tempos e alcançou o século XXI, produzindo um olhar diferenciado sobre o mesmo e reduzindo as suas oportunidades ocupacionais, como nos mostram os indicadores sociais descritos no 2º. Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2009-2010, elaborado pela equipe do LAESER/UFRJ7.

1.3.2 Mercado de trabalho: discriminação e desigualdades

O mercado de trabalho brasileiro é marcado pelo passado colonial e escravista do país e pela forma como se deu a sua constituição, com excedente de força de trabalho formado por negros libertos e brancos não proprietários, reforçado pela crescente imigração, pelo expressivo crescimento populacional e pelo êxodo rural e, a partir dos anos de 1930, pela sua subordinação ao projeto de industrialização do Brasil.

O que se configura como uma exclusão de uma parte significativa da força de trabalho: o segmento negro. Orientado por um projeto de nação que tinha no embranquecimento populacional uma de suas estratégias o Estado Brasileiro subsidiou a política de imigração de mão-de-obra européia, favorecendo a entrada desses trabalhadores em todos os setores de atividade formal.

Sem conseguir inserir-se nesta esfera da estrutura social, restou ao trabalhador negro o mundo do trabalho8, onde realizava tarefas rotineiras e pouco valorizadas em troca de parcas retribuições. Esse afastamento do mercado de trabalho impactou todos os outros setores de sua vida, estabelecendo um círculo vicioso de desvantagens.

Bento avalia que

o legado de 400 anos de escravidão no país, aliado à inexistência de ações direcionadas à inclusão do segmento negro, no período posterior à abolição da escravidão, bem como a persistência da discriminação cotidiana, contribuem para a manutenção desta situação desigual (BENTO, 2001, p.23).

7

LAESER – Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais, Estatísticas das Relações Raciais. 8

A expressão “Mundo do trabalho” tornou-se corrente entre os pesquisadores do trabalho nos anos recentes. Tal fato é contemporâneo das análises que buscam explicar a crise do trabalho. A expressão procura englobar todo o universo do trabalho, referindo-se ao contexto e às relações em que o mesmo se realiza. No mundo do trabalho articulam-se a legislação do trabalho, as formas alternativas de trabalho que correm por fora das relações assalariadas, o trabalho desregulamentado, o trabalho precário, [...] as diferentes proporções em que se encontram homens e mulheres, as diferentes raças; o trabalho infantil, etc. (SOUZA JÚNIOR, 2000, p.219).