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C ONCEITOS E F ERRAMENTAS DE ANÁLISE

1.1 T RATADÍSTICA DOS SÉCULOS XVI, XVII E XVIII COMO REFERÊNCIA TECNOLÓGICA DE FORTIFICAÇÃO

1.1.2 T RATADOS DO SÉCULO

No século XVI, as armas de fogo não superaram a artilharia neurobalística. As primeiras armas da artilharia pirobalística ainda não eram seguras (havia risco de explosão na manipulação da pólvora e de rompimento do tubo no disparo), nem fáceis de serem manuseadas (não apresentavam boa mobilidade e o tempo de recarga era muito longo, cerca de um disparo/hora), eram imprecisas e não alcançavam grandes distâncias (cerca de 400 metros, igualando-se à artilharia neurobalística). Além de tudo, os gases e chamas liberados durante os disparos ofereciam perigo; o efeito do barulho e do clarão produzidos na detonação eram maiores que o seu efeito de destruição real. Havia, de fato, muito mais um efeito moral do que destrutivo. A partir de 1520, surge uma nova artilharia pirobalística, cujo efeito de destruição era maior (Guia de inventário, 2015: p. 21). As mudanças consistiram na organização da artilharia em termos de material e de pessoal e na problematização científica do tiro, que passou a ser analisado matematicamente. Em 1530, a partir de novos estudos, os calibres dos canhões, ou seja, o diâmetro do projétil ou diâmetro interno do cano da arma foram padronizados e se buscou

a proporção metálica adequada, entre cobre e estanho, para a produção das armas de fogo (Alves, 1959: p. 97, 104-109 e 193). A padronização dos calibres foi realizada a partir de estudos que identificaram a melhor relação entre o comprimento e o diâmetro, de maneira a se obter o maior alcance. Nesse novo contexto, o tipo de fortificação (Fortificação de Transição) que havia sido desenvolvido para resistir às armas de fogo não era mais eficaz diante do aprimoramento da artilharia pirobalística.

Após um século de experimentações com base em conhecimento científico, os Tratados voltados para a arquitetura deram lugar aos Tratados específicos de fortificação, publicados no século XVII. Esses Tratados aproveitaram as referências do século anterior e estruturaram a cidade como uma praça-forte, que não estava apenas voltada para sua exclusiva defesa, mas para a defesa de um território. A partir de tais referências foram construídas novas cidades na Itália, França, Alemanha e Holanda.

Palmanova (Itália) era uma cidade fortaleza, fundada em 1593, que definiu o espaço urbano como um espaço cultural. Seu traçado regular, estruturado a partir de ruas que partiam de uma praça central, estava inserido em uma estrela de nove lados. Henrichemont (França) era também uma cidade renascentista. Foi fundada em 1608 por Charles Gonzaga (Duque de Mantua e Montferrat). Seu plano foi estruturado a partir de uma praça central, de formato quadrado, de onde saiam quatro ruas ortogonais entre si, dividindo a cidade em quatro quarteirões. Da praça central saem ainda quatro ruas em diagonal que interligam os quarteirões à praça central. Coevordan (Holanda), por sua vez, foi reformulada, em 1597, por Maurício de Nassau4. Essa cidade apresentava traçado radial inserido num polígono de sete lados (Valla, 2007: p. 200- 202).

Nesse contexto, consolidou-se o tipo de fortificação denominado, pelas referências atuais sobre o tema, Fortificação Moderna, abaluartada, que incorporou nas suas formas os cálculos matemáticos e os conhecimentos de geometria e trigonometria. O objetivo desse novo tipo era se defender dos efeitos da artilharia pirobalística da primeira metade do século XVI, já mais amadurecida e com maior poder de destruição. Esse tipo de fortificação atingiu seu auge em

4 Maurício de Nassau (1567-1625) era militar alemão, filho do líder holandês Guillermo de Orange-Nassau, o

Taciturno. Não deve ser confundido com João Maurício de Nassau (1604-1679) militar alemão que administrou os domínios da WIC no Nordeste brasileiro.

1650, com a utilização de um elemento denominado baluarte5, de formato pentagonal, cujo sistema de defesa passou a ser também uma forma de ataque (Valla, 2007: p. 200-205).

Nesse período, século XVII, também foi publicada uma grande quantidade de Tratados que ficaram conhecidos nas referências documentais como Tratados de Fortificação e se caracterizaram pela especialização da construção de fortificações. A fortificação passou a ser parte integrante e fundamental de um sistema que pretendia a defesa de um território e não mais de uma cidade. O resultado teórico, desse momento, foi o desenvolvimento de modelos de praças-forte, enquanto símbolo da cidade moderna, que desenvolvia funções civis e militares. Essa nova base normativa explicitada nos Tratados do século XVII acabou por definir um novo tipo de fortificação, que foi denominado Fortificação Moderna.

No início do século XVII, começou a diminuir a influência dos italianos, pela ineficiência prática das suas regras diante do fato da guerra, pois suas regras eram consideradas rígidas. Outros autores, diferentemente, buscavam aplicar as regras a partir dos dados da realidade, propondo adaptações (Valla, 2007: p.204). Alguns dos Tratados publicados no século XVII estão listados abaixo, dentre estes, alguns Tratados serão apresentados no capítulo referente à Tratadística.

 o Tratados italianos do arquiteto Vicenzo Scamozzi (1548-1616), “L’ Idea della Architettura Universale”, publicado em 1615; e o de Pietro Sardi, “Corona imperiale della architectura militare”, publicado em 1618;

 dentre os Tratados holandeses estão aqueles do engenheiro militar Samuel Marolois (1572-1627), “opera mathematica” e “Géometrie nécessaire à la fortification”, publicados em 1614 e 1628; do engenheiro Simon Stevin (1548-1620), “Les oeuvres mathématiques”, publicado em 1634; de Adam Freitag, “L’ Architecture militaire ou La fortification Nouvelle: Augmentée et enrichie de forteresses régulieres, irrégulières, et de dehors; le tout à la practique moderne“, publicado em 1640; de Nicolas Goldman, “La Nouvelle Fortification”, publicado em 1645; de Matthias Dogen, L’Architecture Militaire et Moderne ou Fortification”, publicado em 1647;

5 O baluarte é um elemento característico da Fortificação Moderna, que se configurava como uma estrutura

construtiva de planta pentagonal irregular, situada nos seus ângulos e saliente à fortificação. É composto por flancos, onde a artilharia se concentrava para defender a fortificação (através do tiro flanqueado); e pelas faces, por onde eram feitos os ataques aos inimigos (Guia de inventário, 2015: p.67).

 dentre os Tratados franceses de Antoine Deville, “Les fortifications ou l’ingénieur parfait“, publicado em 1628; e de Blaise-François Pagan, “Les Fortifications“, publicado em 1645.

Todos esses Tratados e referências do século XVII agrupavam-se em diferentes escolas de fortificação por apresentarem especificidades nacionais dos países de origem, como por exemplo, as escolas italiana, alemã, holandesa, francesa e espanhola. As escolas de fortificação se baseavam em diferentes princípios orientadores, com características específicas, em função de estarem territorialmente e politicamente sujeitas a diferentes condicionantes.

A Escola Italiana, pioneira, surgiu no final do século XV, dominou todo o século XVI e ainda exerceu influência sobre as demais escolas no início do século XVII. A escola Alemã, descendente da escola italiana, iniciada por Albertch Dürer, foi a segunda escola de fortificação da Europa. A Escola Holandesa surgiu em 1600, com a instalação do curso Duytsche Mathematique, na Universidade de Leiden, para cartógrafos, engenheiros militares e mestres- de-obras. Surgiu a partir da escola italiana, mas desenvolveu características próprias, estimulada pela Guerra dos Oitenta Anos contra a Espanha (Valla, 2007: p.421; Moreau, 2011: p. 45). A Escola Francesa teve início em 1604, com a publicação do Tratado “La fortification démontrée et réduite en art” de Errard Le-Bar-Le-Duc (1554-1610). Inspirada na escola italiana também recebeu influência da escola holandesa (Moreau, 2011: p.46). A Escola Espanhola, por sua vez, surgiu com a publicação, em 1598, do Tratado “Teórica y practica de fortificación” do engenheiro Cristóbal Rojas (Valla, 2007: p.199).