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A ratificação pela Bolívia da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos

Como discorrido alhures, os povos indígenas bolivianos, a partir da década de 1950, passaram a se organizar, internamente, para exigirem o seu reconhecimento como povos, a salvaguarda de seus direitos, a manutenção de suas culturas e a possibilidade de participação ativa no Estado boliviano. Nos anos 70, essas reivindicações atingiram a seara internacional, aumentando a abrangência e a visibilidade de suas lutas, com resultados positivos sendo obtidos, mormente, com a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, ratificada, no mesmo ano, pela Bolívia, durante o processo da Asamblea

Constituyente, que culminou na aprovação do Texto Constitucional de 2009.

O primeiro organismo internacional a tratar sobre a questão indígena foi a OIT, em 1919, quando, no ato de sua criação, abordou temas relacionados aos direitos sociais e

econômicos desses grupos, com destaque para as peculiaridades culturais e institucionais. Mais tarde, a participação da Bolívia no âmbito das Nações Unidas, em 1948, resultou na proposta para a criação de uma subcomissão internacional, especializada na temática indígena, mas que, na época, foi rejeitada (ONU, 1990).

Contudo, a preocupação com a proteção às minorias já era veiculada na ONU, resultando na criação da Subcomissão de Prevenção à Discriminação e Proteção das Minorias das Nações Unidas, em 1947, que, a partir de seus estudos, foi criado o Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas, em 1982, que teve, como fruto, a elaboração da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (LITTLE, 2002).

Os povos indígenas bolivianos, antes, silenciados, resistiram à marginalização e figuraram, ativamente, no cenário sócio-político internacional, com a reivindicação do direito de serem reconhecidos como índios, o que adquiriu uma conotação mais politizada a partir de 1970. Suas vozes passaram a ser ouvidas internamente, com a superação dos regimes militares e a abertura democrática e, internacionalmente, pela proeminência dos direitos humanos e pela necessidade de proteção das minorias (BARIÉ, 2003a).

No ano de 1988, o referido Grupo de Trabalho, após o amadurecimento dos estudos quanto à proteção dos direitos dos povos indígenas, e com a participação ativa destes, produziu a primeira minuta da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, fomentando a discussão nos países, como a Bolívia, cuja representação indígena foi reforçada com a criação, no mesmo ano, do Fundo Voluntário para Populações Indígenas, que viabilizava recursos financeiros para a participação das lideranças indígenas. Além disso, a Bolívia passou a protagonizar esse empoderamento indígena quando foi escolhida para sediar o Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe, como explica Ricardo (1998, p. 25):

Sediado na Bolívia, este Fundo teve apoio inicial do Bando Interamericano de Desenvolvimento (BID), do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (Fida) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e da OIT, e visa atender a projetos encaminhados pelos próprios índios ou suas organizações. A estrutura do Fundo pressupõe a presença de delegados indígenas e de representantes dos Estados membros nos seus órgãos de administração. Embora de forma bastantes incipiente, essa é, sem dúvida, a primeira vez que a representação indígena é admitida a nível institucional.

Internamente, os povos indígenas e campesinos bolivianos promoveram muitas ações contestatórias, com destaque para a Marcha por el Território y la Dignidad, em setembro de 1990, forçando o governo, cujo presidente era Jaime Paz Zamora, e a população andina a

perceberem a sua existência e suas exigências territoriais (REINAGA, 1991). Esses movimentos foram decisivos para a ratificação, pela Bolívia, do Convênio nº169 da OITsobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, o que auxiliou na revisão das políticas bolivianas e possibilitou a concessão de direitos territoriais e do enfrentamento das desigualdades (FAJARDO, 1999).155

Outro episódio importante para aflorar esse sentimento de pertença e a luta pelo reconhecimento se deu no ano de 1992, com o fechamento dos quinhentos anos de descobrimento da América, pois, para os indígenas, esse fato significou o início de cinco séculos de desrespeito, de marginalização e de exclusão, motivo pelo qual foram realizados inúmeros encontros para discutir a historicidade indígena e a situação na época, que ainda era de intensa fragmentação do povo boliviano e de mitigação dos povos indígenas, como expõe Rocabado (2009, p. 129):

El retorno de una discusión contemporánea sobre el problema del indio reapareció con fuerza en el año 1992 com motivo de la commemoración de los 500 años del descubrimiento de América. Se realizaron eventos políticos y seminários académicos para discutir la historia entreverada y a la vez única de América Latina y Bolivia. Muchas de las tesis ideológicas planteadas por los sectores kataristas e inclusive las aristas izquierdistas del panorama político boliviano, habían retomado las críticas al señorialismo, el colonialismo interno u los planteamientos sobre la revolución índia propugnadas por el escritor indio Fausto Reinaga, quien por intermédio de una producción teórica abundante y plagada de resentimiento racial había encendido la mecha del detonante multiétnico que representa la sociedad boliviana pluri-cultural y fragmentada.

No ano de 1994, houve a promulgação da nova Constituição de 1994, que se constituiu em um marco ao promover a inclusão da especificidade sociocultural dos povos indígenas, em atenção ao contexto multicultural, em especial, sobre os direitos coletivos, a sua diversidade cultural, sua autonomia política e seu pluralismo jurídico. Mais tarde, outra conquista significativa foi a adoção, pelo governo boliviano, do Pacto de Unidad, em 2006 – durante o processo da Asamblea Constituyente. Conforme Schavelzon (2010, p. 6) esse Pacto “[...] nucleava as maiores organizações camponesas e indígenas integrantes do MAS, ou somente aliadas do mesmo. Nesse espaço, elaborou-se uma proposta de Constituição que foi assumida pelo MAS em várias comissões”.156

Logo, os movimentos dos povos indígenas e campesinos bolivianos tiveram papel de destaque internacional na concretização do novo constitucionalismo latino-americano –

155 Ratificado mediante a Lei nº. 1.257, de 11 de julho de 1991, e incorporada à Constituição de 2009.

156 A proposta do Pacto era o controle dos recursos naturais pelo povo, a autonomia indígena e camponesa, o

combate ao latifúndio, pluralismo jurídico, direitos coletivos indígenas, autonomia sobre seus territórios e representação política direta no Parlamento.

multicultural -, mediante as reivindicações para a inclusão de suas premissas nas normas constitucionais, o que, associado à redemocratização e à melhoria das condições de vida, permitiu a ampliação da participação política desses novos sujeitos coletivos e a legitimação de suas identidades étnicas, fornecendo novéis aportes à cidadania e à reinvenção da cultura política (BARIÉ, 2003b).

Como noticiado, muitos países, inclusive, o Brasil, posicionaram-se contrários ao reconhecimento, aos povos indígenas, do direito à autodeterminação dos povos, porque entendiam que a soberania nacional poderia ser mitigada. Contudo, a Bolívia, a exemplo de outros países, sempre manifestou o interesse em que esse direito fosse afirmado, porque entendia que ele permitiria a elaboração de um meio para a resolução de conflitos e para a promoção da paz entre os povos, mediante uma coexistência justa, equitativa, pacífica e respeitosa (RIVERO, 2009).

A Bolívia foi o primeiro país a ratificar a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, por intermédio da Lei nº. 1.110, de 7 de outubro de 2007 – aprovada pela totalidade dos membros da Cámara de Senadores - para, como expõe Quispe (2009, p. 5) “[...] mantener y fortalecer sus propias instituciones, culturas y tradiciones y perseguir su propio desarrollo conforme con sus necesidades y aspiraciones”. Essa atitude foi mais um ato que demonstrou o enfrentamento efetivo às políticas colonialistas e colonizadoras, que promoviam a exclusão mediante a negação do direito à diferença, pois, agora, mediante a afirmação do pluralismo jurídico, da autonomia e da sustentabilidade, o direito à diferença está se materializando na construção da cidadania multicultural (SANTOS, 2003).157

A DNUDPI foi inserida no texto constitucional boliviano por intermédio da Lei nº. 3.760, de 7 de novembro de 2007158, que a adotou na sua integralidade, como lei doméstica, fato tido pela ONU (2009, p. 3) como primordial para o reconhecimento dos direitos indígenas no país, uma vez que vincula muitas organizações indígenas, como a

157 Essa forma de cidadania se configura em um espaço de luta pelo reconhecimento dos direitos e o

enfrentamento às classificações sociais, por meio de uma redistribuição de renda. É uma alternativa ao tradicional modelo etnocêntrico da cidadania liberal e da soberania estatal, que mantinha os povos indígenas na condição, ou categoria, de inferiores, incapazes e, logo, tutelados, para o arraigamento de uma política multicultural, que afirma a identidade simbólica e visibiliza as identidades étnicas e o pan-indigenismo (UNESCO, 2006).

158 Conforme o artigo 1º da Lei nº. 3.760, “De conformidad con el artículo 59, atribución 12ª, de la Constitución

Política del Estado, se elevan a rango de Ley de la República los 46 artículos de la Declaración de las Naciones Unidas sobre los derechos humanos de los pueblos indígenas, aprobada en la 62ª Sesión de la Asamblea General de la Organización de las Naciones Unidas (ONU), realizada en Nueva York el 13 de septiembre de 2007” (BOLÍVIA, 2014b).

[...] Confederación Sindical de Colonizadores de Bolivia (CSCB); Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB), Confederación Nacional de Mujeres Campesinas, Indígenas Originarias de Bolivia – Bartolina Sisa (CNMCIOB-BS), Confederación de Pueblos indígenas de Bolivia (CIDOB), Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu (CONAMAQ) y por la Coordinadora de Organizaciones Indígenas Campesinas de Bolivia (COINCABOL) ésta constituye el equipo técnico de las cinco organizaciones nacionales de los pueblos indígenas originarias y campesinas de Bolivia.

O artigo 256.1 da Constituição boliviana reza que os tratados e instrumentos internacionais que versam sobre direitos humanos, que tenham sido firmados e ratificados pela Bolívia e que declarem esses direitos mais favoráveis do que os contidos na Carta, devem ser aplicados de maneira preferencial, deixando evidente a preocupação com a afirmação dos direitos humanos e a sua concretização. Essa afirmação equipara o valor dos tratados e instrumentos internacionais de direitos humanos aos da própria Constituição, que, no caso em concreto, deve ser atendido àquele que melhor corresponder aos direitos, pelo que a Declaração estudada foi, além de ratificada, incluída no arcabouço legal em sua completude (CLAVERO, 2006).

A DNUPDI é crucial para a afirmação dos direitos dos povos indígenas e campesinos bolivianos e se coaduna com o texto constitucional na medida em que reconhece a igualdade, a diferença, a livre determinação e a liberdade de eles buscarem o desenvolvimento econômico, social e cultural (ONU, 2014). Quanto à livre determinação, é necessária a concretização plena, pois os povos indígenas – e a sociedade boliviana - ainda não conseguiram se desnudar dos traços colonialistas que culminaram na extrema disparidade social e na marginalização dessas sociedades (DÍAZ-POLANCO, 1996).

Mesmo que muitos países tenham ratificado a Declaração, há uma diferença sinóptica quanto a sua aplicação efetiva, ou seja, de um Estado que se reconheça como multi ou pluricultural, de outro, que assuma essa condição de formação plural. A Bolívia avocou essa condição de plurinacional, declarando-se como tal, o que representa uma reconstituição principiológica dos elementos constitutivos do Estado, o que, paulatinamente, está sendo concretizado nas searas legal e política (CLAVERO, 2011).

Outrossim, percebe-se que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, no momento em que reconheceu os direitos coletivos como equitativos aos direitos individuais, cunhou o que pode ser denominado de um terceiro status, que não corresponde nem ao Estado, nem ao indivíduo, mas, sim, à coletividade, à cidadania multicultural (BERGER, 2011). Por isso, ela se adequa, impecavelmente, à nova conformação

normativa boliviana, que se declarou como um Estado plurinacional comunitário (artigo 1º da Constituição).159

Dessa feita, pode-se afirmar que está se desenvolvendo uma verdadeira cidadania étnica na América Latina, posto que não é um fenômeno de um único local, mas uma tendência que aflorou a partir dos direitos, assegurados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e, especificamente, ao trato indigenista, na Declaração das Nações unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas. Como se pode conjeturar, tal convergência está se acentuando a partir do momento que os Estados passaram a procurar, com maior ênfase, a assegurar a efetividade dos direitos e garantias às minorias marginalizadas, dentre elas, os povos indígenas.

159 A Declaração em estudo centra-se no direito à cultura própria, e do seu exercício com igualdade frente ao

Direito Estatal, devendo ser compreendido como um “[...] pacto de coexistência radicalmente democrática entre saberes e práticas institucionais próprias e válidas para cada âmbito de vida”, nas palavras de Vargas (2009, p. 154).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que as históricas e seculares lutas sociais pelo reconhecimento e pela proteção dos direitos humanos, promovidas por, praticamente, todas as sociedades, tenham adquirido certa acolhimento, mesmo nos âmbitos internos de muitos países, que, na época, gozavam de soberania absoluta, não foi suficiente para evitar a eclosão das duas Grandes Guerras Mundiais, onde, principalmente, na segunda – 1941 a 1945 -, constataram-se violações dos direitos das pessoas nunca antes vistas, tanto em proporção, quanto em atrocidades. O nazismo e suas práticas representou o maior dos expoentes de desconsideração da vida e dos direitos humanos, motivo pelo qual a sociedade e os países se organizaram para buscarem um convívio de paz, de respeito e de proteção efetiva aos direitos fundamentais, para que atos, de natureza atroz, não mais ocorressem.

Em 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas, com a finalidade de ser um fórum internacional de articulação política que viabilizasse a conversação e a solução pacífica dos conflitos e que fortalecesse o reconhecimento e a proteção dos direitos humanos. Todas as pessoas passaram a ser consideradas como fontes de direito, como seu meio e fim, restando evidenciado que nenhuma justificativa seria plausível para que seus direitos basilares fossem violados.

Em 1948, foi elaborada a Declaração Universal dos Direitos do Homem e, a partir desse Documento, muitos outros foram criados, ora para tutelar direitos humanos em geral, e em outros momentos, para salvaguardar direitos específicos, de grupos peculiares, normalmente, marginalizados, como as minorias. A partir de então, formou-se o Sistema Internacional de Direitos Humanos, atualmente, representado pelo sistema global, da ONU, e pelos sistemas regionais – o europeu, o africano e o americano -, que possuem mecanismos de monitoramento dos direitos humanos, como os Relatórios, as Comunicações Interestatais, as Petições Individuais e os Procedimentos de Investigação.

Um dos Documentos centrais que integram o SIDH é a Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas, promulgada em 2007, mas que foi estudada e formulada por mais de vinte anos. A necessidade de se compor um Documento internacional próprio para a salvaguarda dos direitos dos povos indígenas foi percebida por conta das costumeiras marginalização e exclusão a que essas sociedades eram (e ainda são) submetidas, situação semelhante em todos os países que possuem minorias indígenas, como os da América-Latina. Ressalta-se que o considerável lapso temporal para que o texto fosse

aprovado decorre, justamente, da forte resistência dos Estados em reconhecerem os direitos dos povos indígenas, e, assim, implementá-los internamente.

Paulatinamente, ainda que com muita oposição da grande maioria dos países, entre eles, o Brasil, o texto da Declaração foi formulado, contendo, ao final, a asserção do termo

povos, para designar as comunidades indígenas, além do reconhecimento ao direito à autodeterminação dos povos, requisitos imprescindíveis para que eles pudessem ser vistos como portadores de culturas diversas, e como povos originários, pré-colombianos, terem os direitos, mormente, ao território, salvaguardados. A DNUDPI é o Documento internacional protetivo mais específico para a salvaguarda, a manutenção e a afirmação dos povos indígenas e de seus direitos, sendo um instrumento valioso para que a realidade de pobreza, de marginalização e de desrespeito começasse a ser alterada para uma óptica de reconhecimento, de respeito, de tolerância e de valorização do multiculturalismo e do exercício do direito à diferença.

A Declaração referida abarca, de forma geral, os direitos dos povos indígenas; contudo, pontua, especificamente, algumas premissas correlatas, primordiais para a consumação de seus dispositivos. Logo, para uma análise otimizada, no presente trabalho, esses direitos foram classificados em doze pontos, a destacar: o direito individual e coletivo de acessar os direitos humanos, a igualdade e as liberdades individuais; o direito à autodeterminação, à autonomia e ao autogoverno; o direito à autoidentificação; o direito à nacionalidade; o direito à permanência nos territórios tradicionais e a garantia a não- assimilação; o direito ao espaço saudável; o direito à preservação das culturas, línguas e costumes; o direito à educação; o direito ao desenvolvimento; o direito à participação política; os direitos coletivos e, por fim, as responsabilidades dos Estados e das Nações Unidas.

No Brasil, a situação dos povos indígenas, desde o início da colonização, foi sempre precária, pois os índios não foram perfilhados como pessoas, dotados de culturas diferentes e que mereciam o reconhecimento e o respeito; ao contrário, foram escravizados e dizimados, utilizados como mão-de-obra para a extração de recursos naturais, ou, então, cristianizados e aculturados, pois eram considerados como seres portadores de culturas inferiores – ou, até mesmo, desprovidos de culturas -, e que deveriam, então, abandonar suas práticas originárias para a adoção da cultura europeia.

A dizimação da população indígena por patologias, por genocídios e por maus tratos manteve-se constante, e, ainda que a República tenha sido instaurada no Brasil, a situação dos indígenas pouco se alterou, com parcas legislações que propendiam a proteger seus direitos. Antagonicamente, foi mantida a percepção inferiorizadora, que buscava a aculturação e a

assimilação dos índios à comunhão nacional, estes que foram objetivos contidos no Estatuto do Índio, de 1973, documento infraconstitucional, dedicado, especificamente, ao trato dos povos indígenas, que refletia o intento de todas as Constituições Federais, estas que, ainda que tenham previsto direitos de proteção aos territórios, conservavam a tradicional visão integracionista.

Somente a partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal, calcada nos ideários humanistas, multiculturais e democráticos, é que se transmudou a posição desigual e excludente do trato aos povos indígenas para uma posição positiva, afirmativa de seus direitos, reconhecedora de suas diferenças, que devem ser exercidas com fulcro na dignidade e no direito à igualdade. Foi dedicado um capítulo específico para asseverar os direitos peculiares desses povos, representados pelos artigos 232 e 232, que atestam, dentre outros, o direito e a proteção ao uso e fruição dos territórios, dos recursos naturais, a tutela em face de atos de terceiros e a possibilidade de os indígenas ingressarem em juízo para a defesa de seus direitos.

Essa transmutação jurídica inaugurou o paradigma da interação, onde os povos indígenas, antes inferiorizados, agora, devem ter as suas diferenças respeitadas e reconhecidas, substituindo-se o integracionismo pela valoração da diversidade cultural. A guarida estatal, nesse ínterim, serve para que os povos indígenas sejam protegidos, não sob a óptica civilista, de incapacidade, mas no sentido de evitarem-se, ao máximo, prejuízos que essas sociedades possam sofrer, o que se denomina de tutela-proteção. Ademais, a autonomia e a autodeterminação estão contidas no texto constitucional, pois asseguram que o progresso e o desenvolvimento dos povos indígenas devem ser garantidos, possibilitando o gerenciamento de seus interesses e a participação no cenário político.

No plano internacional, o Brasil participou do Grupo de Trabalho responsável pela elaboração da DNUDPI; contudo, no final dos anos 70 e início dos anos 80, a legislação ainda entendia que os indígenas deveriam ser aculturados e assimilados, tendo o Estado apresentado muita resistência para o reconhecimento, dentre outros, de utilizar o nominativo povos e de reconhecer o direito à autodeterminação, pois, baseado na definição soberana do termo e do direito, entendia que tal reconhecimento poderia, de alguma forma, implicar na soberania do país. Porém, após a redemocratização, a promulgação da Constituição de 1988 e com a guarida dos direitos humanos e do multiculturalismo, o Brasil reconheceu a importância da Declaração e votou pela sua aprovação.

Em relação à Bolívia, diferentemente, do Brasil, a maioria da população, historicamente, é indígena, ou descendente de indígenas, mas, da mesma forma, foram

preteridos pelos conquistadores espanhóis, que passaram a escravizá-los e a promover a extração de minerais, processo que, paulatinamente, foi se desenvolvendo e relegando os povos indígenas à pobreza extrema, possibilitando o empoderamento de um pequeno grupo, o que permitiu a fragmentação da sociedade nacional, mimetismos sociais e a descomedida marginalização dos indígenas.

Na primeira metade do século XX, a Bolívia enfrentou inúmeras e graves crises econômicas, penalizando, rigorosamente, os povos indígenas e campesinos, que, então, resolveram se organizar e reivindicar a proteção de seus direitos e a sua inserção nas searas