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A segunda parte deste trabalho consiste na apresentação do estudo empírico que desenvolvemos de modo a explorar os significados associados às trajectórias de

2. Recolha de dados

2.1. Participantes

À escolha das participantes presidiram critérios de significatividade, configurando uma amostra de conveniência, base a partir da qual se visam aprofundar dimensões qualitativas sobre o fenómeno social e as suas implicações (Burgess, 1984).

Como já referido, o objectivo do estudo é aceder a histórias de vida ricas de conteúdo que permitam mapear as possibilidades discursivas das mulheres toxicodependentes Ou seja, as "mulheres toxicodependentes" foram selecionadas em função da plausibilidade em representar o fenómeno central que se pretende estudar, o que as configura como "peritos experienciais". A "amostra" foi sendo constituída de forma intencional até ao ponto de "saturação teórica": aquando da oitava entrevista percebemos que as regularidades dos vários discursos se tornavam cada vez mais evidentes. Assim, considerando que os "casos" não seriam significativamente diferentes, em relação aos objectivos específicos deste estudo, concluímos a recolha dos dados à décima entrevista151.

Todas as mulheres entrevistadas152 frequentam um Centro de Atendimento a

Toxicodependentes (CAT) do Grande Porto, onde seguiam tratamento no momento em que foram entrevistadas (primeiro semestre de 2002).153 Foram contactadas pelas

151 Cf. Capítulo IV: "Apresentação e Interpretação dos Dados" onde se procede à caracterização

das participantes, já que, por razões metodológicas, apenas são conhecidas as suas características na sequência da análise de conteúdo das entrevistas.

152 Apenas uma mulher foi contactada através do marido, utente do CAT, não sendo, nem tendo

sido, ela própria utente do CAT; embora tivesse, no passado, realizado tratamento institucional recorrera a outra instituição.

153 A selecção de mulheres participantes com contacto institucional constituiu, também, uma opção

pragmática, já que tínhamos desde logo garantido o acesso à recolha de dados na instituição onde exercemos a nossa prática profissional (CAT); estamos cientes que a saída para o contexto da experiência do quotidiano das drogas (ainda que as mulheres entrevistadas tivessem igualmente em contacto com alguma instituição de tratamento) teria permitido aprofundar as significações dos percursos das mulheres toxicodependentes, já que a rememoração das vivências seria favorecida pela integração dos planos cognitivo e afectivo. Consideramos, ainda, que seria interessante procurar contextos diversificados que, eventualmente, enquadrassem outras singularidades nas

respectivas terapeutas para conversarem, nas instalações do CAT, com uma colega que estava a realizar um estudo sobre a experiência das mulheres com drogas. O que significa que as terapeutas funcionaram como "informantes privilegiados"154,

seleccionando as mulheres de acordo com os critérios estabelecidos e pondo-nos em contacto com elas.

Os critérios de selecção155 das entrevistadas foram: a heroína constituir uma droga de

"abuso" na trajectória da mulher, ainda que outras possam ser, ou ter sido, utilizadas; existir uma fase evidente de "abuso" de drogas na trajectória de consumos vivida pela mulher, não interessando entrevistar mulheres numa fase inicial.

2,2. Procediu

A adesão e a colaboração das mulheres toxicodependentes no processo da entrevista foi evidente156. Por um lado, esta disponibilidade foi, em grande parte, garantida pelas

terapeutas, dada a relação de confiança estabelecida. Por outro lado, essa adesão deve- se ao sucesso do encaminhamento directo para a entrevista a partir da consulta com a terapeuta.

histórias das suas "actrizes"; por exemplo, seria diferente ouvir mulheres: em fase activa de consumo ou mulheres que estão em fase de tratamento; mulheres que consomem em casa, nos bastidores da vida dos seus homens, sem cidadania real no "mundo das drogas", ou mulheres consumidoras que habitam o contexto de rua; mulheres que actuam no negócio do tráfico ou num território de prostituição. No entanto, as limitações temporais inerentes a este tipo de investigação não nos permitiram o alargamento dos objectivos de estudo.

154 Conceito extrapolado do campo da etnografia, contexto onde assume o sentido em pleno, que

se refere a pessoas cujo o papel é facilitar o acesso aos sujeitos a conhecer; o informante privilegiado pode ser ele próprio também entrevistado, apenas o mediador do contacto para entrevista, ou ainda facilitador, através da sua presença natural no habitat social, da observação directa dos sujeitos pelo investigador que o acompanha.

155 Dadas as características do estudo, optou-se por excluir mulheres com incapacidade grave -

situacional ou estrutural - em se exprimirem ou reflectirem sobre a sua experiência.

156 Apenas uma das mulheres com quem se efectuara contacto não compareceu (após terceira

marcação respeitámos a sua não comparência, entendendo-a como forma de comunicar a não disponibilidade).

Por nossa parte, adoptámos algumas estratégias no sentido de valorizar a contribuição das mulheres e garantir o respeito por cada uma como pessoa, já que nos estavam a disponibilizar tempo e privacidade seus.

Assim, houve o cuidado por parte da entrevistadora (simultaneamente investigadora e terapeuta no mesmo CAT) de usar indicadores distintivos do contexto de conversação no sentido de tornar expresso que a entrevista não se situava nos contextos clínico e institucional habituais, apesar do espaço da consulta e da entrevista ser o mesmo157.

Igualmente, procurando introduzir um registo de maior horizontalidade na comunicação, não utilizamos a secretária que, nas consultas do CAT, se interpõe sempre entre terapeuta e cliente, tendo a conversa com as mulheres decorrido em sofás lado a lado158.

Por outro lado, a entrevistadora reforçou também a confiança e o sentido de sigilo reafirmando: que se tratava duma conversa que pretendia "perceber a sua experiência com as drogas, como aliás a de outras mulheres com quem já conversei"; que se tratava de um estudo da nossa responsabilidade em ligação com uma Faculdade de Psicologia, independente do CAT e da sua terapeuta; que com a sua colaboração poderia ajudar outras mulheres, pois pretendíamos «comprender melhor a história das mulheres nas drogas para poder tratar melhor». Finalmente, considerámos importante fazer saber que, "quando o trabalho estiver concluído, podem ter acesso a ele ou conversar comigo sobre os resultados".

157 A distanciação do papel de terapeuta da instituição onde decorria a entrevista e a ênfase na

identificação como investigadora duma faculdade constituíram cuidados processuais relacionados com a premissa, já referida, de que o entrevistador contribui incontornavelmente para a construção da realidade em função da representação de que é alvo. Tratando-se de mulheres com envolvimento actual com a instituição de tratamento, seria de esperar que as entrevistas traduzissem, de algum modo, a "experiência" da instituição de saúde, tanto mais que nós representamos o "outro lado", o poder institucional, a norma e o controlo social; o nosso propósito, ao adoptar estes cuidados no procedimento, visava tão só minimizar o constrangimento de poder/saber institucional que a sobreposição de papéis e contextos favorecia.

No decorrer da entrevista foi oferecido um café, criando-se um ambiente mais informal favorecedor da partilha da intimidade da sua vida.

O limite da partilha da história de vida foi determinado por cada entrevistada, em termos de tempo e, sobretudo, de profundidade, ainda que a entrevistadora tenha utilizado questões abertas, de acordo com o guião, no sentido de facilitar o relato e a abertura de áreas temáticas na conversa.

Foi com base nas duas primeiras entrevistas realizadas que aferimos a adequação do "guião da entrevista" como instrumento adequado para obter o tipo de informação que pretendíamos sobre o nosso objecto de estudo. Neste momento do processo de recolha dos dados afinámos, também, todos os meios envolvidos no processo de entrevista, para além do guião, a logística e o sistema de registo.

As entrevistas realizaram-se individualmente, com uma duração entre os 30 minutos e as duas horas, e foram integralmente gravadas em sistema audio e, posteriormente, transcritas para Word.

3. Procedimentos de análise

3.1. Constituição do corpus e preparação da análise

Ao longo do processo de entrevista, e da sua transcrição, os dados obtidos foram suscitando em nós pistas de análise e interpretação159. De modo a "fazer ciência", tendo

presente a importância do corte epistemológico em relação ao senso comum (Bachelard, 1996), havia que organizar o material e analisá-lo de modo sistemático. A sistematização é preciosa para se garantir o respeito pela informação contida nos dados, pois possibilta o teste de consistência de intuições impostas à primeira impressão e também permite reconhecer o "não visível" ao nível dos dados brutos. Como diz L. Bardin

(1991, p.116): «O acontecimento, o acidente e a raridade possuem por vezes, um sentido muito forte que não deve ser abafado».

A análise de conteúdo constitui uma metodologia consistente, quer com o carácter eminentemente qualitativo do material em estudo, quer com os propósitos de conceptualização teórica da investigação160.

No sentido da preparação do corpus para a análise realizou-se, numa primeira fase, morosa mas incontornável, a transcrição integral das entrevistas do registo audio para o processamento em Word. No decorrer da transcrição das entrevistas foram feitos alguns retoques de forma a "limpá-las de ruído", eliminando do corpo do texto, por exemplo, interjeições e redundâncias do discurso oral, procurando não interferir com o seu sentido.

Em seguida, procedemos ao recorte do corpus em unidades de registo161. Finalizado este

procedimento para os dez documentos, resultante das dez entrevistas, obtivemos um conjunto de 5121 unidades de registo, correspondendo em média a 500 unidades de registo por documento.

3,2, O processo de codificação e categorização

As entrevistas foram objecto duma análise de conteúdo de tipo categorial: «...operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o género (analogia)...» (Bardin, 1991, p.117).

Optámos por utilizar o NUD*IST como software informático de apoio a todo o procedimento de análise, que se revelou fundamental quer como suporte eficaz de

160 A perspectiva de investigação vai na direcção da "criação teórica" {theory generation) por

oposição à "verificação teórica" (theory verification) (Glaser e Strauss, 1967).

161 Dada a dificuldade na consistência do mesmo critério ao longo do processo, socorremo-nos de

um juiz independente (a quem nos referimos na página de agradecimentos) para melhor aferir o recorte final das unidades de registo.

registo e organização dos dados, quer como base dinâmica na criação e recriação de categorias:

«...o importante é dispor de um instrumento que permita ventilar eficazmente as respostas sem as deformar ou interpretar e sem deixar um pesado resíduo por explorar...» (Poirier, Clapier- Valladon, Raybaut,1995, p.113)

Realizou-se o reagrupamento das unidades de registo por categorias, utilizando o procedimento de code e retrieve, para a totalidade das 5121 unidades de registo, referente aos dez documentos.

O processo analítico subjacente à categorização levou-nos à produção de mais de duas centenas de categorias e subcategorias. Este processo foi essencialmente orientado pelo critério de saturação teórica das categorias emergentes, em que estas vão sendo definidas à medida que prossegue a análise documental, dando-se o "ponto de saturação" quando os dados (unidades de registo) não fazem emergir novas categorias e a sua codificação recai sobre as categorias pré-existentes.

Por outro lado, adoptámos a modalidade open categorizing162, ou seja, a cada unidade de

análise foram atribuídas todas as categorias possíveis conquanto se adequassem. Este modo de categorização potencia a ligação do processo de análise e de interpretação aos dados, tal como é prescrito teoricamente: «Investigators sistematically categorize data and limit theorizing until patterns in the data emerge from the categorizing operation» (Rennie, Philips, Quartaro, 1988, 141).

162 Esta opção (procedimento adoptado pela grounded analysis em contraponto com a análise de

conteúdo clássica) decorreu, essencialmente, da utilização do NUD*IST como instrumento de apoio à análise de conteúdo que a viabiliza; sendo as unidades de registo codificadas simultaneamente em diferentes categorias, a mútua exclusividade da categorização atém-se ao conteúdo e não à unidade de registo; a mútua exclusividade estrita, no sentido de não existir partilha de unidades de registo entre categorias ou subcategorias, será devidamente indicada e justificada no Capítulo IV:."Apresentação e Interpretação dos Dados", aquando da descrição do sistema de categorias criado.

Nesta fase do processo há uma maior aproximação aos propósitos de sistematização e de generalização duma metodologia clássica e de instrumentação quantitativa, pelo modo como é maximizada a aferição dos relatos individuais uns aos outros, ainda que numa perspectiva qualitativa (Rennie, Philips e Quartaro, 1988).

A finalização do processo de categorização aconteceu com o trabalho posterior de fusão e cisão de categorias e subcategorias, sendo o sistema de categorias final constituído por 14 categorias e 30 subcategorias.

Considerámos residuais todas as categorias com menos de 75 unidades, optando por não as considerar no sistema de classificação conceptualizado, sob o risco de a análise se tornar muito dispersa e a interpretação inconsistente.

Uma referência última ao NUD*IST que, assente em dois sistemas, Document Explorer e

Node Explorer, procede à organização do corpus simultaneamente em documentos e em

categorias.

O procedimento de code and retrieve, base do programa, supõe o confronto sistemático das unidades de registo umas com as outras antes da sua inclusão numa ou noutra categoria/subcategoria. Esta constante comparação do conteúdo das categorias e subcategorias do sistema de classificação dos vários documentos163, visa alcançar o que

há de comum aos diferentes relatos individuais.

A possibilidade de se colocar em relação as categorias e/ou documentos, através de "comandos" de pesquisa específicos, potencia a emergência de novas categorias de carácter conceptual mais complexo.

O NUD*IST constituiu, assim, uma opção metodológica fundamental por facilitar não só o processo de análise de conteúdo, em sentido restrito, como também o desenvolvimento de pistas conceptuais de interpretação dos dados.

3,3, Análise das entrewistas e classificação em Posições de Significação