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A segunda parte deste trabalho consiste na apresentação do estudo empírico que desenvolvemos de modo a explorar os significados associados às trajectórias de

1. Posicionamento metodológico

1.2. Sobre a abordagem fenomenológica

Face ao objecto de estudo em causa e aos objectivos de investigação definidos havia, que utilizar uma abordagem que facilitasse o acesso à subjectividade do sujeito, às suas experiências e respectivas significações.

Trata-se, efectivamente, de um estudo empírico de carácter fenomenológico sobre mulheres toxicodependentes que utiliza uma metodologia qualitativa de tipo biográfico, baseada em "histórias de vida" de mulheres.

Com base na opção biográfica procurámos: enfatizar uma perspectiva proximal142 - no

sentido em que se dá atenção à forma como o indivíduo singular percebe e constrói o seu mundo; desenvolver uma abordagem em profundidade de forma a captar a vivência e a interioridade existencial; e, ainda, potenciar a "organização diacrónica" dos significados da trajectória de vida das mulheres toxicodependentes (Smith, 1998).

Por outro lado, as "histórias de vida" têm o valor de permitir observar, através das práticas individuais, não só as idiossincrasias pessoais mas também as práticas sociais, «aquilo que é apreendido não é a subjectividade e sim, através da subjectividade, certos aspectos da realidade social» (Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut, 1995, p.93).

Reportámo-nos às abordagens narrativas143 para reiterar a ideia de que a narrativa

constitui-se de acordo com as experiências sociais da protagonista em interacção com outrem, portanto, em função do contexto social em que é narrada e no decurso do próprio relato. Cada história é uma verdade parcial e historicamente situada, porque cada história é como «um exercício de auto-interpretação através do qual as pessoas dão sentido à sua experiência» (Baumeister e Newman,1994, p.688). A "verdade" da história da

142 Ressaltamos o valor da comprensão proximal do sujeito, apesar de não se tratar de um estudo

naturalista, na medida em que as participantes estão em contacto com um "dispositivo de normalização".

143 Cf. Capítulo III. "Contribuição da Abordagens Narrativas" em que a "narrativa" é apresentada

protagonista será a que para si é significativa, em função das posições narrativas em que se situa, e traduzirá o modo como ela própria capta a realidade social, as suas expectativas e os seus constrangimentos sociais. É apenas um acesso possível à "verdade".

Neste sentido e de acordo com a perspectiva de investigação construtivista, reconhecemos que nenhum investigador poderá conhecer melhor a realidade vivenciada pelas mulheres toxicodependentes do que as próprias. Interessa ao estudo o relato, por elas, de histórias "autênticas"144 de modo a que a conceptualização teórica emergente

reflicta directamente a realidade experienciada.

A opção biográfica permite, finalmente, cumprir o propósito "político" de dar voz a

pessoas comuns que, como ressalta Oriol Romani (1985), nunca tiveram a oportunidade

efectiva de relatar as suas experiências, pelo controlo social a que são sujeitas ou pela posição social que (não) ocupam.

Em síntese, a opção por uma perspectiva de "investigação íntima do fenómeno", dada a excelência com que permite aceder às significações singulares destas mulheres, assume todo o sentido, apesar do ónus da generalização limitada dos dados (Rennie, Philips e Quartaro,1988).

144 Autenticidade e verosimilhança são critérios de avaliação da investigação qualitativa do

paradigma pós-positivista que contrastam com a objectividade, validade e fidelidade, fundamentais no paradigma positivista (Denzin e Lincoln, 1998)

1,3. A entrevista como método cie recolha de "histórias de vida"

Optámos por utilizar a entrevista como meio de recolher as "histórias de vida" destas mulheres, por um lado, porque se adequa à perspectiva idiográfica de conhecimento de trajectos singulares, por outro lado, porque temos familiaridade com a lógica conversacional145, uma vez que o nosso quotidiano profissional é o contexto clínico.

Adoptámos, portanto, uma posição facilitadora da "entrevista como conversa" (Burgess, 1984), dando primazia ao relato e à sabedoria das protagonistas. Pretendíamos fazer emergir nos relatos a singularidade das experiências de vida das mulheres toxicodependentes e garantir, assim, que este conhecimento prevalecesse sobre as teorias do investigador. Reconhecemos, todavia, a co-construção da narrativa entre investigador e participante e a impossibilidade de uma investigação neutra. As narrativas relatadas assumem contornos diferentes consoante a interacção com a investigadora, também em função do que esta represente.

Optámos por uma "entrevista guiada" de modo a garantir uma recolha de dados relevante e produtiva, ou seja, munimo-nos de um "guião" em que "esboçamos" os principais temas-chave a considerar e hipotéticas perguntas facilitadoras da conversa (Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut, 1995).

Tratou-se, portanto, duma entrevista semi-estruturada em que a consulta, de memória, do guião garantia alguma monitorização dos temas focados. Estes foram lançados quando não surgiram espontaneamente no discurso das entrevistadas.

145 Parece-nos legítimo fazer a aproximação das perspectivas de entrevista na investigação e na

intervenção sistémica; confronte-se, no quadro interpretativo pós-moderno, a concepção de Lynn Hoffman (1990) sobre a entrevista terapêutica como "conversação etnográfica", fazendo ela própria uma aproximação dos planos terapêutico e de investigação através da metáfora antropológica; confronte-se, ainda, no âmbito da reflexão teórica sobre a "terapia como construção social", o relevo que assume a perspectiva do "not knowing approach" do terapeuta face ao sistema (Anderson e Goolishian, 1996), o que vai de encontro à importância da posição de "curiosidade" (Cecchin, 1987) no questionamento de uma história que o terapeuta desconhece e que o cliente pode dar, ou não, a conhecer.

No guião da entrevista146, previamente elaborado, sistematizaram-se temas alargados:

por um lado, característicos de uma biografia na generalidade (por exemplo, trabalho, relações afectivas, família...); por outro lado, concordante com áreas, temas e pistas sugeridas por estudos prévios, relacionados com mulheres e drogas (Rosenbaum,1981147; Hser et a/.,1987a; 1987b; Anglin et ai., 1987a; 1987b148), com

carreiras de "abuso" de drogas, em geral (Romani, 1985149), e com perspectivas

feministas (Haddock, Zimmerman e Macphee, 2000150).

A utilização do guião orientou-nos, pois, para a recolha de "fatias de vida" das mulheres toxicodependentes, numa espécie de "autobiografia indirecta", mais do que para a elaboração duma "história de vida" em pleno (Poirier, Clapier-Valladon e Raybaut,1995).

A focalização, à partida, das narrativas em determinadas áreas temáticas, que conduz inevitavelmente a uma abordagem parcial da realidade do fenómeno, não pressupõe, no entanto, a existência de hipóteses prévias a verificar.

Trata-se, essencialmente, dum estudo de natureza indutiva, interpretativa e construcionista em que se buscam significados centrais na história de mulheres consumidoras, "grounded" nas experiências por estas narradas.

Cf. Anexo I: "Grelha de Entrevista"

147 Consideramos, em particular, este estudo com mulheres toxicodependentes ( a que já nos

referimos de forma aprofundada no Capítulo II: "Mulheres e Uso de Drogas") que organiza o conhecimento da carreira da mulher nas drogas em grandes temas: "getting in", "the heroin world", "work", "love and parental relationship", "treatment".

148 Nestes quatro estudos são analisadas as diferenças ligadas ao género na carreira de

toxicopendência em função de quatro fases (que consideramos na elaboração do guião da entrevista): "initiation of use", "addiction", "becoming addicted", "treatment".

149 O autor centra o estudo no conhecimento de todo o trajecto de consumo e abuso até à

recuperação, recorrendo a histórias de vida que são realizadas com base num guião exaustivo que partilha connosco (p.20).

As áreas sugeridas são apresentadas numa espécie de guião de trabalho para ensino, investigação e terapia e estão baseadas em temas feministas considerados fundamentais: tomada de decisão, trabalho ou actividade doméstica, finanças, sexo.