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4. ANÁLISE DOS DADOS DE COMPREENSÃO DAS CRÔNICAS

4.3. REFLEXÃO A PARTIR DOS OBJETIVOS DA PESQUISA

Por fim, considerando o conjunto de produções com base na leitura das crônicas literárias, é possível perceber que trabalhar a compreensão é uma tarefa bastante ampla e complexa. Segundo Marcuschi (2008, p.229-230): “Compreender bem um texto não é uma atividade natural nem uma herança genética; nem uma ação individual isolada do meio e da sociedade em que se vive. Compreender exige habilidade, interação e trabalho.” Existe, portanto, um conjunto de competências e habilidades a serem ampliadas e desenvolvidas.

Como os exercícios físicos que nos ajudam a manter uma boa forma, a oralidade, a leitura e a produção escrita são capacidades que devem ser estimuladas e promovidas no cotidiano escolar a fim de que nossos estudantes possam de fato ter acesso ao conhecimento e ter condições de exercer a cidadania. Para tanto, se faz necessário entender o sujeito a partir dos diversos ângulos que o constituem. Conforme Freire (2003, p.15), adverte:

Não é possível entender-me apenas como classe, ou como raça, ou como sexo, mas, por outro lado, minha posição de classe, a cor da minha pele e o sexo com que cheguei ao mundo não podem ser esquecidos na análise do que faço, do que penso, do que digo.

Compreender um texto passa então a ser uma tarefa que demanda não apenas compreender o escrito, mas compreender os sujeitos que dele se utilizam e nele estão representados. Representação que pode ou não corresponder com as suas expectativas, com a sua realidade e com os seus desejos.

A concepção de leitura, tal qual vem sendo aqui discutido, pode tanto ser uma prática para liberdade quanto para dominação. E tais práticas se manifestam quer na escolha dos escritos, quer na maneira como o professor pretende trabalhar tais escritos, quer na maneira como os próprios valores sociais encontram-se internalizados pelos nossos estudantes. Nesse

sentido, Dell’Isola (2001, p.227) relata como estudantes de classes sociais distintas geram inferências e reproduzem discursos dentro da ideologia da classe dominante:

Percebe-se que os indivíduos representativos da classe A geram inferências dentro da ideologia da classe dominante, produzindo uma leitura internamente coerente. [...]

Já os indivíduos representativos da classe B demonstram produção de leitura oscilante. Ora se identificam como classe dominada, ora apresentam as mesmas inferências da classe dominante.

Analisando-se tais resultados, a autora explica: “Produzem inferências próximas de sua realidade e inferências que são fruto de uma ideologia imposta pela escola e pela mídia, que segue os padrões da classe privilegiada.” (DELL’ISOLA, 2001, p.227)

A escola, nos moldes em que a encontramos hoje e enquanto instituição responsável por promover a formação e problematização dos conhecimentos, tem sido um aparato para reprodução e manutenção das desigualdades. Ou como Foucault (2008, p.44-45) indaga:

O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?

Sendo assim, pensar a formação do sujeito-leitor e as questões que envolvem a compreensão leitora perpassam por uma reflexão da condição da própria instituição escolar, do currículo utilizado por esta, implica avaliar a formação para docência, bem como as escolhas teóricas e metodológicas que nós, enquanto docentes, realizamos. Como Barthes (2013, p.45) nos faz lembrar: “[...] o que pode ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto.”

Parece-me então razoável afirmar, que os problemas de desempenho dos estudantes da escola pública nos exames internos e externos à escola, devem-se muito mais a imposição de um modelo educacional incompatível, indiferente e restritivo a sua realidade que uma dita “incapacidade” do aluno em aprender a expressar-se, a ler e a escrever.

Conforme Dell’Isola (2001, p.229) indica: “Espera-se que os alunos de classe média- baixa e baixa aprendam a maneira de pensar, a interpretação desejada pelo modelo que a escola fixou como o correto. O que foge ao padrão é incorreto, é condenado.” Esperar êxito sem considerar as condições socioculturais em que os indivíduos estão inseridos revelaria certa “ingenuidade” de nossa parte. É como se desejássemos fazer um bolo sem utilizar os ingredientes necessários.

Logo, antes de listar os problemas de leitura, expressão e escrita dos estudantes, cabe avaliar quais são as condições e características de ensino que estão sendo oferecidas para se obter o êxito na aprendizagem. Esta confundida e reduzida, muitas vezes, a notas que avaliam apenas o desempenho.

Quando fora proposto, nesse trabalho, realizar uma análise dos dados obtidos a partir dos objetivos propostos na pesquisa, certamente, não poderia fazê-los sem considerar os aspectos acima sinalizados, bem como as questões que envolvem a relação tempo-espaço de aplicação do projeto, as condições materiais da escola e dos estudantes, além da dinâmica de atividades pedagógicas existentes na unidade de ensino.

Trabalho em uma escola, na qual, no ano em que o projeto foi aplicado, não podíamos contar com a figura de uma bibliotecária a fim de que o espaço da biblioteca fosse utilizado fora do espaço de aula pelos estudantes; a sala de informática possuía equipamentos carentes de manutenção e outros sem funcionar; uma sala de aula sem sequer ter uma ventilação adequada. Ainda assim, os poucos estudantes que tinham smartphones, computadores com acesso à internet, máquinas fotográficas cooperaram das mais diversas formas para que algumas das atividades propostas pudessem ser realizadas.

Ademais, tivemos que lidar com um dia-a-dia em que a aplicação do projeto de leitura era interrompida para atender outras demandas existentes na própria escola, por exemplo: os feriados prolongados, a “concorrência” entre atividades (feira de ciências, projetos estruturantes, semana de provas, etc.), três rápidos encontros na semana, isto é, uma aula de 50 minutos por dia.

Mesmo assim, com a extensão de prazos ou a reformulação e adequação das atividades propostas, conseguimos realizar quase que em sua totalidade, tudo aquilo que nos propusemos a fazer. E digo quase tudo, porque o livro de crônicas da turma não conseguiu assumir uma versão materializada, isto é, criou-se um projeto de capa, alguns textos foram elaborados para compô-lo, mas o mesmo não foi organizado, editado e exposto como gostaria de fazê-lo.

Para além dessas questões, no entanto, para mim, e creio que para os estudantes, a experiência foi marcada mais por êxitos e aprendizagens que o sentimento de impotência. No que se refere à potencialização da consciência crítica e criativa, evidenciou-se por meio dos trabalhos elaborados pela turma um ganho significativo.

Os cartazes, as produções textuais e os vídeos produzidos pelos estudantes ajudam a visualizar de que modo são geradas as interpretações inferenciais. Um dos grupos, por exemplo, ao produzir o vídeo sobre a crônica Pechada de Luís Fernando Veríssimo realizou

uma releitura do texto bastante interessante. A partir de uma percepção que se encontra fora do texto, mas assegurada por ele, trataram da questão do bullying na escola.

Conforme Bakhtin (1997, p.334) explica:

O ato humano é um texto potencial e não pode ser compreendido (na qualidade de ato humano distinto da ação física) fora do contexto dialógico de seu tempo (em que figura como réplica, posição de sentido, sistema de motivação).

O vídeo construído traduz efetivamente essa relação da compreensão em diálogo com o tempo. Talvez, ao escrever o texto, o autor não tivesse previsto que a colocação de apelido, uma provocação entre colegas de classe, se transformasse num alerta sobre o bullying, no entanto, seu texto teve sua significação ampliada para um aspecto muito discutido hoje nas escolas.

Uma abordagem comum, inclusive em sala de aula, é de tomar essa crônica para tratar das questões relacionadas às variações linguísticas ou ampliação do léxico. Nesse caso, percebe-se que os estudantes propuseram outra abordagem para o texto, ampliando as possibilidades de trabalho com o ensino de língua portuguesa.

No que se refere ao trabalho de estimular o gosto pela leitura de crônicas literárias, considerei válida as contribuições que foram dadas por meio de comentários ou sugestões feitas pelos estudantes via e-mail do grupo da sala criado por eles. Foi possível compartilhar outros textos não previstos na sequência didática, bem como receber as contribuições deles. Duas das estudantes, por exemplo, escreveram, em momentos diferentes:

Comentário de Yasmim Lima acerca da crônica Pechada em 02/09/2017 Pechada

Essa crônica é interessante, ela mostra de modo divertido algo que é bastante abundante em todo mundo, a questão das gírias, sotaques etc. Além de ainda integrar o bullying no meio, que algo bem ruim e infelizmente existem em todo mundo, principalmente em escolas, como mostra na crônica. E também ficar consciente de um termo tão diferente me faz querer saber mais e também mostra a importância de sempre procurar algo novo para saber.

Ps: Representa a minha opinião

Dica de leitura de Yasmim Lima em 23/07/2017

Oi, bom, o texto deixa claro que o conceito de cronica foi mudando em relação as gerações que vão se passando, hoje pode ser considerado uma pagina esportiva de um jornal, uma noticia inovadora e antigamente um relato comum, um conto (link de uma cronica antiga que achei interessante https://www.josesaramago.org/carta-josefa-minha-avo-1978/ ).

Mas apesar ser um gênero textual, a cronica tem diversos significados espalhados, a quem acredite que são contos, que são historias simples, que são noticias, sinceramente para mim cronica é uma coisa que está me confundindo, mas tudo bem.

Bom espero que leia a cronica que deixei acima, apesar de estar em português de Portugal e ser relativamente pequena, mostra grande contraste com o conceito de cronica que alguns acreditam.

- Yasmin

Dica de leitura de Shirley Dorea em 31/07/2017

Boa tarde 😊🌸. Professora eu achei legal a senhora ter mandado esse link sei que ficar explicando as mesmas coisas em todas as aulas e chato. Mas achei muito mais interessante o vídeo que Larissa mandou sobre a escrita super legal sei que é longo, e confesso que não assisti todo mas seria interessante se basear nele.

Além dessas contribuições, a turma teve a oportunidade de ir, em um dos momentos de aula, à biblioteca sob a minha supervisão. Três estudantes escolheram livros de seu interesse e compartilharam entre si a opinião após a leitura. Observei que o compartilhar livros é algo comum entre eles. Os mesmos são adquiridos por alguns deles como presente de aniversário dado por alguém próximo e compartilhado entre os colegas. Dessa forma, creio que a proposta foi atendida satisfatoriamente nesse quesito.

Quanto à promoção das interpretações inferenciais por meio da aplicação do projeto, creio que as mesmas se manifestaram ao longo da realização das atividades, sendo que, como já foi dito antes, alguns demoram um pouco mais para realizá-las dado aos mais diversos contextos (sociocultural, instrumental, pessoal).

No que diz respeito à criatividade e o posicionamento crítico, por meio dos dados obtidos, me parece que os mesmos conseguem manifestar suas opiniões, porém, sentem ainda dificuldades relacionadas à organização das ideias e carecem de melhorar a capacidade de associação daquilo que lê com os fatos do cotidiano.

Ao ser aplicada a ficha autoavaliativa, no item em que se perguntava se eles se sentiam capazes de relacionar o que leem com os fatos do cotidiano, obtive as seguintes respostas:

Participantes Sim Não Evoluindo

Meninos 5 1 5

Meninas 5 1 4

Considerando-se que vinte e um estudantes responderam a essa atividade, em termos quantitativos, apenas 47,61% deles, revelam se sentir aptos a estabelecer uma relação entre o que leem às situações do cotidiano. Logo, há muito ainda a ser realizado.

Quando a pergunta se refere à compreensão leitora, verificou-se o seguinte:

Participantes Sim Não Evoluindo

Meninos 7 ---- 4

Meninas 5 ---- 5

Embora seja perceptível pelos indicadores numéricos que para os estudantes, eles compreendem aquilo que leem, coube a mim, enquanto docente, avaliar que concepção de compreensão leitora eles julgam ter. E na própria ficha autoavaliativa obtive a resposta. Um estudante sinalizou:

Uma boa parte deles entende a compreensão leitora enquanto decodificação do texto. Apenas uma estudante sinalizou que:

Essa resposta revela, por um lado, maturidade e de outro, que há um caminho em busca do conhecimento a ser alcançado. Mesmo os demais não sinalizando tal percepção, por meio de conversas, verificou-se que existe essa consciência por parte da turma.

Sobre a produção escrita dos alunos, creio que para muitos foi um desafio escrever um texto, principalmente, considerando que a maior parte das atividades na escola é de mera copiação. Entretanto, outro entrave que se colocou para turma foi o da reescrita da primeira versão dos seus textos e buscando superar tal situação, sem mencionar o nome dos autores, foi realizada uma atividade em sala de reescrita a partir de trechos que apresentavam maior problema. Um método bastante conhecido até mesmo pelo menino sem imaginação:

Escrevi: “De repente escureceu e começou a chover”. Minha irmã, que mexeu em muitos trechos do livro, achou a frase muito pobre e escreveu: “De repente ficou tudo cinza. Foi como se Deus tivesse mexido na Sua televisão e tirado a cor da Natureza. Depois ele virou o botão de contraste e escureceu subitamente a tarde. Não satisfeito, foi aumentando o volume dos trovões. Logo começou a cair aquele chuvisco que aparece nos dias mal sintonizados.” (NOVAES, 1995, p.23)

E assim como a irmã de Tavinho, foram surgindo contribuições marcadas por uma criticidade sobre o texto escrito pelos colegas. Foi possível, na verdade, trabalhar pelo menos três aspectos: autorregulação sobre o texto escrito, a reescrita criativa e a criticidade.

Por autorregulação, entenda-se avaliar o que foi escrito a fim de perceber as mudanças que seriam necessárias; por reescrita criativa, refiro-me as ideias propostas pelos estudantes a fim de garantir maior coerência para as histórias e por criticidade, faço alusão aos juízos de valor que foram tecidos a partir da leitura dos textos produzidos.

Como os estudantes não estão acostumados a produzir textos desvinculados das atividades de copiação, em alguns momentos foram advertidos sobre o plágio. Porém, muito do repertório experiencial deles enquanto leitores e expectadores de seres e filmes de tevê emergiram na produção. Como Bakhtin (1997, p. 370) esclarece: “O encontro dialógico de duas culturas não lhes acarreta a fusão, a confusão; cada uma delas conserva sua própria unidade e sua totalidade aberta, mas se enriquecem mutuamente.” Os textos produzidos ainda que não sejam definidos como crônicas, apresentam a riqueza do repertório experiencial dos estudantes.

Um deles, particularmente, chamou a minha atenção porque foi como se tivéssemos lendo uma história dentro de outra história. Em Meu ideal seria escrever de Rubem Braga, crônica trabalhada no projeto, tem-se:

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse  "ai meu Deus, que história mais engraçada!"

Na sala de aula, um dos estudantes, que não pudera participar do projeto em sua totalidade, escreveu um texto que seria, possivelmente, classificado numa revista ou jornal como espaço para o leitor expor a sua opinião ou experiência sobre um dado tema. Eis o seu texto:

A composição narrativa pode até não atender aos aspectos que tradicionalmente caracterizam a crônica, mas, como proferiu Bakhtin (1997, p.384-385) se “A palavra do outro impõe ao homem a tarefa de compreender esta palavra [...]”. É fato que “[...] cada ser humano do pequeno mundo constituído de suas palavras pessoais (percebidas como pessoais), representa o fato primário da consciência humana[...]”. (idem) Educar-se perpassa por essa reflexão entre o que o outro diz e o que pode ser dito ou se é permito dizer.

E não apenas isso, as palavras que se repartem em palavras pessoais e palavras do outro, segundo o teórico, encontram fronteiras em que se trava o árduo combate dialógico e ideológico. Dito de outra maneira, “Esta substituição do homem pelo homem, esta abstração do eu e do tu, é possível[...]”, mas “na vivência viva da vida só há: eu, tu, ele.” (BAKHTIN, 1997, p.385)

Em suma, não foi possível ter um livro de crônicas da turma tal qual foi proposto. Entretanto, foi possível encontrar muitas histórias que revelam o universo criativo dos alunos participantes do projeto. Criatividade encontrada no título da obra a que eles se propuseram escrever:

O título foi criado após uma grande discussão acerca de tudo que foi discutido e elaborado por eles na aplicação do projeto. O mesmo que traz o anonimato como uma das marcas enfrentadas por eles, traduz criticamente também, a condição de um projeto educativo que não tem contemplado outras possibilidades de trabalho além daquelas já previstas no currículo. O “boom” e o “bang” expressam essa efervescência de ideias e saberes que necessitam ser explorados e visualizados.

Ademais, creio que o objetivo principal desse trabalho foi alcançado: potencializar a consciência crítica e criativa dos meus alunos. O posicionamento crítico que vai sendo construído a partir do próprio processo de ação-reflexão, ou como Paulo Freire (2017, p.112) explica:

O homem dialógico, que é crítico, sabe que, se o poder de fazer, de criar, de transformar, é um poder dos homens, sabe também que podem eles, em situação concreta, alienados, ter este poder prejudicado. Esta possibilidade, porém, em lugar de matar no homem dialógico a sua fé nos homens, aparece a ele, pelo contrário, como um desafio ao qual tem de responder.

Esse poder de constituir-se foi encontrado e se encontra na situação pedagógica avaliada e experenciada, uma vez que o significado do que vem a ser o processo de compreensão leitora e de ensino-aprendizagem pauta-se na concepção de que é: “[...] experimentando-nos com os alunos que nos fazemos professores.” (SOUZA, CORTI, MENDONÇA, 2012, p.107)

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