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Reflexões sobre a Corrupção e o Mal-estar na Civilização

A CORRUPÇÃO NO BRASIL: DO DESCOBRIMENTO À ATUALIDADE

2.7 Reflexões sobre a Corrupção e o Mal-estar na Civilização

Conforme esse estudo, analisaremos o fenômeno da corrupção tomando como base os elementos trazidos por Freud (1996) em sua obra “O Mal-estar na Civilização”, que se encontra pautada na infelicidade do convívio social. Observamos que a mentira faz parte do cotidiano e da condição humana, e que mentimos das mais variadas maneiras. Contudo, ao lesar e prejudicar o outro, isto pode implicar um agravo ao próprio ser humano. Para Freud, os homens não são criaturas amistosas, afáveis, que anseiam por serem amados e, no máximo se defendem quando são atacados, mas antes criaturas instintivamente agressivas. Por outro lado, a sociedade não está preparada para essa natureza agressiva e a repudia. Resultante disso, o seu próximo não é apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo ou até matá-lo.

Nesta obra, Freud (1996) apresenta uma hipótese de que a cultura causa um mal-estar, já que existe uma oposição intransponível, um conflito entre paradigmas, a redução da tensão provocada pela pressão de impulso energético interno que direciona o comportamento do indivíduo. Assim, o homem é sacrificado, pagando o preço da renúncia da satisfação pulsional. O autor ressalta o indivíduo como inimigo da civilização, já que nele existe uma tendência

antissocial, destrutiva e anticultural, travando uma luta constante entre viver isolado ou ter sua liberdade. Neste sentido, podemos repensar as relações de poder a partir do momento em que Freud afirma que civilização é tudo aquilo que diferencia o homem do animal e o que o afasta da sua natureza. Ele ainda pontua que os homens valorizam muito mais o que os outros têm do que o que realmente tem valor em suas vidas, e vivem em busca de riquezas, poder e sucesso, enquanto os que não valorizam essa busca são pouco admirados. O autor ressalta o indivíduo como inimigo da civilização, já que nele existe uma tendência destrutiva, antissocial e anticultural, travando uma luta constante entre viver isolado ou ter sua liberdade.

Podemos observar também que Freud se utilizará dos princípios da metapsicologia em relação à teoria das pulsões e do psiquismo humano para dar conta do fenômeno cultural, do mal-estar que nele se abriga e das opções éticas que se abrem para o ser humano. Ele demonstra isto partindo da negação de que havia sentimentos religiosos inatos a instigarem os homens a terem comportamentos éticos, identificando na origem destes comportamentos premissas internas oriundas das pulsões de autoconservação, que, a posteriori, configuraram-se estratagemas da pulsão de vida sobre a pulsão de morte. No texto, Freud ainda denuncia o desamparo humano, evidenciando a impossibilidade de o superarmos, mostrando que o pensar neste abandono é a melhor forma de amenizar os problemas gerados por este desamparo. A justificativa de trabalhar a problemática do mal, num olhar psicanalítico, origina do fato de o problema do mal ter também inquietado Freud, tornando-se a sua principal reflexão sobre a civilização. Assim, o autor remete à intensidade das pulsões e da necessária renúncia à sua satisfação plena na cultura; o preço que todos pagamos pela vida em sociedade e fala da agressividade humana e do modo como ela se funde ao narcisismo. Assim, ele propõe a ideia de narcisismo das pequenas diferenças que alude à forma como os elementos de uma comunidade podem se unir, ocultando ou disfarçando inconscientemente seus conflitos e projetando no outro sua agressividade. Essa relação intrínseca entre o indivíduo e a cultura é um operador necessário do pensamento freudiano para a construção das formas de pensamento sobre a subjetividade humana, dedicando uma profunda reflexão aos vínculos entre o indivíduo e a massa, e entre o indivíduo e o poder, assim como entre o narcisismo, a sexualidade e a formação da moral, da ética e dos ideais.

Freud (1996) afirma que a civilização, quanto ao desenvolvimento, é possível a partir de uma imposição delegada aos homens, afirmando ainda que a civilização tem a tarefa de dar segurança, colocando o prazer em segundo plano, reduzindo a possibilidade de felicidade. Vivemos presos a uma organização mental falsa, hipócrita, desleal, enganadora chamada de EU, que parece preencher um pouco da necessidade do indivíduo quando se fala em amor e se desenvolve; no entanto, não pode ser demonstrado, apenas exemplificado. Uma criança não tem noção do EU, apenas aprende gradualmente, reagindo com o ambiente, e o identifica como parte corpórea de si. O autor, apesar de não ser contra a ideia de Deus, diz que a religião é uma ilusão, que tem uma incumbência conservadora e que todo seu alicerce é fundamentado na defesa do homem ao estado de abandono infantil que persiste até a vida adulta, respondendo ao anseio de um pai cuidadoso e dedicado, oferecendo proteção e segurança, afirmando ainda que o homem necessita de tal controle para que possa conviver em sociedade e se não tivesse, criaria outro tipo de dogma para defender e seguir.

No livro, Freud (1996) faz uma crítica à civilização, alegando que ela é responsável por todas as regras e proibições que levam o ser humano a negarem seus desejos verdadeiros; ela é a fonte de todo sofrimento, e ele afirma que ela é uma verdadeira desgraça. Pensando em acordo com sua suposição, isso é a mais pura verdade, porque a civilização, com todas as suas regras, acaba por inibir o homem e impedi-lo de buscar o que de fato saciará seus impulsos, prazeres. É como se ela estivesse trazendo algum tipo de desconforto e insatisfação para o ser humano, tornando impossível a busca pela verdadeira felicidade, levando-os a procurar maneiras paliativas de lidarem com isso. Freud ainda nos traz um leque de questionamentos, suposições e ideias para conseguir explicar a busca incansável do ser humano de procurar felicidade e a sua grande insatisfação e dificuldade de encontrar essa felicidade; o homem está o tempo todo sendo afetado por diversos tipos de sofrimento e frustrações. Mesmo que todas as condições sejam favoráveis para a busca e realização do prazer, com o avanço da cultura e da tecnologia e o bem que elas propiciam, o homem se encontra sempre infeliz e contra a civilização.

Para Freud (1996), uma dessas formas paliativas de busca da felicidade e satisfação pode ser a religião, posto que o ser humano está incessantemente preocupado em encontrar o propósito e o motivo da vida, e viver sem saber disso

pode ser completamente frustrante. Então, apenas a religião pode trazer essa resposta, provavelmente seja esse o motivo das pessoas se apegarem tanto a ela, e ser considerada como detentora desse sentimento denominado “oceânico”. Para Freud, nesse ensaio, esse sentimento é uma expressão forte de unidade com a fonte da religiosidade e possivelmente adequada para expressar uma experiência de contato com o divino. Provavelmente pelo motivo de que a religião traga esse sentimento, essa ideia de um pai protetor que está sempre presente afirmando que existe um bem maior e que todo sofrimento não será eterno, mas algo muito melhor nos espera futuramente, o que acaba trazendo certo alivio a tantos desejos reprimidos que, por consequência, trarão dor e desalento. Para o autor, as religiões estão classificadas como um delírio de massa, visto que os seus elementos agem como paranoicos, vivendo a ilusão do alcance da felicidade.

Podemos, então, constatar nesta leitura que o homem tem um elevado grau de maldade e agressividade. Dessa maneira, a corrupção está no homem, tendo em vista ele ser iminentemente mau. Esta maldade afeta seus sentidos, sua moral, seus sentimentos, seu intelecto e vontade. Ele é livre para fazer escolhas, partindo de sua liberdade relativa, e de acordo com o que lhe é agradável e com o que lhe oferece mais vantagens. Ele é relativamente livre para escolher o que lhe convém, o que lhe agrada, de acordo com suas inclinações. E se essas tendências forem para o mal, ele escolherá naturalmente a corrupção, elemento que tem afetado os governos de forma avassaladora e, principalmente, o brasileiro, pois começa nas atitudes desonestas mais simplórias de cada um de nós até o mais alto posto legislativo. Essa sensação de mal-estar coletivo com a corrupção cria concepções de senso comum acerca de uma natural desonestidade do brasileiro, como observamos no capítulo anterior.

Para o autor, a civilização ditou regras para o homem olhar e sentir os seus desejos sexuais, porque o homem é agressivo e sexual por natureza, por instinto; porém, ele não pode agir assim, como e onde quiser, então a sociedade e seus valores existem na intenção de podar e controlar tais atitudes. Então, se pararmos para analisar a civilização, há o seu lado fundamental e positivo; o homem tem de lidar com toda essa pressão da sociedade, mas também de sua própria consciência, pois ao ter determinadas vontades e desejos, ele próprio pode se penalizar e achar errado os instintos que possui. Surge também um sentimento de culpa desencadeado por toda repressão dos instintos de

agressividade; o ego absorve essa agressão e a usa contra si mesmo, a partir de onde surge o superego, que usará toda essa raiva contra a própria pessoa, causando, assim, sentimentos de culpa.

Uma das características do senso comum no Brasil é de que o brasileiro tem um caráter duvidoso e que, a priori, não se nega a levar algum tipo de vantagem no nas relações sociais mais comuns. Neste contexto, alguns indicadores de confiança classificam o Brasil como um país onde a desconfiança impera. Para além do senso comum, esse tipo de leitura da realidade social brasileira converge para termos centrais das interpretações do país e a produção de conceitos no mundo acadêmico também incorpora esse tipo de visão, sendo o brasileiro um cidadão voltado para seus desejos intensos, que se expressam em diversas formas sociais clichês, tais como a malandragem e o “jeitinho brasileiro”. Contudo, por meio do mal-estar, analisamos o problema da corrupção no Brasil, a partir da antinomia entre normas morais e prática social, defendendo a hipótese de que a prática de corrupção não está relacionada apenas aos aspectos do caráter do brasileiro, mas à constituição de normas informais que institucionalizam certas práticas tidas como moralmente degradantes, mas cotidianamente toleradas. A antinomia entre normas morais e prática social da corrupção no Brasil revela uma outra antinomia: a corrupção é explicada, no plano da sociedade brasileira, pelo fosso que separa os aspectos morais e valorativos da vida e a cultura política. Isso acarreta uma tolerância à corrupção que está na base da vida pós-democracia.

Segundo o cientista político e social Raymundo Faoro (2001), a corrupção no Brasil não começou há poucos dias e foi se fundamentando em um círculo vicioso, ela é um mal ou um vício herdado desde a época do Descobrimento, como observado em nosso estudo inicial. Neste círculo identificamos a figura do corruptor, do corrompido e do conivente (aquele que sabe do ato de corrupção, mas não faz nada para evitá-lo), favorecendo o corruptor e o corrompido. É o caso do eleitor que vota em candidatos corruptos, mesmo sabendo da sua condição, muitas vezes um réu em algum processo congênere. Outro é aquele que vota em troca de algum benefício ou favor, uma oportunidade de trabalho, um contrato, ou a popular dentadura (ícone das artimanhas na década de 80); essas atitudes favorecem e nutrem a corrupção. As práticas corruptivas mais comuns da administração pública são: o nepotismo, o clientelismo, o peculato, entre outras que exemplificamos nos relatos colhidos neste estudo, como: caixa dois, que é o

acúmulo de recursos financeiros não contabilizados, tráfico de influência, uso de “laranjas” (empresas ou pessoas que servem de fachada para negócios e atividades ilegais), fraudes em obras e licitações, venda de sentenças, improbidade administrativa, enriquecimento ilícito, dentre outras apontadas no caso do ex-governador Sérgio Cabral. Por outro lado, pensar que o Brasil é um país corrupto apenas pela ocorrência de sucessivos escândalos políticos de desvios de dinheiro público é uma ingenuidade, pois existem vários tipos de corrupção, as quais se desenvolvem em todas as camadas sociais, indiferentemente se está atrelada à coisa pública ou não. Segundo o autor, muito dessa corrupção nasce no seio da família; a criança cresce com este quadro de referência e se torna uma pessoa com interesse vão e escuso. Desta maneira, a corrupção deve ser tratada desde o início no seio familiar, com atenção aos valores, aos princípios de justiça, honestidade, dentre outros ligados à virtude, desenvolvendo e se consolidando até chegar às esferas de governo.

Segundo Freud (1996), os traços antissociais são resultantes de um déficit na estruturação do superego, ocorrendo nos indivíduos, nos quais a consciência moral e a ética não se instalam adequadamente. Defendem a ideia baseados na constatação de que, nesses casos, as infrações expressas na conduta não carregam o sentimento de culpa, advertindo que não devemos falar de consciência até que um superego se ache demonstravelmente presente. Quanto ao sentimento de culpa, temos de admitir que exista antes do superego e, portanto, antes da consciência também. Nessa ocasião, ele é expressão imediata do medo da autoridade externa, um reconhecimento da tensão existente entre o ego e essa autoridade.

Fazendo uma alusão ao “Seminário 07 - A Ética da Psicanálise”, de Lacan (1988), temos a princípio a pergunta que norteia Freud à teorização sobre como se instala a experiência moral - seria a culpa mítica do assassinato do pai, que deu origem ao desenvolvimento da cultura ou a introdução da pulsão de morte, em 1920? E é exatamente em “O Mal-estar na Civilização” que Freud (1996) afirma a autonomia da destrutividade em relação à sexualidade, sendo sua maior contribuição sociológica justamente a ideia de que a civilização origina e fortalece o que é anticivilizatório. Sendo considerando desesperador o fato de que nunca venceremos totalmente a destrutividade, já que ela faz parte do processo civilizatório. Nesse sentido, Freud afirma que quando consideramos o quanto

fomos malsucedidos nesse campo de prevenção do sofrimento social, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível repousar uma parcela de nossa própria constituição psíquica.

Para Birman (2009), quando começamos a considerar essa possibilidade, nos deparamos com o seguinte argumento de Freud:

Esse argumento sustenta que o que chamamos de nossa civilização é, em grande parte, responsável por nossa desgraça, e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo esse argumento de espantoso porque, seja qual for a maneira por que possamos definir o conceito de civilização, constitui fato incontroverso que todas as coisas que buscamos, a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização (FREUD, 1996 apud BIRMAN, 2009)

Rosa (2007) afirma que foi justamente coincidindo com a perda da autoridade, indispensável como atributo da função paterna, que se instala na sociedade pós-moderna o autoritarismo de um poder hegemônico de uma única nação, mais rica e mais tecnológica, a impor normas, democracia, comportamentos, sanções econômicas, além de guerras e métodos bárbaros de tortura, culminando com a obrigatoriedade do estudo do criacionismo nas escolas, violência explícita ao progresso científico e à teoria de Darwin da evolução das espécies. Segundo Rosa (2007), podemos dizer que a:

Corrupção rompe a cadeia do desejo, originando buracos negros e vazios representacionais que se refletem na cultura da superficialidade e do descartável, submundo do espetáculo de temas fúteis, na ideologia do ‘quanto pior, melhor’. A corrupção é, assim, o ponto central, a pedra angular do regime imperial. Ela está presente nas salas dos burocratas, nas classes emergentes ansiosas por ascensão social, nas religiões fundamentalistas, nas terapias alternativas enganadoras que bloqueiam a subjetividade. Além disso, a corrupção está sempre presente no mundo da política, contaminando como uma epidemia por vírus mortal as estruturas mais diversas da sociedade. Ela é um ataque ao poder gerador da vida e um insulto aos valores éticos da comunidade produtiva (ROSA, 2007.pp. 71-72).

Diante do exposto podemos pensar que o fenômeno da corrupção se mostra como sintoma social contemporâneo que se promove da cultura da destrutividade e da pulsão de morte, como fica evidenciado no texto de Freud:

A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber até que ponto seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pela pulsão de agressão e autodestruição [...]. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza tal controle que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros,

até o último homem. Sabem disso e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois poderes celestes, o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado? (FREUD, 1930/1974, p. 170).

As disputas pelo poder social, religioso e até mesmo científico fragilizaram as relações. Não é à toa que Freud já colocava as relações humanas como a pior das tragédias que poderia acontecer ao homem, graças à hipocrisia. Podemos afirmar, então, que esta obra foi um alerta para o difícil convívio em sociedade e para a impossibilidade de o homem ser feliz por três motivos: pela fraqueza humana frente às forças da natureza, impossíveis de serem dominadas; pela fragilidade de nossa constituição física, que nos leva a adoecer, envelhecer e morrer; e, por fim, pelo sofrimento advindo da convivência com os outros seres humanos.

E é justamente dessa convivência com desvios de conduta de personagens do cenário político nacional que advém esse sentimento, misto de indignação e revolta dos cidadãos de bem, que trabalham arduamente enfrentando a grave crise econômica e pagando altos impostos, sem receber recursos de educação, saúde e segurança dignos para uma vida saudável. Embora saibamos que a corrupção existe desde o princípio dos tempos, nunca estivemos tão vulneráveis ao desfile midiático de corruptos que seguem impunes, a desdenhar de todos os princípios éticos. Trata-se de um real que suscita uma melhor avaliação das causas do decréscimo do simbólico no mundo pós-moderno.