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Reflexões sobre a constituição de corpora para o estudo histórico da língua

03 Seleção e construção dos corpora e metodologia de análise

3.1 Reflexões sobre a constituição de corpora para o estudo histórico da língua

Mattos e Silva (2004), ao propor uma agenda no intuito de reconstruir a sócio- história do português brasileiro, defende que se enfrente a reconstrução de uma história social da linguagem, a partir de fontes históricas múltiplas. Em outras palavras, a autora argumenta que, para estudar o português brasileiro numa perspectiva sócio-histórica, é preciso que esta língua seja estudada a partir de um corpus documental variado, representativo tanto das normas vernáculas como das normas cultas.

Este empreendimento, apesar de possível, apresenta alguns obstáculos. Oliveira (2008), ao discorrer sobre o ajuntamento de fontes históricas que sejam representativas do português popular brasileiro, constata que os pesquisadores enfrentam o problema da raridade das fontes, da sua dispersão arquivística e do seu mínimo quociente de durabilidade51.

50 No III Congresso Internacional de Linguística Histórica - Gallaecia, apresentei uma comunicação oral sobre a

formação de corpora para o estudo histórico da língua, envolvendo especificamente o uso de jornais. Nesse sentido, partes desse capítulo foram apresentadas naquela ocasião. No entanto, não houve publicações desses trechos.

51 As dificuldades envolvendo o levantamento de dados para o estudo histórico da língua já haviam sido salientadas

Berlinck, Barbosa & Marine (2008) também levantam a questão da dificuldade que o historiador da língua encontra ao tentar levantar fontes para o seu estudo em diferentes épocas. As autoras, por se pautarem no modelo da Teoria da Variação e Mudança Linguística, enxergam a mudança como um conjunto de processos lentos e graduais, cujo início se daria em interações orais e cotidianas. Em virtude disso, defendem que é papel do historiador da língua buscar textos históricos que sejam mais próximos à linguagem usual, uma vez que esta estaria menos afetada pelas pressões normativas.

Todavia, as próprias autoras levantam a seguinte questão: “se considerarmos, porém, a escassez de fontes, notoriamente para alguns períodos mais antigos da língua, podemos ‘abrir mão’ de textos então produzidos?” (cf. BERLINCK, BARBOSA & MARINI, (2008:171)). Tal questão é norteada pela discussão sobre a inclusão de textos literários, especificamente – as peças teatrais, como fonte de estudo, tal como o fizeram Cyrino (1994) e Berlinck (1999).

Segundo as referidas autoras, as peças teatrais representam um tipo de interação cotidiana e, por isso, teriam seu uso justificado como fonte de dados para o estudo histórico da língua. No entanto, afirmam que

a potencial riqueza de informações que textos dramáticos podem nos fornecer não nos dispensa, porém, de um olhar crítico e criterioso sobre a sua utilização para a análise de possíveis fenômenos de variação e mudança linguística (cf. BERLINCK, BARBOSA & MARINI, (2008:186)).

Os autores defendem ainda que o uso de textos dramáticos como fonte de dados para o desenvolvimento de estudos de variação e mudança linguísticas deve estar vinculado a pesquisas sobre o contexto sócio-histórico em que o texto foi produzido e à análise da linguagem empregada, levando em consideração seu carácter dialógico e, potencialmente, plurilíngue ou pluridialetal (cf. BERLINCK, BARBOSA & MARINI, (2008:190)).

Barbosa (2007), por sua vez, acredita que, diante da pouca descrição e análise tanto de tradições discursivas como de tipologias textuais, a pesquisa histórico-linguística precisa avançar, segundo ele, a partir dos seguintes objetivos:

descrever as marcas objetivas e as dimensões mais gerais dos diversos gêneros de textos ao longo da história do português. Descrever e definir propriedades da galáxia de textos de sincronias passadas já será um passo gigantesco para a construção de

corpora representativos de segmentos sociais diversos e suas diversas normas de uso

Diante disso, defende que, para estudar a norma do período colonial no intuito de investigar a formação do português brasileiro, é necessário triangular (i) a norma descrita/prescrita nos textos metalinguísticos publicados em Portugal que circulavam pelos poucos espaços de cultura escrita no Brasil-Colônia, (ii) os usos linguísticos nos textos modelares para a prática de escrita dos redatores hábeis, ou seja, identificar quais textos serviam de modelo para a sociedade da época e, por fim, (iii) os usos linguísticos nos textos públicos e privados produzidos por indivíduos historicamente identificados com redatores com formação escolar ou como eruditos em sua época (cf. BARBOSA, 2007: 486-487).

Para estudar, portanto, a formação do português brasileiro será preciso que o linguista histórico leve em conta diferentes tipos de textos, de tradições discursivas e de referenciais de norma de erudição escrita. Isso significa que, para uma descrição mais completa da formação do português brasileiro, os historiadores da língua não poderão se restringir apenas a textos que sejam representativos da linguagem coloquial e deverão investigar fontes que permitam descrever o português e os padrões de norma vigentes em períodos diversos. Reforçando o que Barbosa (2007) defende em seu texto, não há melhores ou piores fontes de pesquisa, é preciso saber o que cada material pode oferecer e qual tipo de fonte é mais adequado para o estudo de determinados fenômenos linguísticos.

3.1.1. O jornal como fonte de corpora para o estudo histórico da língua

A discussão sobre a importância de uma variada fonte de dados para o estudo da língua em períodos pretéritos mostrou que as investigações diacrônicas devem ser também históricas, o que significa que é preciso obter informações sobre a cultura escrita da sociedade da época investigada e “tomar ciência da tipologia textual das potenciais referências de norma de prestígio” (BARBOSA, 2007: 493).

De acordo com Oliveira (2008), a história da leitura e da escrita no Brasil dos séculos XVIII e XIX é de poucos, restrita provavelmente aos brancos e, ainda assim, àqueles pertencentes à elite. Além do problema da ausência de alfabetização, a sociedade colonial brasileira enfrentava o problema de não contar com muitas opções de desenvolvimento do letramento, já que as primeiras tipografias só surgem no país a partir de 1811, com a criação da Impressão Régia, e os livros eram escassos e pouco acessíveis. Essa falta de acesso a diferentes

materiais escritos é narrada, inclusive, por um dos redatores do jornal O Ateneu, analisado nesta pesquisa, em que o autor, discutindo sobre a importância dos jornais, diz:

E ainda mais uma vantagem tem os períodicos: para as classes pobres do povo, cujos meios pouco chegão para aquillo que é indispensavel á satisfação de suas primeiras necessidades, torna-se impossivel haver aquellas obras e livros, de que precisão para se instruirem; quando com um rediculo escote o jornal lhes franquêa a sciencia, a litteratura e tudo emfim que lhes é mister para o aperfeiçoamento de sua intelligencia e de seus costumes (O Ateneu – 1849).

Soma-se a isso o fato de que, mesmo com a vinda da Família Real ao país, o Brasil não conta com a criação de universidades, mas somente com o funcionamento de algumas escolas superiores de caráter profissionalizante, como o Curso Médico de Cirurgia na Bahia e no Rio de Janeiro, entre outros (cf. FÁVERO, 2006).

Dessa maneira, Barbosa (2007) acredita que, para aqueles que eram alfabetizados, é provável que o contato com os livros fosse restrito aos materiais litúrgicos. Ademais, as necessidades de escrita na fase colonial brasileira deviam estar restringidas também às motivações pessoais e familiares e às questões públicas. Tal realidade só viria a mudar nos primeiros anos do século XIX com o surgimento da imprensa.

É a chegada da Família Real ao Brasil que possibilita o aparecimento da imprensa em 5 janeiro de 1811, através da instalação da primeira tipografia na cidade da Bahia. Segundo Lustosa (2004), como a educação era para poucos, o alcance da imprensa não era democrático. Além disso, os jornais publicados nessa época não se pareciam com os jornais de hoje, apresentavam distinção tanto na forma como no conteúdo: o jornal se parecia com o livro e as notícias eram compostas de longos e densos artigos, publicados de forma circunstanciada por vários números seguidos.

Percebe-se, portanto, que a criação da imprensa contribuiu para a formação de um público leitor no Brasil colonial. Segundo Barbosa (2007), a propagação dos periódicos em todo o território imperial e republicano pode ser caracterizada como um grande elemento de transformação, difundindo tradições discursivas e modelos de norma. Assim,

se o referencial de norma culta brasileira oitocentista estiver referenciado nos padrões efetivamente usados nos jornais, é de se supor que fenômenos variáveis que definiram normas nacionais possam ser reconhecidos em trabalhos empíricos que operem com dados desse material (cf. BARBOSA, 2007: 495).

Tal hipótese pôde ser comprovada através de alguns trabalhos. Dentre eles, pode- se citar os estudos de Gravina (2008) e Macedo-Costa (2012), que evidenciaram que as mudanças sintáticas envolvendo o preenchimento do sujeito pronominal e o apagamento do objeto direto anafórico podem ser constatadas em textos de jornais.

A necessidade de estudos que contemplem dados extraídos da mídia também é abordada por Silva (1982), para quem a análise desses dados é vital não somente por possibilitar avaliar a influência que os meios de comunicação exercem sobre os falantes, como também para estudar a profundidade do grau de consciência dos redatores do manejo da língua. Desse modo, a escolha de uma variada fonte de dados para o estudo da distribuição dos artigos definidos nos sintagmas nominais, bem como da posição desse sintagma na sentença, é plausível por possibilitar uma análise mais completa desse fenômeno.