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4.3 A REFLEXÃO DOCENTE E A RESSIGNIFICAÇÃO PEDAGÓGICA

4.3.1 O registro sobre a prática pedagógica

Escrever sobre o que se faz enquanto docente não é uma tarefa fácil. Primeiro, porque a escrita nem sempre é uma aliada do professor e segundo, porque escrever sobre sua própria prática pedagógica é algo remoto e exige desnudar-se, falar de si, de sua ação pedagógica, o que requer reflexão. Em Educação Infantil, normalmente o professor tem o hábito de registrar fatos, situações, processos, avanços, mas sempre voltados às conquistas das crianças com fins avaliativos para a composição do portfólio entregue às famílias. Raros são momentos em que os professores fazem registros sobre sua prática pedagógica. A professora B, na entrevista, reconhece que tem ir se “[...] policiado mais, de poder anotar algumas coisas. A gente tem o caderno de planejamento [...] eu vou colocando o que vou lembrando do dia [...] as vezes faço anotações fora ou as vezes se fiz num papel eu acabo colando ali e tempos depois eu volto e leio [...]”. A professora A afirma que “os registros não estavam sendo feitos, somente os planos de aula mesmo e fotos do andamento e trabalhos prontos. Mas registros de reflexão mesmo isso não. Na verdade, este ano estou pensando em criar um portfólio e juntar ao máximo o que já foi feito e alguns registros”. Na perspectiva de Zabalza (2004):

Tanto escrever sobre o que fazemos como ler sobre o que fizemos nos permite alcançar uma certa distância da ação e ver as coisas e a nós mesmos em perspectiva. Estamos tão entranhados no cotidiano, nessa atividade frenética que nos impede de parar para pensar, para planejar, para revisar nossas ações e nossos sentimentos que o diário é uma espécie de oásis reflexivo (p. 136).

O exercício de escrever é um espaço em que a palavra como narração daquilo que foi vivido se amplia possibilitando a revelação de questões sobre nós mesmos, marcado de histórias que permitem entrever um tanto do que fomos-somos-poderemos-ser (OSTETTO, 2012). Conforme a autora, o registro escrito sobre a prática pedagógica, se configura como exercício pessoal do professor que possibilita perceber sua própria ação, como se relaciona com o conhecimento, com as crianças e com o trabalho educativo, bem como suas demandas do cotidiano. Narrar, através da escrita, proporciona ao professor pensar sobre si e sobre sua prática, pois para escrever faz-se necessário organizar as ideias em narrativas, constituindo-se, assim, espaço de reflexão. De acordo com Herbertz e Vitória (2012, p. 31)

Ao registrar, o professor já realiza uma espécie de catarse sobre si mesmo. Ao reler essa escrita, reorganiza seu pensamento e analisa os aspectos relevantes e aquilo que precisa ser eliminado e reconstruído em sua prática na sala de aula. O registro, no nosso entendimento, tem uma dupla função: ser um espaço de desabafo com o diário e também abre caminhos para posteriores reflexões a partir das retomadas feitas.

Documentar a própria prática docente e refletir sobre ela ajuda a conhecer melhor seu estilo de trabalho, de sua professoralidade. Zabalza (2004) compreende que é no fluxo das narrativas que o professor recupera suas imagens e lembranças que até então ficaram

desapercebidas. Incorporando-as na escrita, complementam o sentido daquilo que vai sendo narrado. Uma vez concluída a escrita, terá uma visão de tudo o que aconteceu durante o dia podendo ler e reler quantas vezes for necessário revisando e analisando cada detalhe do acontecido.

Escrever sobre a experiência vivida favorece ao professor aprender sobre si mesmo e sua prática, pois, na medida em que organiza as ideias em escrita, já inicia o processo reflexivo. Esse momento possibilita o distanciamento necessário para se aproximar do campo de sua ação, e ao fazê-lo aprofunda sua reflexão reconstituindo o vivido com outro formato, outras cores de modo ampliado e integrado. Nesse sentido, promove aprendizagens e reflexões com sentido, ajudando na criação de uma rede de conhecimentos. Para Gomes (2009, p. 152), “valer-se do passado para desenvolver a percepção do presente supõe resgatar momentos de experiência vivida”. A autora também entende que a potencialidade da narrativa como promotora de um diálogo do sujeito consigo mesmo, capaz de criar condições para seu bem-estar, como um balanço pessoal elaborado em movimento contínuo imerso em sua memória e distanciamento temporal, favorece o processo reflexivo e a tomada de consciência do seu percurso formativo que constantemente é revisitado e aprofundado. No entendimento de Herbertz e Vitória (2012), escrever diários de aula exige uma organização daquilo que se quer registrar. Pelo fato de o registro exigir aspectos significativos sobre sua prática, os professores talvez também se deparem com dificuldades. Para alguns, pode ser uma ação remota escrever sobre sua atuação docente: tanto pela quase inexistência de produção intelectual, quanto pelos registros no formato de diários de aula ser algo recente no contexto educacional. E, especialmente por este motivo, exige, por parte dos docentes, tempo e dedicação, tanto pelo fato de registrar seus sentimentos e ideias como por permitir um distanciamento necessário para a reflexão sobre sua prática docente com o objetivo de ressignificá-la e redimensioná-la constantemente.

Ao abordar sobre o registro escrito que proporciona a reflexão dado o afastamento necessário para olhar de fora para dentro, Zabalza (2004) defende que a própria escrita sobre a prática pedagógica conduz o professor a aprender por sua narratividade. E narrando sua experiência recente não só a constrói linguisticamente como também a reconstrói como discurso da prática e como atividade profissional. Esse processo reflexivo desencadeado pela escrita sobre o experienciado se transforma em sistematização do pensamento e conhecimento elaborado. O registro sobre o que vivencia proporciona ao professor tornar-se mais humano na medida em que se confronta com suas incertezas, enfrenta seus erros e limites, buscando superá- los reavaliando suas concepções e redimensionando sua prática pedagógica. O cotidiano do

professor é carregado de diferentes sentimentos, há momentos de alegria, satisfação, realização pessoal e profissional, como também, em outros momentos, se fazem presentes as preocupações, chateações, frustrações. Nem sempre tem a possibilidade de falar sobre o que sente, por isso, escrever sobre os fatos ocorridos e os sentimentos dos diferentes momentos oportuniza uma espécie de catarse. Segundo Ostetto (2012, p. 132), “refletir sobre o vivido é perceber as polaridades da vida: nem tudo alegria, nem tudo tristeza, nem só acertos, nem só erros, mas isso e aquilo”. Contribui para esse estudo ao dizer que “ser um profissional de educação significa experimentar sentimentos. Na tentativa de refletir sobre eles, falar ou até mesmo escrever pode ajudar” (p.136). A exemplo da professora B, “[...] eu não estou contente com o que aconteceu, fiquei chateada [...] o fulaninho estava de tal forma, eu podia ter acolhido de uma outra forma. Tu repensas [...] no dia seguinte acabo agindo da mesma forma de novo. Porque estou fazendo isso de novo se eu já tinha pensado que não foi legal? E busca auxílio “nas trocas, entre a conversa com a escola (especialistas)”. A reflexão da professora denota sua preocupação em mudar a estratégia de ação, embora encontre resistência em si mesma ao ver-se fazendo o mesmo no dia seguinte. Mas esse já é um início para implementar a reflexão sobre sua ação docente. Ao dar-se conta que repete duas vezes a mesma ação que julga não ser legal, remete a buscar nova alternativa pedagógica.

Na mesma perspectiva, Zabalza (2004), iniciando sua trajetória com a escrita daquilo que vivenciava, denominando de Diários, percebeu que “escrever um diário foi como travar uma espécie de diálogo comigo mesmo, tratar de racionalizar ao acabar a jornada [...] o que havia acontecido durante o dia” (p. 09). Diante dessa experiência de colocar seus sentimentos e percepções do cotidiano na escrita do diário, o autor afirma que o “diário era uma forma de descarregar tensões internas acumuladas, de reconstruir mentalmente a atividade de todo o dia, de dar sentido para mim mesmo” (p. 09). Cabe aqui lembrar que o hábito de escrever sobre o que se faz e as percepções que tais atividades geram em cada um, no dia a dia, vale para os profissionais das diversas áreas de atuação. A característica da escrita do acontecido permite documentar o que escapa se ficar somente na oralidade ou na memória, pois “o congestionamento de sensações, imagens e experiências é tão intenso que temem perdê-lo se não o reconstruírem por escrito” (ZABALZA, 2004, p. 11). O autor entende que esse é o sentido mais original de escrever o diário pela sua potencialidade reflexiva e reconstrutiva. A memória ou a oralidade raras vezes possibilitam fazer uma retomada como a que é possível com a palavra escrita.

Numa perspectiva longitudinal o professor, ao fazer o registro escrito sobre sua própria vivência e experiência pedagógica, consegue transitar nos diferentes tempos de sua ação docente, permitindo perceber-se em sua evolução pessoal e profissional. Vai se (re)descobrindo enquanto autor desse processo de ensinar e aprender, tornando-se cada vez melhor, sensível ao que está a sua volta, aberto para a escuta, mais disponível, percebendo-se parte desse vai e vem do processo de formação humana e de múltiplas aprendizagens. Inicialmente, escrever sobre sua prática talvez possa ser algo doloroso, sofrido, porque, em algumas situações, é como se o professor fugisse da escrita. Escrever sobre o que faz não necessariamente é uma prática desenvolvida ao longo de sua vida acadêmica ou profissional. No entanto, para Herbertz e Vitória (2012), o registro é importante porque é uma forma de manter vivo tudo aquilo que a memória por si só não armazenaria com tantos detalhes por um longo período de tempo.

Outra ideia subjacente na questão do não escrever que foi trazida pela professora B em sua entrevista. A docente entende que pouco escrevia por julgar que “tem uma referência bibliográfica muito forte de coisas da educação e Educação Infantil que não são do Brasil” e por isso considerava que escrever sobre o que produzia em seu espaço de trabalho junto às crianças seria de menor importância. E, ao participar de um evento científico no contexto europeu, sobre a Educação Infantil, deu-se conta de que a idealização do “tudo de lá, que vem de lá estava muito bem feito [...] se desmistificou. Não que tais teorias sejam questionáveis, o que está em jogo é que “quando a gente começa a fazer a troca com os pares que estão dentro da sala de aula, tu começas a pensar: mas só um pouquinho! Eu faço isso! A minha escola faz isso [...] de uma forma muito legal e isso é a nossa rotina, não é de vez em quando”. Nessa fala, está implícita a ideia de autorizar-se, permitir-se, como produtora de práticas inovadoras junto a seus alunos. E, ao dar-se conta, percebeu que “não estava me permitindo nessa autoria de registro” não porque estava “desacreditando” em seu potencial, mas pelo estereótipo do que “vinha de fora, sempre é melhor”. E faz uma rápida reflexão no momento da entrevista, entendendo a produção externa como positiva, mas que, para ter e manusear “o que vem de fora, alguém tem que parar e escrever”. Reconhece que mudou seu modo de ver como se dão as coisas no contexto educativo e afirma que “ainda está longe do que eu pretendo, porque eu acho que tem muita coisa dentro da rotina que a gente tem. Tem muita coisa para ser escrita”. Conforme Zabalza (2004, p. 43), “o processo de escrever é multirrepresentacional e interativo. E, [...] escrever requer uma estruturação deliberada do significado”.

A ênfase dada à produção escrita pela professora B trilha o caminho do registro de práticas pedagógicas, de experiências no cotidiano escolar junto às crianças, as quais se

evidenciam ao afirmar: “coisas que passam no dia a dia, riquíssimas, interações maravilhosas entre o grupo, da proposta, e o que eu tenho disso de registro? E complementa dizendo: “tua prática só vai ser boa quando tu fizeres o registro, porque senão quem é que vai saber daquilo ali?”. Nessa perspectiva, o registro fica no campo das práticas realizadas junto às crianças no espaço escolar. Embora tenha sua validade, salientamos a importância de escrever sobre as percepções e sentimentos de sua prática, a fim de tornar um hábito, ao mesmo tempo em que serve como instrumento de retomada e reflexão para o redimensionamento pedagógico. Conforme Ostetto (2012), o registro escrito assume papel central na medida em que se utiliza dele como base para tecer os enredos, compor outros textos, ampliar as análises e sistematizar de algum modo o vivido através das reflexões.

Ao fim e ao cabo, compreendemos o registro escrito da forma como Zabalza (2004) preconiza, ou seja, proporciona que o personagem que descreve sua experiência vivida vai se dissociando do personagem cuja experiência se narra. A saber, a pessoa, ao escrever, fala de sua atuação e, dessa forma, torna-se capaz de se ver e perceber em três dimensões: o narrador, o narrado e a realidade. Entende, ainda, que o professor, a partir da leitura e reflexão sobre seus registros, dialoga consigo mesmo em relação à sua atuação no cotidiano. Herbertz e Vitória (2012) corroboram quando afirmam que o registro dos diários e a reflexão sobre os mesmos influenciarão na elaboração das atividades propostas pelo professor aos seus alunos, ao refletir sobre o que faz e redimensionando esse fazer proporciona o ressignificar de sua ação pedagógica. Consequentemente, todo esse processo não se dá desacompanhado da busca de referenciais teóricos que sustentem essa nova ação. Assim, essa prática pode ser compreendida como uma formação continuada dos professores. Ao reunir a teoria, a prática e vivência experienciada junto aos alunos, é possível estabelecer a tríade ação-reflexão-ação.