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REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS COMO INSTRUMENTO DE

CAPÍTULO 3: REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

3.3. REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS COMO INSTRUMENTO DE

Os valores humanistas protegidos pela Constituição Federal de 1988 impõem à prestação dos serviços públicos a sua observância. Devem, portanto, ser prestados serviços públicos de qualidade, visando à inclusão social, à universalização do atendimento e ao efetivo respeito aos direitos humanos, independente da titularidade estatal, por se tratarem de atividades relacionadas à satisfação de necessidades essenciais.

Assim sendo, o objetivo da presente pesquisa, conforme já exposto, é demonstrar como a regulação dos serviços públicos pode servir de instrumento para concretização dos direitos humanos e, consequentemente, da dignidade humana.

Vale dizer que a dignidade das condições de vida humaniza o indivíduo, inserindo-o por completo na sociedade. A regulação exerce a função social de inserir os indivíduos na sociedade por meio da prestação universal de serviços adequados.

No entanto, não basta apenas que os serviços estejam disponíveis a todos, sendo necessário que a população possa efetivamente ter acesso a eles, os quais se obtêm, dentre outros fatores, por meio de medidas regulatórias voltadas à ampliação do acesso, à fixação de uma política tarifária módica, de imposição de obrigações de universalização, dentre outras.

A importância do acesso efetivo aos serviços públicos essenciais reside no fato de que tal acesso permite que o homem desenvolva plenamente todas as suas capacidades, as quais dependem, por exemplo, de serviços adequados de saúde, educação, saneamento básico, etc. Conforme salienta Aragão, os serviços públicos constituem “meios de realização de direitos fundamentais autonomamente considerados”133. O acesso deve ser garantido ainda em

condições de igualdade entre todos aqueles que estejam na mesma situação e que preencham os pressupostos para uso e gozo do serviço.

O direito de acesso aos serviços de interesse econômico geral foi previsto expressamente na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia como direito que deve ser obrigatoriamente garantido pelos Estados, irradiando sua eficácia para o ordenamento jurídico nacional em face do disposto no §2º do art. 5º, primeira parte, da Constituição Federal.

Tratando-se de um direito humano, qualquer forma de violação do efetivo acesso aos serviços públicos caracteriza-se como violação do próprio direito humano relacionado à prestação do serviço em questão.

Nesse tocante, cita-se,por exemplo, o caso da greve dos metroviários em São Paulo em meados de 2014, cuja não observância à obrigação de manter atendimento mínimo à população levou o Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região a reconhecer a abusividade da greve e à apresentação de representação, junto ao Ministério Público de São Paulo, pleiteando a responsabilização civil dos metroviários pela violação a direito fundamental de acesso aos serviços públicos134.

133 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 507. 134 Representação formulada pelo Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, apresentada pelo Presidente da

entidade, José Horácio Rezende Ribeiro e pelo Presidente da Comissão de Estudos de Direitos Humanos do IASP, Ricardo Hasson Sayeg. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/representacao-iasp-greve-metro.pdf>. Acesso em 9 dez. 2014.

Corolário do direito de acesso é a isonomia, devendo ser garantida igualdade de acesso que possibilita a realização da justiça social, ou seja, a inclusão de todos.

Assim, embora a primeira justificativa das teorias do interesse público para a regulação seja seu papel como instrumento de correção de falhas do mercado, buscando-se meios de obter maior eficiência e produtividade, aquela se mostra imprescindível também como fator de concretização dos valores que possibilitam a inclusão, o desenvolvimento humano e a satisfação da dignidade.

Uma das formas de se obter tal fim se dá por meio da função redistributiva da regulação, a qual permite a cada vez mais indivíduos terem acesso ao mercado de consumo, inclusive aqueles que não têm condições de arcar com o custo efetivo do serviço - e que não pode ser a eles negado em razão da sua essencialidade - gerando efeitos na ampliação da demanda e impulsionando o desenvolvimento.

A alocação das políticas redistributivas no âmbito da regulação, porém, encontra algumas resistências, especialmente entre os liberais, para os quais apenas o mercado livre pode proporcionar a máxima eficiência alocativa, e a redistribuição pode desencorajar os investimentos.

Na doutrina estrangeira, Majone entende que o objetivo da regulação deve ser a eficiência, o que por sua vez confere legitimidade às decisões regulatórias. Embora o autor reconheça a necessidade da adoção de políticas redistributivas pelos Estados modernos, especialmente pelos países em desenvolvimento, entende que deve haver uma clara divisão de tarefas entre regulador e Estado, com atribuição ao regulador apenas de tomada de decisões de acordo com critérios de eficiência, enquanto ao Estado cabe a adoção das políticas de redistribuição de riquezas135.

Em oposição a Majone, Haber afirma que a separação estrita entre medidas tomadas visando à eficiência e medidas de redistribuição não se aplica nem mesmo nos países desenvolvidos, “onde a interação entre as políticas redistributivas e regulatórias no contexto da liberação econômica dos serviços essenciais levou ao crescimento dos „regimes regulatórios do bem-estar social‟, que por sua vez levaram ao atingimento de finalidades de interesse social por meio da regulação”136.

135

Apud DUBASH, Navroz K.; MORGAN, Bronwen. Understanding the rise of regulatory state of the South. In:

Project on the regulatory state of the South. Regulation & Governance, Oxford, v. 6, 2012, p. 268.

136HABER, H. Regulating-for-welfare. A comparative study of “regulatory welfare regimes” in The Israeli,

British and Swedish Electricity sectors. Law and Policy, v. 33, 116-148, 2010 apud DUBASH, Navroz K.; MORGAN, Bronwen. Understanding the rise of regulatory state of the South. In: Project on the regulatory state of the South. Regulation & Governance, Oxford, v. 6, 2012, p. 268 (traduçãolivre).

E, de acordo com Dubash e Morgan, o contexto dos países em desenvolvimento torna ainda menos plausível a separação entre políticas redistributivas e regulação por pelo menos três motivos: a pobreza, a precariedade no setor de serviços e, por fim, o déficit de legitimidade que se verifica no contexto do Poder Executivo responsável pela delegação de poderes ao regulador, concluindo os autores que a regulação nos países em desenvolvimento imiscui-se mais com a política do que nos países desenvolvidos, em razão das diversas questões que se colocam em uns e outros, especialmente porque nos países desenvolvidos já há extensos programas sociais que tornam desnecessária a mobilização da sociedade em prol da adoção de políticas regulatórias de redistribuição137.

No mesmo sentido, Salomão Filho, para quem, sendo o propulsor das economias dos países desenvolvidos o incremento na demanda, a regulação deve estar centrada não na eficiência, mas no aumento da demanda, através justamente de medidas redistributivas138.

Concluindo-se pela necessidade da adoção de políticas redistributivas, é possível questionar a legitimidade do regulador para fazer tal ou qual escolha, uma vez que implica restrições à livre iniciativa e à propriedade privada.

Porém, deve ser rejeitado, considerando o até agora exposto e tendo em vista que a função social da propriedade e a justiça social são consubstanciais ao próprio direito de propriedade e à livre iniciativa, conferindo uma única opção de escolha ao regulador e também ao particular, voltada à satisfação da dignidade humana.

Quanto à importância da função redistributiva, Coutinho salienta que

a Constituição brasileira de 1988, documento jurídico e político que traduz os anseios de transformação da sociedade, reconhece que a realidade que pretende transformar é desigual e marcada pela pobreza e pela marginalidade. Dito de outra forma, pode-se dizer que, no caso brasileiro, está em vigor uma constituição de pretensão transformativa que parte da suposição de que o status quo deve ser alterado em função da existência – explicitamente reconhecida – de desigualdades e outras mazelas sociais a ela preexistentes139.

Assim, encontra-se o fundamento para a função redistributiva da regulação na própria Constituição, que impõe a redução das desigualdades regionais e sociais e a erradicação da pobreza como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, constituindo-se em norma de inequívoca natureza redistributiva que guia a atuação do

137 DUBASH; MORGAN, op. cit., pp. 269-271.

138 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 38. 139 COUTINHO, Diogo R. Direito, desigualdade e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 72-73.

regulador, determinando uma alocação de recursos que privilegie os menos favorecidos, em busca da igualdade material, de forma que a política regulatória não pode seguir orientação no sentido oposto.

No mesmo sentido, a norma que estatui como fundamentos da República Federativa do Brasil os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como a que inclui entre os objetivos daquela a garantia do desenvolvimento nacional (arts. 1º e 3º).

A política regulatória, portanto, não pode descuidar desses objetivos, intervindo na prestação dos serviços públicos de forma a reduzir as desigualdades.

O liberalismo econômico, diante desse quadro de desigualdades sociais e regionais, não consegue oferecer uma resposta adequada, pois parte da premissa do perfeito funcionamento do mercado e da igualdade de acesso e oportunidade de todos. No quadro que se tem, a omissão estatal apenas acentuaria as desigualdades já existentes. A regulação visa, assim, fornecer condições a um ambiente de inclusão, onde todos tenham opções de acesso ao mercado e de gozo dos direitos humanos140, impondo às empresas privadas concessionárias que adequem seus interesses privados ao interesse coletivo.

Aceitando-se e defendendo-se a importância e necessidade da função redistributiva da regulação, especialmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil, é preciso identificar as medidas regulatórias que cumprem esse papel e analisar como estas influenciam no desenvolvimento de uma nação.

Constituem medidas regulatórias redistributivas, dentre outras, a imposição de obrigação de universalização do acesso e de investimentos mínimos em redes de infraestrutura, a política de regulação do preço dos serviços, com fixação de tarifas módicas que garantam o efetivo acesso e a imposição de tarifas diferenciadas conforme a capacidade econômica, que propiciam a redução das desigualdades entre os agentes do mercado e reduzem a concentração do poder econômico.

A obrigação de universalização do acesso ao serviço público é uma das mais importantes medidas do desenvolvimento de uma nação, que contribui para a redução e até mesmo eliminação da exclusão social, uma vez que os serviços públicos constituem aquelas prestações essenciais que satisfazem o mínimo necessário para uma existência digna.

A universalização dos serviços essenciais, aliada ao efetivo acesso, tem o condão de gerar consequências positivas que contribuem para o desenvolvimento humano, uma vez que o amplo acesso àqueles serviços permite o melhor desenvolvimento do ser

140 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras: a evolução do direito administrativo econômico.

humano, o que acarretará, no futuro, o desenvolvimento econômico através do incremento do mercado de trabalho com profissionais mais qualificados, permitindo que cada indivíduo contribua mais efetivamente para o meio em que vive.

Uma característica das privatizações dos serviços públicos nacionais é que, quando das concessões aos particulares, a rede de prestação daqueles não estava completamente formada e desenvolvida. Desse modo, a busca pela eficiência econômica contrapõe-se à necessidade de investimentos visando especialmente à ampliação da rede de infraestrutura para a universalização do serviço público.

No entanto, tais investimentos novos nem sempre são rentáveis, sendo preciso adequar o interesse privado dos concessionários ao interesse coletivo. Tratando-se de atividade desenvolvida pela iniciativa privada, as concessões de serviços públicos não podem deixar de ser financeiramente rentáveis, mas, por se apropriarem daquela de fatia da riqueza nacional que seria compartilhada por todos, deve haver contrapartidas por parte do concessionário.

Contudo, tal decisão não pode ser deixada ao arbítrio dos concessionários, cabendo ao regulador a tarefa de elaborar o planejamento para o setor, definir as metas de investimento, a forma de compensação financeira e de remuneração do serviço, inclusive instituindo políticas regulatórias redistributivas que, ao mesmo tempo em que possibilitam o lucro, imponham obrigações ao regulado, especialmente quanto à expansão da rede, ampliação do acesso, modernização dos serviços prestados, fixação de tarifas módicas, entre outras.

Salienta-se que investimentos em redes de infraestrutura por si só geram o incremento da economia, mas é também imprescindível a adoção de medidas que levem à redução das desigualdades.

Assim, outra espécie de medida regulatória redistributiva e que também permite o efetivo acesso aos serviços públicos essenciais é relativa à fixação das tarifas dos serviços públicos prestados por particulares.

O regulador deve fiscalizar as tarifas impostas aos usuários, através da intervenção contratual e do estabelecimento de parâmetros e prazos de reajustes, atendendo ao princípio da modicidade tarifária e à política de fixação de tarifas diferenciadas conforme a capacidade econômica dos usuários, não podendo deixar tal tarefa ao arbítrio do prestador.

É possível, portanto, que sejam estipuladas tarifas diferenciadas por faixa de renda ou fixado preço mínimo, tanto para evitar lucros excessivos quanto prejuízos que afastem investimentos, bem como a previsão de subsídios estatais, diante da essencialidade do

serviço e da necessidade de que este seja oferecido a todos, inclusive àqueles que não têm condições econômicas.

Tendo em vista o princípio da modicidade tarifária e considerando a finalidade de atendimento ao interesse coletivo, “é imperioso que o Estado assegure ao usuário a solução mais vantajosa. Isso significa o melhor serviço, através da menor tarifa possível”141. Por outro

lado, até para permitir novos investimentos que assegurem a universalização do serviço, o prestador deve ser remunerado adequadamente, observando-se, ao lado da modicidade, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

No entanto, em certos casos, a universalização da atividade é incompatível com o retorno financeiro pretendido pelo concessionário, como, por exemplo, a obrigação de instalação de redes de telefonia ou energia elétrica em favelas ou áreas rurais. Porém, o regulador pode ainda assim impor a obrigação contratual de atendimento, pois não se está a impor àquele uma obrigação que inviabilize a atividade econômica exercida, mas se está viabilizando o direito de acesso, que pode ser compensado com a previsão de tarifas razoáveis que remunerem adequadamente o serviço.

Outras medidas redistributivas de intervenção na economia, especialmente voltadas à redução das desigualdades entre os agentes do mercado e à concentração do poder econômico que atravanca o desenvolvimento podem também ser adotadas, como a instituição de pacotes de serviços mais simples e baratos para facilitar o acesso dos menos favorecidos financeiramente; a difusão da informação entre os participantes do mercado – agentes econômicos e consumidores; a sistematização e a fixação de parâmetros mínimos para atuação no mercado, a fim de torná-lo mais saudável e justo, garantindo a concorrência; o estabelecimento de condições para o cooperativismo entre os agentes do mercado e a maior participação popular, auxiliando o regulador na formulação de melhores políticas regulatórias, assegurando ainda maior efetividade para as decisões do regulador e permitindo que as partes descubram a opção que gera maior proveito social142.

Porém, já se afirmou haver, na atuação regulatória do Estado, uma tensão entre eficiência econômica e justiça social, ou seja, “quanto mais se buscar a realização de igualdade ou justiça social, mais sacrifício de eficiência econômica (produtividade,

141 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002,

p. 326.

142 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e desenvolvimento. In:______ (coord.). Regulação e

empreendedorismo, disposição para o trabalho, por exemplo) haverá como efeito colateral indesejável”143.

No entanto, conforme afirma Sen, a relação entre economia e ética é intrínseca e o bem-estar da coletividade somente pode ser atingido por meio da aplicação da justiça distributiva144.

Para Coutinho, há perdas naturais decorrentes da redistribuição, consistentes nos custos administrativos inerentes à política regulatória, agravados no caso brasileiro pelos problemas da Administração Pública, como a corrupção e a burocracia, nem sempre gerando apenas resultados positivos.

Contudo, a solução é entender que esses custos impostos aos particulares são inerentes à função social dos serviços públicos, devendo ser absorvidos por aqueles que se apropriam da execução de serviços cuja titularidade é estatal e que estão vinculados ao atendimento dos direitos humanos, sendo a política regulatória redistributiva a única apta a garantir condições de acesso a determinado serviço público e a atender à justiça social.