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3 FACES POÉTICAS DO FEMININO

3.1 REGULADA

A primeira Performance artística, criada em minha pesquisa de mestrado, foi continuidade de um processo anterior ao meu ingresso na pós-graduação: a Performance Diane, realizada quando eu era aluna de Iniciação Científica no LAPARC. Diane surgiu durante as reuniões do grupo, no primeiro semestre de 2016, quando houve um enfoque maior no aprofundamento teórico acerca da Performance, compreendendo suas características e especificidades. Esse estudo inicial teve o intuito de proporcionar embasamento para que, posteriormente, fossem desenvolvidas práticas artísticas. Desse modo, com um maior domínio acerca dos teóricos da Performance, cada um de nós, integrantes do laboratório, foi instigado a criar Performances a partir de questionamentos e inquietações pessoais. Assim, ao buscar alguma questão que me instigasse, elegi a pílula anticoncepcional como elemento norteador de minha pesquisa. Com essa criação, propus questionar em que momento a pílula anticoncepcional deixou de ser uma libertação para tornar-se mais uma imposição à mulher.

A partir deste estímulo inicial, comecei a busca por informações sobre o uso de pílulas anticoncepcionais e, assim, fui à procura de leituras que abordassem o tema e embasassem a criação. Foi então que, lendo a reportagem “Por que as mulheres estão abandonando a pílula anticoncepcional?” (2016), tive acesso a estudos que apontaram a pílula anticoncepcional oral

combinada como sendo, nacionalmente, o método contraceptivo mais consumido por mulheres. Assim, meus estudos me levaram a entendimentos históricos, fisiológicos e culturais sobre o tema, contribuindo para minha construção poética.

O surgimento desse contraceptivo está diretamente ligado à história da liberação sexual e feminista, na década de 1960. Apesar da associação da pílula ao empoderamento feminino, o texto supracitado aponta que há uma tendência, que segue na contramão deste pensamento. Muitas mulheres têm deixado de consumir pílulas anticoncepcionais e buscado outros modos de contracepção. Essa atitude justifica-se pelos malefícios que podem vir a ser causados pela pílula no organismo de quem as consome.

Aqui recaio, primeiramente, sobre aspectos fisiológicos da questão. Entre alguns dos fatores que motivam a procura por outros métodos contraceptivos, leva-se em consideração os casos de mulheres que sofreram Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou trombose em decorrência do uso do anticoncepcional. Essas complicações de saúde são motivadas pelo fato de que “hormônios presentes nos anticoncepcionais orais podem alterar a circulação de diferentes formas, aumentando a viscosidade do sangue, a dilatação dos vasos e, por consequência, a coagulação”, como explica Guimarães (2016) na reportagem “Como fui parar na UTI por causa de pílula anticoncepcional”. Ainda sobre o assunto, o jornalista apresenta o trecho de um estudo publicado na revista especializada BMJ Today, no qual consta que consumidoras de pílulas anticoncepcionais da chamada terceira geração, ou seja, as mais recentes (com drospirenona, desogestrel, gestodeno e ciproterona), possuem risco quatro vezes maior de sofrer trombose venosa do que mulheres que não tomam a pílula. Devo ressaltar aqui que, com esse trabalho, não tive o intuito de condenar o uso da pílula anticoncepcional, mas de destacar a tomada de consciência sobre o uso deste medicamento.

Em Diane, a partir desta reflexão, procurei abordar em Performance os efeitos fisiológicos e, consequentemente socioculturais que este medicamento pode causar, tendo em vista possíveis contraindicações e reações adversas. No que se refere aos aspectos culturais, esta busca interessou-me, ainda, na medida em que abarca também a discussão sobre a responsabilidade compartilhada pela contracepção. Ou seja, onde está, de fato, a responsabilidade compartilhada? Mesmo que ela exista, quem é mais afetado?

Quando as Performances de cada membro do laboratório encontravam-se ainda em fase inicial, elas foram compartilhadas com o grupo que, como um todo, colaborou para a construção das obras através de trocas, impressões, sugestões e dúvidas. Enquanto uma Performance era apresentada, o restante do grupo funcionava como um olhar externo atravessado por suas próprias experiências sensíveis. Este olhar, por sua vez, também atravessou a obra em suas

organizações poéticas construídas em relação aos questionamentos propostos. Dessa maneira, a abordagem estética, os elementos formais selecionados e suas ações performativas foram se transformando em decorrência destas interferências.

Com a proposta performática estruturada escolhi o título Diane (Figuras 15 e 16), em referência a uma marca muito conhecida de anticoncepcionais. Minha ideia era que a Performance desdobrasse-se em outras que levariam outros nomes femininos do medicamento. A escolha por nomeá-las assim deu-se tanto em alusão às pílulas quanto àquelas que as consomem e, muitas vezes, sofrem com seus efeitos psicofísicos. A Performance foi apresentada pela primeira vez no dia 26 de outubro de 2016, durante o II Colóquio Internacional Ética, Estética e Política na UFSM e pela segunda vez no IX Congresso da ABRACE - Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, em novembro do mesmo ano.

Na obra em questão, encontro-me sentada no chão portando cartelas de anticoncepcionais cheias e uma bula do remédio (Apêndice A) no colo. Uso um vestido delicado, branco e rosa, e estou maquiada com um batom, também rosa. As cores fazem referência às embalagens do medicamento e remetem ao estereótipo da cor rosa relacionada ao universo feminino. Ao longo dessa ação performativa, vou retirando as pílulas das cartelas, uma a uma lentamente, até esvaziá-las. A cada cartela terminada, pronuncio um trecho da bula que apresenta contraindicações e riscos que podem vir a ser causados pelo medicamento. Ao fim da Performance, estou aprisionada dentro de um contorno quadrado formado por pílulas e cartelas vazias.

Figura 15 – Performance Diane apresentada durante IX Congresso da ABRACE (2017)

Fonte: Letícia Nascimento Gomes.

Figura 16 – Performance Diane apresentada no II Colóquio de Ética, Estética e Política da UFSM (2016)

Todo esse processo, calcado no estudo dos malefícios psicofísicos e socioculturais do medicamento até a criação e apresentação da obra, afetou-me, tendo em vista o fato de eu também ter sido uma consumidora precoce da pílula anticoncepcional. Além disso, havia também o fato de eu possuir contato com mulheres que tiveram suas vidas afetadas negativamente em virtude do uso de pílulas anticoncepcionais. Nesse contexto, passei a frequentar reuniões com mulheres que, assim como eu, percebiam seus efeitos negativos e buscavam outros métodos contraceptivos, aprofundando-me no estudo dessas questões.

Ainda que a Performance descrita tenha sido desenvolvida anteriormente ao meu ingresso no mestrado em Artes Visuais, notei o quanto ela já contribuía com a investigação proposta no mestrado e reverberou em escolhas que fiz na pós-graduação. Mesmo não se resumindo a um momento tão específico do corpo feminino, como futuramente em Rubra

Fluidez e Mãe, quando abordo a questão do uso do anticoncepcional como método

contraceptivo, acabo evidenciando um grupo de mulheres que se encontram em um período fértil, optando por evitar uma possível gravidez. Os efeitos socioculturais atrelados aos efeitos na saúde aparecem interconectados nas Performances, não como consequências lineares ou causais, mas como elaborações socioculturais que vão constituindo este ser feminino inserido em um contexto protagonizado pelo universo masculino.

Foi compreendendo a obra Diane como parte do seu processo criador que desenvolvi a Performance intitulada Yasmin, realizada no início da minha pesquisa na pós-graduação. Nesta etapa, as reflexões iniciais já constituíam o elemento disparador das questões levantadas. Esta obra representa o momento em que eu interrompi o uso deste método contraceptivo evidenciando novamente a presença da autoetnografia na pesquisa. Assim, reconheço e assumo que estou inserida neste contexto feminino, contemporâneo, urbano, ocidental, capitalista, enfim.

Yasmin (Figura 17) foi apresentada no dia 29 de abril de 2017, na sala Carriconde no

CAL, durante o evento PerformAções Artísticas. Na nova Performance, mantive a leitura dos efeitos colaterais descritos na bula do medicamento. Contudo, ao invés de me trancar com as pílulas ao meu redor como na primeira, várias cartelas vazias foram penduradas e enfileiradas, enquanto somente uma, a última da fila, permanecia cheia. Durante a Performance, caminho lentamente lendo a bula, passando pelas cartelas que tocavam o meu corpo, uma a uma até que no final, paro diante daquela que está cheia. Novamente, os efeitos colaterais são verbalizados. A fala acelera, as frases são repetidas, algumas com maior ênfase, tornando-se mais densas até que a última cartela é envolvida com a bula, amassada e jogada no lixo.

Figura 17 – Performance Yasmin apresentada no evento PerformAções Artísticas, UFSM (2017)

Fonte: Liana Cunha.

Devido à aproximação com minhas vivências pessoais, a realização da Performance foi uma experiência muito intensa. Com o transbordar dessas vivências, a escrita poética foi emergindo em meus registros no diário de bordo, como no poema que trago aqui. Compreendo sua escrita como parte da obra, uma vez que o escrevi como consequência da Performance, fazendo-me visualizar melhor os atravessamentos do tempo na obra em questão.

Das luas que nos enfiam goela abaixo Inicio a cartela no domingo, 22h. Todos os dias às 22h uma pílula.

Vinte e um dias, todos os dias às 22h uma pílula. Pausa de sete dias.

Volta domingo, volto a contar. Às 22h, com quinze anos. Às 22h, com vinte e um.

Acabam os sete dias, volta domingo. Não tomo.

Por seis anos medi o tempo esvaziando cartelas de anticoncepcional Um tempo contado em quadrados.

Um ciclo de linhas retas cor-de-rosa. Da adolescência ao início da vida adulta. Contando.

Ainda assim, não estava satisfeita, pois ainda sentia que não havia chegado aonde gostaria com esse trabalho. Tanto Yasmin como Diane foram trabalhos que tiveram muito mais importância como experimentações do que como “obras de fato”. Independente de um suposto valor artístico, essas Performances foram fundamentais ao longo do meu trabalho e hoje as visualizo como esboços da Performance que eu viria criar já no fim do mestrado, intitulada

Regulada. Apesar dessas inquietações serem anteriores a minha entrada na pós-graduação, a

Performance em questão só foi finalizada no final do segundo ano no mestrado, o que mostra o amadurecimento que essa discussão ganhou ao longo de mais de dois anos.

Desde que comecei a criar, motivada por essas questões do universo feminino, já possuía o desejo de desenvolver uma visualidade que mostrasse meu corpo tomado por pílulas, imerso em várias embalagens de anticoncepcional. Mesmo que por um determinado período de tempo eu tenha deixado de lado o enfoque nas questões suscitadas pelas Performances Diane e Yasmin, segui recolhendo embalagens (cartelas cheias ou vazias, caixas e bulas) de anticoncepcionais. Minha proposta era acumulá-las em grande quantidade para aprofundar minha criação artística a ‘partir do volume significativo dessas materialidades.

Depois de experimentar algumas possibilidades, optei por criar figurino e maquiagem a partir desse material reunido (Figuras 18 e 19). Gosto muito de pensar sobre como se deu esse processo artístico e nas suas especificidades em relação aos outros desenvolvidos ao longo da pesquisa. Todo meu envolvimento com a criação do figurino permitiu que eu me apropriasse ainda mais do processo, uma vez que fui eu quem desenhei o modelo, escolhi o tecido, apliquei as embalagens e confeccionei a coroa. Reunir esse material gradativamente, mais uma vez

contando com a colaboração de muitas mulheres, permitiu com que as ideias fossem de moldando, dançando e amadurecendo.

Figura 18 – Trecho do diário de bordo com esboço do figurino de Regulada

Fonte: diário de bordo.

Figura 19 – Figurino e maquiagem da Performance Regulada

Em Regulada mantive a leitura da bula, elemento presente nas Performances anteriores. Entretanto, ela deixou de ser feita por mim e passou a ser realizada por homens. Fez mais sentido, para mim, ter a voz masculina presente em cena para demarcar uma opressão patriarcal. A partir desse pensamento, optei, pela primeira vez, ao longo da pesquisa, em não fazer uma Performance solo, convidando quatro performers homens para constituí-la.

Na Performance (Figuras 20, 21, 22, 23 e 24), os homens trajam roupa social para simbolizar essa figura masculina, branca e heterossexual detentora do poder. Eles seguram uma bula, que mais se parece com um pergaminho, devido ao seu tamanho. Os performers mantêm distâncias iguais entre si, formando um quadrado. Minha movimentação é mecânica e ritmada, ando como se fosse uma boneca de corda, como uma figura manipulável. Transito em sentido horário pelas arestas invisíveis desse quadrado. Horário, pois aqui o tempo é do relógio e as limitações, mesmo quando não são aparentes, reduzem escolhas e possibilidades. Nesse caminhar, vou de um performer ao outro enquanto falo repetidamente meu texto10, uma

adaptação do poema criado após a Performance Yasmin. A cada volta finalizada, os performers dão um passo para dentro, diminuindo o tamanho do quadrado. Também a cada volta finalizada, um deles inicia a leitura dos efeitos colaterais e contraindicações, até que os quatro estejam falando simultaneamente. À medida que o espaço se reduz, o volume de suas vozes aumenta, limitando minha movimentação e abafando minha fala. Ao final, minha voz se torna inaudível. As bulas cobrem meu rosto, como se me sufocassem. Já não consigo mais me movimentar. É assim que os quatro performers conduzem-me para fora do espaço sem cessar a leitura das bulas.

Nossa disposição espacial, bem como o modo que nos movimentamos, colaboram para instaurar um ambiente opressor e sufocante que vai reduzindo minhas possibilidades de escolha e expressão. Ao meu ver, é como se a medicalização deste ciclo do corpo feminino, quando feita de modo exagerado, sem necessidade ou consciência sobre, fizesse com que ele deixe de ser algo circular para ganhar uma formatação rígida e quadrada. Em Regulada, os homens dão corpo a esses efeitos descritos fazendo com que eu sucumba a eles.

10 Inicio a cartela no domingo, às 22h.

Todos os dias às 22h uma pílula.

Vinte e um dias, todos os dias às 22h uma pílula. Pausa de sete dias.

Volta domingo, volto a contar.. Às 22h, com quinze anos. Às 22h, com vinte e três.

Figura 20 – Performance Regulada apresentada na Maratona 40 - CAL - UFSM (ago. 2018)

Fonte: Dartanhan Baldez Figueiredo.

Figura 21 – Performance Regulada apresentada na Maratona 40 - CAL - UFSM (ago. 2018)

Figura 22 – Performance Regulada apresentada na Maratona 40 - CAL - UFSM (ago. 2018)

Fonte: Dartanhan Baldez Figueiredo.

Figura 23 – Performance Regulada apresentada na Maratona 40 - CAL - UFSM (ago. 2018)

Figura 24 – Performance Regulada apresentada na Maratona 40 - CAL - UFSM (ago. 2018)

Fonte: Dartanhan Baldez Figueiredo.

Ao pensar no corpo feminino, nos seus ciclos e nas medidas do tempo, fui amadurecendo as próximas Performances. A partir da discussão sobre o consumo de anticoncepcionais, passei a visualizar os ciclos menstruais como um caminho poético para abordar a passagem do tempo no universo feminino. Desta forma, com meus caminhos artísticos mais delimitados, direcionei meu foco investigativo aos momentos dos ciclos femininos escolhidos: a menarca e a gestação (que depois se ampliou também para o parto e puerpério). Acredito que esse foi um momento de amadurecimento do trabalho. As partes que pareciam desconexas, uma vez que eram investigações independentes, tornaram-se indissociáveis e reconheci a pesquisa como uma coisa só.

Considero que é preciso ser cuidadosa para evitar descontextualizações e distorções sobre a investigação artística proposta aqui. No Brasil, recentemente foi apresentado um projeto de lei - (PL) 261/2019 - propondo a proibição de alguns métodos contraceptivos, compreendidos pelo deputado em questão como abortivos. O projeto causou muita repercussão e, felizmente, não foi levado adiante. Em um cenário político no qual propostas retrógradas ganham cada vez mais espaço, é preciso que haja cautela ao abordar determinados temas.

Penso também que é preciso haver cuidado em relação aos lugares que levo esse trabalho, ou como fazê-lo. Por exemplo, criticar o consumo de pílulas anticoncepcionais para adolescentes sem nenhum tipo de discussão mais aprofundada poderia ser uma irresponsabilidade, uma vez que em determinados contextos o método pode se apresentar como uma alternativa mais viável para evitar gravidezes indesejadas. Como mencionei anteriormente, a questão não está em condenar o consumo desse medicamento, mas em trazer uma reflexão sobre o assunto. O controle sobre o próprio corpo e, consequentemente, sobre a contracepção, é, ou ao menos deveria ser, um direito da mulher. Sendo assim, não há como negar que a pílula ocupou e continua ocupando um papel fundamental em muitos contextos socioculturais.

Entretanto, há que se pensar sobre os efeitos psicofísicos negativos aos quais muitas consumidoras do remédio estão sujeitas. Desta maneira, ao levar em consideração o acesso a esse medicamento, reconheço ainda, que mulheres inseridas em contextos econômicos menos favorecidos não têm acesso a pílulas anticoncepcionais de mesma qualidade que a de mulheres inseridas em contextos econômicos mais favorecidos. Isso considerando apenas aquelas que têm acesso.

Ao retomar a questão da responsabilidade da contracepção compartilhada com o homem, pergunto-me, ainda, por que são apenas as mulheres que devem se submeter a esse tipo de agressão aos seus corpos. Refletir sobre o consumo de pílulas anticoncepcionais é também uma forma de refletir sobre mecanismos machistas, que afetam diretamente os corpos femininos. Sei que só em levantar essa discussão, já ocupo uma posição de privilégio em relação a muitas mulheres. Quando olho para a experiência que foi eu deixar de consumir esse medicamento, penso o quanto me informei nesse processo e em todas as pesquisas que realizei. Essa escolha exigiu que eu adquirisse mais consciência sobre meu corpo, estudasse sobre meu ciclo, enfim, tivesse acesso a outros conhecimentos que muitas mulheres não têm - assim como eu não tinha quando comecei a tomar a pílula com quinze anos.

Ao longo da elaboração de Regulada, entrei em contato com a pesquisa de Daniela Tonelli Manica (2003), em que a autora propõe estudar algumas concepções sobre a menstruação, bem como sua supressão, baseando-se, sobretudo, em falas de ginecologistas e pacientes. Esse estudo antropológico foi muito importante para refletir mais profundamente sobre questões culturais atreladas ao corpo da mulher, especificamente em relação à menstruação e aos métodos contraceptivos femininos. Ao mesmo tempo, esta leitura também contribuiu significativamente para que eu percebesse a conexão entre as Performances, uma vez que questões referentes à menarca, gravidez e consumo de pílulas anticoncepcionais estão muito relacionadas e encontram eco umas nas outras.

Neste contexto, a autora discorre sobre como os conceitos de natureza e cultura se fazem presentes nestes discursos. A partir dessas diferentes perspectivas, a pesquisadora mostra como a menstruação desperta sentimentos ambíguos nas mulheres, assim como faço em Rubra

Fluidez. Enquanto algumas a veem como algo ruim, dolorido ou desconfortável, enfim, um

incômodo; outras a sentem como um alívio, uma limpeza do corpo (MANICA, 2003, p. 14). Além disso, as visões médicas sobre a menstruação e interferências hormonais sobre ela também são bastante divergentes.

Manica inicia suas reflexões dando um panorama histórico da criação do anticoncepcional. Ela coloca que “até o crescimento demográfico configurar-se como um problema social (para os estudos de população, movimentos de controle de natalidade e eugênicos), as pesquisas com contraceptivos hormonais não haviam encontrado um contexto ideal para o seu desenvolvimento” (OUDSHOORN, 1990, p. 115 apud MANICA, 2003, p. 8). Uma questão muito interessante exposta, ao longo de sua escrita, foi como o desenvolvimento das pílulas contraceptivas foi afetado e influenciado por questões de ordem moral e cristã.

Quando se trata da sexualidade feminina, é muito difícil que não haja atravessamentos religiosos. Um exemplo disso foi a preocupação dessas pesquisas em manter os ciclos com o sangramento mensal. Essa preocupação foi uma escolha que visava aproximar-se de algo mais natural, buscando interferir o mínimo possível naquilo que se entendia como natureza da mulher e, portanto, a vontade de deus. Assim, configurou-se a forma mais comum de se consumir pílulas: tomando o medicamento por vinte e um dias, com sete de pausa até iniciar a próxima cartela.

A autora coloca a indústria farmacêutica como um aspecto importante para estudar o tema detendo-se na análise de folhetos de contraceptivos distribuídos por laboratórios farmacêuticos. Além disso, em seu estudo, ela relata sua ida a dois congressos de ginecologia e obstetrícia, ambientes em que muitos desses laboratórios se faziam presentes. De acordo com Oushoorn (1990, p. 109 apud MANICA, 2003, p. 31), “os estudos dos hormônios sexuais femininos acabaram desenvolvendo-se em uma grande ciência e um grande negócio”. Ainda

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