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2 INSTAURADORES DA CRIAÇÃO

2.2 TEMPO E MEMÓRIA

No decorrer da história, as concepções do tempo têm sido muito discutidas e modificadas por diferentes pensadores. Portanto, muitas foram as teorias e estudos criados acerca deste tema, transcendendo a linearidade das antigas abordagens cronológicas. Paralelamente a esses estudos, minha poética perpassa por uma perspectiva cronológica devido ao modo linear com que abordei os ciclos do corpo feminino, respeitando a ordem em que se vivem esses momentos. Simultânea a isso, a não linearidade dos atuais estudos sobre o tempo afetaram a abordagem cronológica da minha poética, contribuindo para a elaboração de um pensamento subjetivo acerca do tempo. Assim como Minato (2014, p. 18), compreendo-o como uma “construção social, na medida em que quando o habitamos [o tempo] somos simultaneamente habitados por ele”.

Entre as tantas possibilidades e caminhos para abordar esse assunto, trago para discussão o livro Tempo e Narrativa, do filósofo francês Ricoeur (1994). Em sua obra, o autor inicia apresentando o pensamento dos filósofos Santo Agostinho e Aristóteles. Assim, ele expõe as inquietações do filósofo cristão diante do tempo e seus paradoxos, como fica evidente em sua conhecida frase: “que é, pois, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei” (AGOSTINHO, 1964 apud RICOEUR,1994, p. 23). Já o filósofo grego Aristóteles, que viveu séculos antes dele, dedicou-se a discutir aspectos relacionados a intriga (narrativa) através de uma busca mais arbitrariamente racional e com menos espaço para dúvidas, diferentemente do modo como Agostinho conduziu seus estudos sobre o tempo. Ricoeur, então, estabelece uma relação entre os pensamentos de ambos filósofos que, em um primeiro momento, parecem destoantes entre si. A partir daí, o autor consegue entrelaçar Tempo e Narrativa como justifica em sua escrita:

Chegou o momento de ligar os dois estudos independentes que precedem e pôr à prova nossa hipótese básica, qual seja, a de que existe, entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da existência humana, uma correlação que não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural (RICOEUR, p. 85, 1994).

Neste contexto, Ricoeur visualiza, no conceito de mythôs – compreendido como a formação de uma estrutura de sentido para a construção da narrativa –, uma forma de possibilitar tornar o tempo apreensível. Assim, entende-se que só se apreende o tempo e torna sua experiência com ele significativa por meio da narrativa. Ou ainda, segundo as palavras do autor, “o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal” (RICOEUR, 1994, p. 15).

Assim, afino-me com o pensamento do autor de que mesmo o tempo humano não possa ser definido, é possível apreendê-lo na medida em que o ser humano coloca-se a narrar sua(s) história(s). O pensamento de Ricoeur encontra eco nas falas de Beauvoir sobre a velhice. A autora escreve que essa fase da vida é “uma dimensão existencial: modifica a relação do indivíduo com o tempo e, portanto, sua relação com o mundo e sua própria história” (BEAUVOIR, 1990, p. 15). Ainda para pensar acerca da experiência do tempo, ela segue afirmando que é

o passado que define minha situação atual e sua abertura para o futuro; ele é o dado a partir do qual eu me projeto, e que tenho de ultrapassar para existir. (...) Eu conservo, do passado, os mecanismos que se montaram no meu corpo, os instrumentos culturais de que me sirvo, meu saber e minhas ignorâncias, minhas relações com outrem, minhas ocupações, minhas obrigações (BEAUVOIR, 1990, p. 459).

Do mesmo modo, ao buscar explorar a passagem do tempo em meu trabalho, vejo-me construindo minhas linhas narrativas. É por meio da narrativa conduzida por fases da vida da mulher, as quais nomeio como ciclos do corpo feminino, que penso o tempo para desenvolver minha obra artística. Muito mais que uma definição ou algum tipo de conclusão sobre o assunto, interessou-me ouvir das mulheres com quem estive em campo como se dá a relação delas com o tempo a partir dos elementos por mim selecionados. Assim, tempo e feminino são costurados subjetivamente pelas experiências dessas mulheres refletindo questões e influências socioculturais.

Ao longo de meu percurso acadêmico no mestrado, compreendi que minha poética sobre o tempo dava-se, consideravelmente, a partir de uma perspectiva da memória. Mais do que trabalhar com um conceito específico, interessei-me pela experiência do tempo relatada nas memórias de outras mulheres. A partir dessa visão subjetiva, a leitura de Memória e Identidade, de Candau (2016), tem colaborou para sustentar meus estudos ao relacionar dois termos tão presentes na pesquisa. De acordo esse autor, a perda da memória é também a perda da identidade (p. 59), uma vez que “através da memória o indivíduo capta e compreende

continuamente o mundo, manifesta suas intenções a esse respeito, estrutura-o e coloca-a em origem (tanto no tempo como no espaço) conferindo-lhe sentido” (CANDAU, 2016, p. 61). Para mim, essa citação expressa muito o modo como os relatos têm evocado momentos de vida das mulheres que participaram desse processo, os quais contribuem para a elaboração de suas identidades femininas.

Assim, ainda pensando sobre questões referentes à memória, compreendo o fato de que a lembrança diferenciar-se do acontecimento passado, ela é viva e, portanto, dá vida a ele. Na psicanálise, por exemplo, interessa sempre a história atualizada. De acordo com Minato (2014), a memória que constrói a história de um sujeito não é uma simples acumulação de recordações, mas a revivência de uma trama de sequências significativas, ou seja, de acontecimentos com a possibilidade de produzir efeitos de sentido no presente (MINATO, 2014, p. 35). Assim sendo, a recordação é elaborada a partir do momento presente, é “uma imagem (imago mundi), mas que age sobre o acontecimento (anima mundi), não integrando a duração e acrescentando o futuro do passado” (CANDAU, 2016, p. 67). Baseando-se nesse entendimento, Candau visualiza que a ação de recordar permite reunir passado, presente e futuro, compreendidos como três dimensões temporais. Esse pensamento daria conta de responder às interrogações aristotélicas e agostinianas que habitavam o questionamento desses autores: “pode o tempo ser, se o passado já não é, se o futuro ainda não é e se o presente não é sempre?” (RICOEUR, 1994, p. 23).

Em sua escrita, Candau (2016) inicia classificando a memória em três categorias: a memória de baixo nível (protomemória); memória propriamente dita ou de alto nível; e a metamemória. A primeira diz respeito aos “costumes introjetados no espírito ‘sem que neles se pense’ ou sem que disso se duvide” (CANDAU, 2016, p. 22). Um exemplo apresentado pelo autor são as técnicas corporais, consequentes de um processo de maturação decorrente de várias gerações. Nesse sentido, ouso relacionar com o entendimento de Schechner sobre a Performance, especialmente a partir da ideia de “comportamento restaurado” (SCHECHNER, 2006, p. 30). Aqui, enfatizo que esse autor não se debruça acerca da Performance Arte especificamente, mas aos Estudos da Performance9. De acordo com Schechner,

comportamentos restaurados dizem respeito a

9 Os Estudos da Performance referem-se a um campo de estudo interdisciplinar que nasce na década de setenta

trazendo a “abertura de um imenso campo experimental que transcendia os limites do conhecimento sociológico, através da absorção de insights e informações proporcionadas pelas diversas contribuições do domínio das ciências sociais, sejam da antropologia, da etnografia, etnometodologia, do interacionismo simbólico, das Artes em geral, da etnomusicologia, da psicanálise e da arquitetura etc” (TEIXEIRA, 2006, p. 40).

ações físicas, verbais ou virtuais, que não são pela primeira vez, que são preparadas ou ensaiadas. Uma pessoa pode não estar ciente que ele ou ela desenvolve uma porção de comportamento restaurado. Também conhecido como comportamento duas vezes vivenciado (SCHECHNER, 2006, p. 30).

Ou seja, a partir dessa visão, compreende-se que os comportamentos humanos são restaurados, desde um aceno de mão ao manuseio de talheres para comer. O ser humano tem certos hábitos tão introjetados que nem se reflete sobre eles, quase como se os herdasse. Por isso, visualizei a aproximação com o entendimento de Candau sobre o que se trataria da memória de baixo nível.

A segunda categoria de memória, a memória propriamente dita ou de alto nível, é referente a recordação ou reconhecimento, relacionada a saberes, crenças, sensações, sentimentos, entre outros. Ela diz respeito às lembranças autobiográficas (CANDAU, 2016, p. 23). Por fim, a terceira categoria é a metamemória, que se trata da “representação que cada indivíduo faz de sua própria memória, o conhecimento que tem dela e, de outro, o que diz dela” (CANDAU, 2016, p. 23).

Ao inserir essas categorias em meus estudos, visualizei a protomemória nas noções de “ser mulher” que surgiram nas falas como um reflexo do habitus a partir de imposições, costumes, tradições – elementos que de certo modo ensinam como elas devem se sentir ou não, agir ou não, ser ou não. De acordo com Candau, “o habitus como experiência incorporada é uma presença do passado – ou no passado –, e não a memória do passado” (2016, p. 23). Por sua vez, na pesquisa de campo, visualizo a memória das mulheres, propriamente dita, sendo estimulada por meu conhecimento. Por fim, a metamemória, é a elaboração das narrativas descritas pelas mulheres com quem entro em contato, portanto, refere-se ao modo como elas comunicam-me e como essas recordações chegam até mim em suas falas. Assim, nesse processo pude ver como essas três categorias estão imbricadas e se relacionam entre si continuamente.

Em sua escrita, Candau ainda se detém a falar sobre o conceito de identidade e memória coletiva. Ao refletir sobre como construir uma identidade coletiva, o filósofo sugere que o termo seja “usado em um sentido menos restrito, próximo ao de semelhança”, como um uso “metafórico representativo” (2016, p. 25). Em meu estudo, a noção de coletividade, tanto em relação à memória quanto em relação a identidade, é importante para que se pense acerca do ser e compreender-se mulher. Nessa investigação, ao delimitar um público feminino, considerei questões identitárias que refletem memórias comuns compartilhadas por um grupo específico.

Nesse contexto, Candau (2016) escreve que é difícil que se pense em um grupo como um todo, aproximando-se do pensamento de autoras feministas interseccionais, como Ribeiro (2017) e Davis (2017), citadas anteriormente. Ou seja, mesmo havendo um recorte de gênero, por exemplo, é preciso que se evite a universalização da categoria mulher. Assim, em sua escrita, o autor sugere que é importante que os estudos se deem por meio de recortes compreendendo tanto a proto quanto a metamemória, como é o caso das teses situacionais (CANDAU, 2016, p. 27). Esse modo de trabalho evidencia as sutilezas na construção das identidades e sustenta a ideia de que elas

não se constroem a partir de um conjunto estável e objetivamente definível de ‘traços culturais’ – vinculações primordiais – mas são produzidas e se modificam no quadro das relações, reações e interações sociossituacionas – situações, contexto, circustâncias – de onde emergem os sentimentos de pertencimento, de “visões de

mundi identitárias e ou étnicas” (CANDAU, 2016, p. 27).

Nesse contexto, relembro o valor da experiência a partir das memórias compartilhadas por essas mulheres abordando a identidade de um grupo a partir de relatos individuais. Ao refletir sobre a pesquisa de campo, é interessante pensar que “a transmissão está (...) no centro de qualquer abordagem antropológica da memória. Sem ela, a que poderia então servir a memória?” (LOUIS-JEAN apud CANDAU, 2016, p. 38). Apesar do método autoetnográfico carregar questões antropológicas, enfatizo, mais uma vez, que meus objetivos com essa pesquisa foram artísticos. Nesse contexto, é importante também pensar em como eu me relacionei com essas narrativas. Não tive o propósito de criar um distanciamento delas, por exemplo. Pelo contrário, relacionei-me com essas falas a partir de minhas vivências, minhas memórias. Em alguns momentos, nossas histórias de vida se misturaram, e, em vários deles, minha visão, muitas vezes reconhecidamente limitada, sobre determinados assuntos foi afetada e transformada. Sinto que isso me toca, sobretudo, por eu ser mulher, reforçando essa questão identitária. Quando fiz a escolha de buscar a criação de um trabalho mais plural, foi justamente para que mais mulheres conseguissem encontrar pontos de identificação com as Performances. Meu desejo foi e continua sendo de que minhas criações artísticas colaborem para que elas possam olhar para si mesmas ao também reconhecerem-se nessas histórias, abraçando e transbordando suas memórias. Enfim, espero que elas sintam ao menos um pouco do que eu senti ao longo desse intenso processo artístico vivido, que transborda na escrita do próximo capítulo.

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