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Rejeição da existência de passivas pronominais

No documento Tese de Doutoramento em Linguística (páginas 67-71)

CAPÍTULO I: A TIPOLOGIA DA ESTRUTURA PASSIVA EM PORTUGUÊS

1.3. A passiva pronominal

1.3.1. Rejeição da existência de passivas pronominais

Em línguas como o português, a passiva pronominal constitui um desafio interessante para a teoria sintática no que diz respeito à posição de sujeito e à verificação de Caso. Para tal contribui o padrão de concordância que surge nessas construções: o argumento interno pode desencadear a concordância com o verbo. Duarte (2003), por exemplo, considera essas estruturas como passivas, aproximando-as das construções inacusativas, em que o argumento interno recebe o Caso nominativo e ocupa a posição de sujeito.

Há, porém, outras construções com -se que se constroem com diferentes tipos de verbos (transitivos indiretos, inacusativos, inergativo, etc.) e ainda com verbos transitivos diretos que não apresentam concordância com o argumento interno: -se nominativo, em que o clítico absorve o Caso nominativo e o argumento interno o Caso acusativo. É portanto o padrão de concordância que se constitui como critério para a definição do tipo de construção: -se passivo (187) ou -se nominativo (188):

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(187) Vendem-se flores. (188) Vende-se flores.

Segundo Duarte (2003), trata-se de dois pronomes diferentes, na medida em que o –se passivo não é um argumento, mas o –se nominativo, sim. A análise atribuída a este –se passivo é a mesma que é usada para as construções inacusativas e restantes passivas: o argumento interno do verbo move-se para a posição de sujeito para receber o Caso nominativo.

Dentro do quadro teórico Minimalista, Raposo & Uriagereka (1996) propõem tratar construções como (187) como sendo construções ativas em que o SN argumento interno é um objeto que desencadeia concordância com o verbo e o clítico -se ocupa a posição de sujeito.

A justificação para afirmar que a estrutura em (187) não é passiva baseia-se na ideia de que o SN argumento interno não está na posição sujeito, nem ligado a uma categoria vazia nessa posição. Para explicar então a concordância, Raposo & Uriagereka (1996) recorrem à Teoria de Verificação de Traços (Chomsky 199936). Os autores

mostram ainda que o SN, quando se move da posição de objeto, vai ocupar uma posição na periferia esquerda da frase, uma posição de tópico. Raposo & Uriagereka (1996) apresentam argumentos nesse sentido, dos quais apresentaremos apenas alguns.

Em frases infinitivas complemento de predicados adjetivos, um sujeito lexical pode ocupar a posição pré-verbal, numa frase ativa (189) ou numa passiva (190). Já nas construções com –se indefinido, o SN só pode ocupar a posição pós-verbal (191), e não pré-verbal (192), o que parece indicar que o SN não está na posição de sujeito37:

(189) Vai ser difícil os tribunais aceitarem os documentos. (190) Vai ser difícil os documentos serem aceites.

(191) Vai ser difícil aceitarem-se os documentos. (192) * Vai ser difícil os documentos aceitarem-se.

Esta diferença que existe na construção com –se indefinido nas frases infinitivas não permanece nas encaixadas finitas: o SN pode aparecer numa posição pré-verbal tanto na passiva (193) como na construção com –se indefinido (194). No entanto, Raposo &

36 A edição por nós consultada é a portuguesa, mas a obra foi inicialmente publicada em 1995. 37 Os exemplos são de Raposo & Uriagereka (1996: 754).

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Uriagereka (1996: 755) mostram que, em frases encaixadas, é possível a presença de um tópico apenas em frases finitas e não em encaixadas infinitivas, como mostra (196):

(193) Vai ser difícil que os documentos sejam aceites. (194) Vai ser difícil que se aceitem os documentos.

(195) Vai ser difícil que esses documentos, o tribunal (os) possa aceitar. (196) *Vai ser difícil esses documentos, os tribunais aceitarem(-nos).

Outro argumento diz respeito às infinitivas complemento de verbos epistémicos em que o SN anteposto nas construções com –se indefinido não ocupa a posição de sujeito, mas antes uma posição de tópico, como mostram os contrastes seguintes38:

(197) Eu penso terem os soldados fuzilado os presos. (198) *Eu penso terem-se os presos fuzilado.

(199) Eu penso terem os presos sido fuzilados.

O exemplo (197) mostra que um SN sujeito pode ocorrer à direita do verbo auxiliar, que sobe para um núcleo acima de T. Por sua vez, o SN na construção –se indefinido não pode ocorrer nessa posição, mas o SN sujeito de uma passiva sim, como revela o contraste entre (198) e (199).

Raposo & Uriagereka (1996: 757) afirmam ainda que o SN pré-verbal os presos não pode ser um tópico em (198), uma vez não são permitidos tópicos em contextos infinitivos. Se o SN estiver em posição pós-verbal, as construções tornam-se aceitáveis, como se vê em (200) e (201):

(200) Eu penso terem sido fuzilados os presos. (201) Eu penso terem-se fuzilado os presos.

Os exemplos mostram que o SN argumento interno pode ocorrer na posição de objeto quer na construção passiva, quer na construção de –se indefinido.

Os autores referem-se ainda ao facto de os bare nouns só poderem ocorrer na posição de objeto e não na de sujeito em português europeu. Os exemplos (202) - (204) mostram esse contraste39:

(202) O Nestor compra salsichas no talho Sanzot. (203) * Salsichas são compradas no talho Sanzot.

38 Os exemplos são de Raposo & Uriagereka (1996: 756-757).

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(204) * Salsichas custam caro no talho Sanzot.

No entanto, os bare nouns podem ocorrer numa posição de tópico, quando ligam uma categoria vazia na posição de objeto, mas não na posição sujeito, como se vê em:

(205) Salsichas, o Nestor compra cv no talho Sanzot. (206) * Salsichas, cv são compradas no talho Sanzot. (207) * Salsichas, cv custam caro no talho Sanzot.

Assim, nas construções com –se indefinido, os bare nouns podem ocorrer na posição de objeto ou antepostos ao verbo:

(208) Vendem-se salsichas no talho Sanzot. (209) Salsichas, vendem-se no talho Sanzot.

Os argumentos que apresentámos são apenas alguns dos que Raposo & Uriagereka (1996) usaram para dar conta de que as análises anteriormente propostas para tratar a construção de –se como passivas não são adequadas. Os autores terão mostrado que, nestas construções, o SN não é um sujeito pleno, contrariamente ao SN das estruturas passivas e inacusativas.

Mais recentemente, Martins (2005) argumenta que o –se passivo que existia no Português Antigo deu origem a dois tipos de construções ativas com –se que se manifestam no português atual (com concordância e sem concordância), paralelamente a uma outra construção encontrada em alguns registos dialetais que apresenta dois sujeitos: um SN e o pronome –se. Esta diacronia é apresentada no quadro 5, adaptado de Martins (2005: 22):

Português antigo Pescam-se sardinhas... (passiva) Pesca-se sardinha... (passiva)

Português atual standard Pescam-se sardinhas... (ativa com concordância)40

Pesca-se sardinhas... (ativa sem concordância) Pesca-se sardinha... (ativa - ambígua)

Português atual não

standard A gente pesca(mos)-se sardinhas (ativa – duplo sujeito)

Quadro 5. Diacronia das construções com -se em Português Europeu.

Segundo Martins (2005), os dados dialetais corroboram o facto de a construção com –se (com concordância) ter uma estrutura ativa porque, nesta perspetiva, surge

40 “Under the proposed analysis of the standard Modern Portuguese agreeing se construction sentences

(…) represent an extension of the object-verb agreeing option (the pronoun se acting as the mediator in the agreement relation between the verb and the object).” (Martins 2005: 23).

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como o elo natural entre a passiva que ocorria no Português Antigo e a construção com duplo sujeito –se dialetal.

Como vemos, a ideia de estas construções com –se serem efetivamente frases passivas não reúne consenso entre linguistas. Os trabalhos de Raposo & Uriagereka (1996) e Martins (2005) comprovam-no. Esta autora recorre a dados dialetais para evidenciar a sua teoria. Eventualmente, dados de aquisição poderiam fornecer evidência interessante para este debate. Tal, não cabe, porém, no âmbito deste trabalho.

1.3.2. Resumo da secção

Nesta secção, demos conta da construção passiva pronominal, que é reconhecida por alguns autores como cabendo no âmbito das estruturas passivas, enquanto outros não reconhecem essa construção como passiva.

Se reconhecermos a passiva pronominal, assumimos que a função de sujeito é desempenhada pelo argumento interno do verbo, o que constitui uma característica essencial da passiva. Por sua vez, o –se passivo absorve o caso acusativo e a relação temática atribuída à posição estrutural de objeto direto.

No entanto, Raposo & Uriagereka (1996) e Martins (2005) não consideram estas construções pronominas como passivas, porque entendem que o argumento interno não está na posição sujeito, nem ligado a uma categoria vazia nessa posição.

No documento Tese de Doutoramento em Linguística (páginas 67-71)