• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 4 – Análises Gráficas

6. DENOMINACÕES TÉCNICAS UTILIZADAS NO TRABALHO

1.1. O MUNDO CODIFICADO DE FLUSSER

1.2.1 Relação texto-imagem

Es evidente que el libro no era sagrado porque estuviera decorado estéticamente, sino porque era el portador de un mensaje especial, ultramundano. (WALTHER e WOLF, 2005, p. 12).

Essa citação de Walther ilustra o poder místico dos manuscri- tos. Não só pelo material textual que carregavam, capaz de levar conhecimento às pessoas, mas também pelas suas iluminuras, que retratavam cenas e crenças de um mundo ainda pautado pela lógica religiosa. Cada imagem detalhada que brilhava so- bre o suporte acrescentava sentido ao material textual ao abrir uma nova dimensão para seus leitores, dependendo do grau de detalhamento e do repertório iconográico/cultural destes.

O estudo da relação entre texto e imagem dos manuscritos é abordado na tese de Paula (2008, p. 55), em que o autor discorre sobre o pensamento de Didi-Haberman, esclarecendo que a Sa- grada Escritura não era meramente para ser lida na Idade Média, pois o verbo “ler”, naquele período, poderia ser compreendido através de uma multiplicidade de sentidos, maior do que esta-

mos acostumados hoje em dia, ao sugerir uma ambiguidade de tais sentidos gerada pela inserção do ato de enxergar em meio à simples leitura textual.

Assim, podemos pressupor que a imagem iluminada, carre- gada de simbolismos, proporcionava uma interpretação múlti- pla daquilo que era lido/visto na página, induzindo também a ideia do místico/celestial:

O rigor simbólico encontrado no Evangelho de Henrique de Lion [4] produz um tipo de imagem cuja função não é ilustrar passagens do texto. As iguras iluminadas exercem função didática com poder de acrescentar sentidos à Es- critura. De certo modo, a “leitura” dessa imagem substitui a leitura das letras e pode até mesmo superá-la. Por exem- plo, um teólogo poderia supor que a estrela de Belém ali representada num espaço fora da moldura, mas que a tangencia, demonstra que o astro celeste que guiou os magos até o local do nascimento pode também ser enten- dido como a Luz Divina que transcende a nossa dimensão física, mas que, no momento do nascimento de Jesus, se teria manifestado como brilho sensível ao olho humano e, por isso, tangencia essa moldura, instrumento simbólico que separa as dimensões terrestre e celestial. Sem a ex- pressão visual da Escritura, essa dedução totalmente de- pendente da imagem, seria inviável. (PAULA, 2008, p. 55).

Figura 4

Ano 1185–1188 – Página do Evangelho de Henrique de Lion.

Cabe observar que, muitas vezes, essas imagens criavam nar- rativas e eram distribuídas de maneira linear nos manuscritos, es- tabelecendo uma unidade proporcional entre os elementos tex- tuais e imagéticos das páginas duplas, como nos mostra Araújo:

A relação imagem-texto e sua distribuição na página do códice, entretanto, não só era exclusiva desse suporte de escrita, como, na prática, constituiu a base e o modelo, seguidos até hoje, das construções de página em que se impõem tal relação. O próprio sentido da sequência iconográica em páginas duplas não era desconhecido nos escriptoria monacais: em um manuscrito do sécu- lo XI, hoje na British Library, observa-se que as grandes ilustrações, uma em cada página, abrangem pouco mais de dois terços das respectivas manchas; ademais, nesse caso houve particular cuidado com a simetria em clara consideração à unidade da página dupla, pois a ilustra- ção da esquerda situa-se na parte inferior da mancha e a da direita na parte superior, mas em proporções idên- ticas. Nota-se ainda que, embora em páginas distintas, a imagem à direita é continuação da que está na página par, e ambos os quadros, formando um conjunto perfei- to, ilustram o texto bíblico do encontro entre Jacó e Esaú. (ARAÚJO, 2009, p. 450).

Henderson (1972, p. 181) lembra nos de que o artista que iluminou uma passagem na Bíblia Anglo-Saxônica, Cotton MS. Claudius B IV [5], tinha completo domínio do uso da narrativa em imagens. Suas sequências ilustradas dos acontecimentos eram algo que hoje poderíamos interpretar como sendo quase cinematográico, pois indicava uma continuidade e total visuali- zação das situações relatadas no texto. Assim ele descreve essa iluminura da Bíblia:

À esquerda, no topo da pintura no fólio 51 aparece uma sétima igura deitada, e imediatamente após, dois ho- mens se encontram e se abraçam. No Gênesis, capítulo 33, lemos o seguinte relato do encontro entre Jacó e Esaú: “E levantou Jacó os seus olhos, e olhou, e eis que vi- nha Esaú, e quatrocentos homens com ele.” Jacó organiza suas mulheres e crianças em grupos defensivos, com o mais dispensável à frente para o caso de um ataque sú- bito. “E ele mesmo passou adiante deles, e inclinou-se à terra sete vezes, até que chegou a seu irmão. Então Esaú correu-lhe ao encontro, e abraçou-o, e lançou-se sobre o seu pescoço, e beijou-o…” As sete iguras deitadas são todas de Jacó, lançando-se por terra em sua aproxima-

ção servil do irmão. A última prostração ocorre “perto do irmão”, ilustrando literalmente o texto. A série inteira de ilustrações exprime acuradamente a sequência temporal e a localização do encontro para o qual todos os condu- tores de animais primeiramente se dirigiram, e para onde Jacó hesitantemente também se dirige. O local do encon- tro como lugar é acentuado ainda mais pela representa- ção da tropa de cavaleiros de Esaú, cavalgando em duas companhias da direita para a esquerda, desse modo con- frontando com a aproximação de Jacó, ilustrada na pági- na oposta, e com a aproximação das manadas, ilustrada nas páginas anteriores. O lugar de encontro entre Jacó e Esaú recebe, por assim dizer, uma real localização físi- ca, para o qual eles se encaminham de ambos os lados… (HENDERSON, 1972, p. 182).

Figura 5

Século XI – Página da Bíblia, Cotton MS. Claudius B IV.

Retirado de HENDERSON, 1972, p. 178-179.

É interessante observar que as iluminuras não são meras co- adjuvantes do texto, pois narram uma cena de maneira igurativa, oferecendo ao leitor uma maneira didática para se compreen der o assunto através da imagem. Também estabelece uma relação simbólica com a passagem, pois dramatiza a redenção de Jacó, ilustrando literalmente a sua ação perante o irmão.

Graicamente, os elementos (texto e imagem) não se mistu- ram, e a página dupla é composta com o equilíbrio simétrico entre eles, metaforizando a harmonia celestial.

A representação gráica das iluminuras, inspirada principal- mente pela lógica religiosa que permeava com grande força a cultura da época, será posta em questão e invertida ao longo do período que vai do inal do século XIX às primeiras déca- das do século XX. Nesse contexto, o trabalho de Jan Tschichold pode ser compreendido como ilustração exemplar da criação de um novo paradigma na representação gráica, que viria a estabelecer diálogos com as então emergentes culturas cientí- ica e industrial.