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CAPÍTULO 2. O CONTEXTO DAS DISPUTAS EM TORNO DO ABORTO

2.4 Relações do Movimento Feminista com o Estado

Scavone (2008) lembra que a história dos debates e das ações feministas em relação à descriminalização do aborto foi marcada por várias negociações políticas. Para a autora, “o percurso das políticas feministas para tratar do problema indica não só o poder das forças conservadoras em jogo como a vocação política do feminismo brasileiro para a negociação” (SCAVONE, 2008, p. 676). Na última década é possível observar uma aproximação do movimento feminista com o Estado.

A criação, em 2003, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), ligada à Presidência da República e com status de ministério, e as Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, em 2004 e 2007, expõem uma aproximação maior com o Poder Executivo do que a observada nos governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso (NOGUEIRA, 2013). Essa maior aproximação pode ter contribuído para a formação da Comissão Tripartite pelo presidente da República que discutiria a revisão da

legislação punitiva do aborto, e para outras iniciativas do Poder Executivo direcionadas ao avanço na questão do aborto.

Para Machado (2010), no início dos anos 2000, o movimento feminista brasileiro retomou suas demandas de descriminalização e legalização do aborto. Para a autora, dois eventos políticos foram de extrema importância para que o Executivo se empenhasse na revisão da legislação. Um deles foi a organização das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, em fevereiro de 2004. A partir da iniciativa da rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos formou-se uma rede de organizações não governamentais feministas que se articulou em torno da questão da legalização do aborto e formou as Jornadas. O outro evento citado por Machado (2010) foi a realização das conferências municipais, estaduais e a nacional chamadas pela SPM. As conferências começaram em 2003 e culminaram na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres que ocorreu em julho de 2004. Na Conferência, de 2.000 mulheres presentes, apenas 200 não foram favoráveis à descriminalização e legalização do aborto.

Uma das demandas aprovadas na Conferência foi a de revisão da legislação punitiva do aborto. A SPM apoiou a demanda e foi instituída uma Comissão Tripartite que discutiria, elaboraria e encaminharia uma proposta. A Comissão foi composta por seis integrantes do Executivo, seis representantes da Sociedade Civil e seis membros do Congresso Nacional, e coordenada pela SPM. Os trabalhos foram finalizados em abril de 2005 com a proposta “Revisão da Legislação Punitiva que Trata da Interrupção Voluntária da Gravidez”. Machado (2010) explica que a justificativa do projeto está baseada nos direitos das mulheres – formulados nos anos setenta – e no entendimento de que os abortos inseguros e clandestinos configuram um grave problema de saúde pública.

A minuta elaborada pela Comissão Tripartite propunha o direito à interrupção da gravidez até a 12ª semana, e até a 20ª nos casos de estupro, a obrigação do SUS e dos planos de saúde realizarem o atendimento e dava outras providências. Segundo Nogueira (2013), a expectativa que se tinha na época era que o projeto fosse apresentado para o Legislativo pelo Executivo, trazendo um “peso político maior à questão”. Porém, isso não aconteceu, e a minuta feita pela Comissão Tripartite foi entregue, em um gesto simbólico, pela então ministra da SPM Nilcéia Freire à deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ). A minuta foi incorporada na forma de substitutivo ao PL 1131/91.

Quando o PL 1135/91 foi votado na Comissão de Seguridade Social e Família em maio de 2008, os deputados que eram contrários a sua aprovação se retiraram em forma de protesto e não participaram da votação. No plenário, vários deputados discursaram afirmando

que ele havia sido derrotado por unanimidade. Nogueira (2013) diz que essa retirada dos parlamentares considerados aliados surpreendeu as feministas e que a defesa da legalização do aborto no Legislativo passou a ser identificada como de alto risco político, já que a deputada Jandira Feghali não conseguiu se eleger para o Senado na legislatura de 2007-2010.

Nogueira (2013) aponta que a atuação da SPM foi progredindo em relação ao aborto até o encerramento da Comissão Tripartite, em 2005. Após essa data, houve um recuo da organização, que passou a atuar somente para evitar retrocessos à legislação existente. Uma das entrevistadas de Nogueira (2013) faz um balanço da situação do movimento feminista em relação ao governo na última década. Segundo a entrevistada, com a eleição de Lula, houve um “otimismo exacerbado” - em função da aproximação que o Partido dos Trabalhadores (PT) tinha com os movimentos sociais – em relação ao governo e de que ele poderia corrigir desigualdades históricas. Porém, a entrevistada diz que, pelo menos no que se refere ao aborto, isso não aconteceu. Ela critica o fato do governo ter criado a Comissão Tripartite, mas não ter “bancado” como deveria. E reflete sobre a dificuldade de se ter um governo que é parceiro, mas que “chega na hora H rói a corda”. Após a Comissão Tripartite, a entrevistada diz que o movimento foi perdendo espaço enquanto as forças religiosas e os setores conservadores ganhavam espaço. Para finalizar, a entrevistada afirma que no segundo mandato “as nossas prioridades, a nossa agenda já não era mais prioritária pelo governo, pelo contrário, era agenda usada até como moeda de troca junto com os setores mais conservadores. Então é como eu avalio: uma perda de espaço político gradativa”

(NOGUEIRA, 2013, p. 115).

Em relação à atuação da SPM, outra entrevistada de Nogueira (2013) diz que o debate dentro da SPM é constante sobre aborto, mas que sempre foi tenso, porque há uma “convicção avançada” sobre o tema, mas está dentro de um governo com uma posição mais conservadora. A entrevistada conclui: “eu acho que a posição da secretaria nesse campo tem sido muito apoiar avanços quando existe alguma possibilidade, mas muito mais não permitir recuos” (NOGUEIRA, 2013, p. 123).

Nogueira (2013) afirma que, a princípio, houve uma tentativa de retroalimentação entre o Estado e o movimento feminista, porém este último não foi suficiente para garantir a sustentação de propostas consideradas controversas. Além disso, a autora verificou que a partir de 2004 o movimento feminista direcionou suas ações relacionadas ao aborto prioritariamente ao Estado, vendo nele um forte aliado.

Na análise de Miguel (2012), as escolhas do movimento feminista brasileiro têm consequência na timidez com que a exigência ao aborto é colocada na agenda pública.

Creio que nem a herança católica (que, como se viu, não é insuperável) nem um bloqueio do debate público na mídia (que não existe) explicam a timidez com que a exigência do direito ao aborto se coloca na agenda pública no Brasil. A explicação deve ser buscada, ao menos em parte, na incapacidade que os movimentos que lutam pelos direitos das mulheres demonstram para colocar o tema no topo de suas próprias agendas.

O desejo de não ameaçar os espaços conquistados, que garantiram um papel mais ativo do Estado em questões como o combate à violência doméstica ou a promoção da igualdade de gênero na educação e na saúde, faz com que itens mais “polêmicos” sejam tratados com cautela. As organizações feministas e mesmo a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República manifestam com clareza seu apoio à legalização do aborto. Mas uma posição medrosa sobre o assunto ou mesmo a capitulação à chantagem dos grupos religiosos não é suficiente para que um político perca seu apoio. Ao que parece, há uma acomodação “realista” às condições atuais do debate no campo político brasileiro que, no entanto, acaba por colaborar com a permanência dessas mesmas condições (MIGUEL, 2012, p. 670-671)

O Executivo tem se posicionado em relação ao aborto tentando direcionar a discussão para o Congresso Nacional, afirmando que esse é o espaço onde a discussão deve acontecer. Quando a socióloga e professora Eleonora Menicucci assumiu a Secretaria de Políticas para as Mulheres em 2012, por exemplo, ela enfatizou que a questão da legalização e descriminalização do aborto era uma matéria que não dizia respeito ao Executivo, mas sim ao Legislativo (CAMPANERUT, 2012).