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CAPÍTULO 4. OS ARGUMENTOS MOBILIZADOS NOS DISCURSOS

4.1 Argumentos mobilizados nos discursos contrários ao direito ao aborto

4.1.9 Usurpação das funções do Legislativo

O argumento da usurpação das funções do Legislativo é paradigmático para a compreensão da situação da discussão do aborto no Brasil. Entre os três poderes, o Legislativo é o que se apresenta de forma mais contundente contra o aborto. Nos momentos em que o Executivo ou o Judiciário tentaram interferir na situação, os deputados reagiram afirmando que esse Poder estava usurpando as funções do Legislativo. No total, esse argumento foi mobilizado em 28 discursos contrários ao aborto.

Ele foi utilizado pela primeira vez em 1998, em discursos que falavam da Norma Técnica do Ministério da Saúde. Os deputados criticaram o fato de a norma contemplar tudo que estava sendo discutido no PL 20/91, que ainda estava tramitando. Ele voltou a ser utilizado com mais frequência em 2005, quando o MS revisou a Norma Técnica de 1998 e publicou uma nova norma. Ele pode ser observado nesse discurso de 1999:

O ministro Serra usurpou as funções do Legislativo, e precisamos reagir a essa indevida ingerência do Executivo sob pena de colocarmos em risco todo o nosso trabalho nesta Casa. Se a Câmara ainda não votou o projeto sobre o aborto dos ex- Líderes do PT é porque a maioria da Casa fez e faz restrições à proposta. O Ministério da Saúde não podia ter tomado a si a tarefa de legislar sobre um assunto polêmico, que há oito anos tramita no Congresso. Cabe ao Poder Legislativo definir as normas aplicáveis ao aborto, como acontece em todos os países democráticos do mundo. (Deputado Severino Cavalcanti (PPB/PE), 1999a, p. 22431).

Esse argumento também foi utilizado em referência ao julgamento do STF sobre fetos anencéfalos. O ano em que esse argumento mais foi mobilizado foi 2012, quando ocorreu o julgamento do STF, e esse caso foi citado em 12 discursos. Sobre a interferência do STF em questões políticas, Barroso (2012) explica que esse fenômeno não é exclusividade do Brasil, mas que aqui a situação é peculiar devido à extensão e volume de questões que foram decididas pela Corte nos últimos anos.

O autor explica que a judicialização50 no Brasil tem razões diversas, como a redemocratização do país; a constitucionalização abrangente; e o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. Com a promulgação da Constituição em 1988, o Judiciário ganhou relevância, se tornando um verdadeiro poder político habilitado para fazer cumprir a Constituição e as leis, e aumentando a demanda da sociedade por justiça. A segunda razão citada se refere ao fato de que a Constituição tratou de temáticas que antes eram deixadas ao poder político e à legislação ordinária. A Constituição brasileira, segundo o autor, é desconfiada do legislador, e quando uma questão é transformada em norma constitucional – o direito de acesso ao ensino fundamental, por exemplo – ela é passível de ação judicial. Em relação à terceira razão, Barroso argumenta que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade combina aspectos dos sistemas americano e europeu, como consequência, qualquer juiz pode deixar de aplicar uma lei caso a considere inconstitucional (americano); e certas matérias podem ser levadas diretamente ao STF. Além disso, vários órgãos, como

50 Segundo Barroso (2012, p. 24), “judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou

social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo”.

entidades públicas e privadas podem ajuizar ações diretas. “Nesse cenário, quase qualquer questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao STF” (BARROSO, 2012, p. 24).

Enquanto para Barroso (2012) a judicialização é um fenômeno que decorre do modelo constitucional brasileiro e em todas as questões decididas pelo STF, o órgão o fez porque era seu dever; o ativismo judicial é uma escolha proativa que inclui interpretar a Constituição de forma ampla. “Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva” (BARROSO, 2012, p. 25). Para o autor, o judiciário tem demonstrado uma postura claramente ativista em alguns momentos e isso tem um lado positivo e um negativo. O aspecto positivo diz respeito ao fato de que o Judiciário está decidindo sobre demandas da população que não foram resolvidas pelo Legislativo. O aspecto negativo é que ele expõe as dificuldades que têm rondado o Legislativo, com um distanciamento entre a classe política e a sociedade civil. Um dos exemplos citados por Barroso (2012) de como a agenda pública se deslocou do Legislativo para o Judiciário são as pesquisas com células-tronco, que tiveram mais debate público e visibilidade quando estava no STF do que quando foram votadas no Congresso.

O julgamento sobre a interrupção de fetos anencéfalos é um exemplo de como o Legislativo não agiu. Entre 1990 e 2005 foram propostos nove projetos de lei objetivando possibilitar esse caso de aborto, e nenhum foi sequer votado.

Um exemplo de discurso em que o parlamentar critica essa interferência do STF pode ser visto abaixo:

Sr. Presidente, na semana passada o Supremo Tribunal Federal, mais uma vez praticando um ativismo inconcebível, invadindo a área de competência do Parlamento e, portanto, usurpando a competência do Poder Legislativo, tomou uma decisão absurda. As hipóteses de aborto não punível estão previstas no Código Penal Brasileiro. Ampliar essas hipóteses de aborto não punível só o Congresso pode. Não cabe ao Poder Judiciário, ainda que pela Suprema Corte, alterar a lei. (Deputado João Campos (PSDB/GO), 2012, p. 12683).

Barroso (2007) defende que a antecipação terapêutica do parto não é aborto, mas mesmo que fosse ela não seria punível pelo Código Penal em função de uma interpretação evolutiva desse documento. A argumentação do autor visa demonstrar que esse caso de aborto só não está previsto no Código Penal porque na época em que ele foi editado não era possível realizar um diagnóstico preciso de anomalias fetais incompatíveis com a vida. Se no caso de estupro, explica Barroso (2007), o legislador fez uma ponderação entre a vida do feto e o

sofrimento da mãe, no caso de inviabilidade do feto essa ponderação seria mais simples, visto que também há sofrimento da mãe e não há potencialidade de vida do feto.