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CAPÍTULO 4. OS ARGUMENTOS MOBILIZADOS NOS DISCURSOS

4.2 Argumentos mobilizados nos discursos favoráveis à ampliação do aborto legal

4.2.1 Saúde Pública

O argumento mais utilizado nos discursos favoráveis à ampliação do aborto legal foi o de que o aborto é uma questão de saúde pública, presente em 61,8% dos pronunciamentos com essa posição. O fato da questão da saúde ter sido mobilizada em 40,3% dos pronunciamentos favoráveis como o argumento principal demonstra o quanto ele é relevante para os defensores do direito ao aborto. O argumento da saúde pública é um argumento colocado pelo movimento feminista com o objetivo de chamar a atenção para o fato de que não é só a vida do feto que deve ser balizada na questão do aborto, mas que ao negar esse direito às mulheres, ao invés de se impedir que elas prossigam com suas gestações, o que se faz é obrigá-las a recorrerem a abortos clandestinos, colocando sua vida e saúde em risco.

O discurso da deputada Socorro Gomes (PCdoB/PA) (1991, p. 18520) ilustra como ele é apresentado: “Quando defendemos a legalização do aborto, estamos, sim, Senhores,

defendendo a vida de milhares de mulheres que morrem anualmente em nosso País por não terem direito nem acesso a uma assistência médica”.

Vieira (2010) fala de três aspectos que devem ser considerados quando se pensa em um problema de saúde pública: a dimensão (se atinge muitas pessoas), a letalidade e a preventabilidade. Em relação à primeira dimensão, a autora afirma que estudos estimam que ocorram cerca de 1 milhão de abortos por ano no Brasil. Além disso, o aborto é uma das principais causas de mortalidade materna no país51; e é um problema que poderia ser evitado se os municípios cumprissem o que determina a lei e disponibilizassem um amplo acesso aos métodos contraceptivos.

Além de ser um problema de Saúde Pública é também um problema para a Saúde Pública, já que os custos financeiros, sociais, emocionais e físicos de 250 mil internações hospitalares anuais de mulheres poderiam ser evitados ou ao menos minimizados se a prevenção da gravidez indesejada estivesse acessível a todos (VIEIRA, 2010, p. 104).

Cecatti et al (2010) explicam que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o aborto inseguro é caracterizado como aquele realizado por pessoas não-habilitadas ou em locais que não são adequados. Estima-se que são feitos entre 19 e 20 milhões de abortos inseguros por ano no mundo, e 97% deles são realizados em países em desenvolvimento. O número de mortes em decorrência do procedimento inseguro é estimado em 68 mil, representando 13% dos óbitos maternos. Os autores explicam que no Brasil há uma subnotificação dos dados sobre as mortes decorrentes de aborto, porque complicações como septicemia e hemorragia advindas de problemas com o procedimento não são computadas corretamente. Porém, eles citam dados de uma pesquisa realizada em 2002 nas capitais brasileiras que identificou o aborto como a terceira causa de mortalidade materna.

Por ser uma prática clandestina, é impossível saber com exatidão quantos abortos são realizados no Brasil. Os resultados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) indicam que mais de um quinto das mulheres que vivem em regiões urbanas no Brasil já fizeram aborto. A pesquisa mostra também que metade das mulheres que aborta não utiliza medicamentos, o que indica que elas devem estar realizando o procedimento em situações precárias, já que boa parte delas possui nível educacional baixo. Além disso, as taxas de internação pós-aborto revelam que metade das mulheres que abortam possuem complicações e precisam ser internadas (DINIZ; MEDEIROS, 2010).

51 Em 2006, o índice de mortalidade materna no Brasil foi de 77,2 óbitos por 100 mil nascidos vivos, enquanto

países como Canadá, França, Inglaterra e Japão têm uma taxa de 10 óbitos por 100 mil nascidos vivos (VIEIRA, 2010).

O trecho de discurso a seguir exemplifica esse argumento: “(...) segundo o Ministério da Saúde, a cada dois minutos uma mulher é internada em um hospital conveniado ao SUS para tratar de complicações causadas por aborto, e estima-se que de 10 a 20% das mortes maternas estejam ligadas a ele” (Deputado Carlos Sant’Anna (PP/BA), 1994, p. 10581).

A questão da saúde pública é o argumento colocado no debate que, provavelmente, mais se relaciona com a realidade do aborto no Brasil. Pode-se afirmar que o argumento da inviolabilidade do direito à vida também se relaciona a algo concreto, a vida do feto, porém, como discutido anteriormente, a própria definição de quando se inicia a vida não é consensual. As mulheres que fazem abortos ilegais, ao se submeterem a esse procedimento, estão arriscando sua vida e sua saúde. Enquanto a vida do feto é passível de discussão, a questão de que ao criminalizar o aborto se está provocando a morte e mutilação de mulheres é algo concreto, em que não cabe discussão. Como discutido anteriormente, esse argumento foi instrumentalizado pelos/as parlamentares contrários ao aborto, pois ele é difícil de ser negado. Os/as deputados/as criticaram os dados divulgados sobre o número de abortos ilegais – afirmando que eram superestimados -, mas, em geral, eles próprios admitiam que era um problema de saúde, e que deveria ser enfrentado, com maior controle, punição, e prevenção.

Apesar dessa “concretude” do aborto, o argumento da saúde pública, quando mobilizado pelos/as parlamentares, em raras ocasiões tratou da questão específica de cada mulher. Os/as deputados/as utilizavam, na maioria das vezes, estatísticas sobre o número de mortes ou internações decorrentes do aborto, sem citar mulheres específicas que recorreram ao aborto por motivos diversos. É relevante destacar o fato de que as mulheres nos discursos aparecem de forma generalizada, e, ao generalizar, corre-se o risco de ignorar as especificidades de cada mulher, sua subjetividade e seus motivos. A questão dos motivos que levam as mulheres a recorrerem ao aborto é muito pouco discutida. No caso da empregada doméstica Rosângela Novaes, como discutido no Capítulo 3, o deputado José Genoíno (PT/SP) falou dos motivos que a levaram a realizar um aborto ilegal. No caso da menina de nove anos de Pernambuco que engravidou em decorrência de um estupro e realizou um aborto, os motivos específicos dela, como a idade e o fato da gestação ter sido fruto de um estupro, também foram indicados.

Em alguns discursos os/as parlamentares também citavam reportagens que traziam depoimentos de mulheres que haviam realizado um aborto. Em um dos discursos, o deputado José Genoíno (PT/SP) pediu que fosse transcrito nos Anais da Câmara dos Deputados uma matéria da revista Veja cujo título é “Nós fizemos aborto”. O parlamentar afirma que “são

depoimentos humanos, corajosos, que refletem o que representa para a integridade da mulher a interrupção da gravidez” (1997, p. 28542).

O fato de o movimento feminista ter se aproximado do Executivo após o PT ter vencido as eleições e da dificuldade em obter avanços na questão do aborto ajuda a explicar por que o argumento da saúde pública é tão mobilizado. Em um contexto em que os grupos contrários ao aborto estão organizados e pressionam os parlamentares e o Executivo para que não ocorra nenhum avanço na questão, os constrangimentos de se falar que o aborto é um direito da mulher se tornam cada vez maiores. Nogueira (2013) aponta que a SPM, a partir de 2007, por exemplo, também passou a enquadrar a questão do aborto principalmente como um problema de saúde pública. Parece ser mais fácil tratá-lo dessa perspectiva, pois é possível enfatizar o problema de saúde e afirmar que ele deve ser resolvido, sem se comprometer como uma defesa ampla do aborto, como no discurso abaixo:

Ser a favor da descriminalização do aborto não é ser a favor do aborto. Ao contrário, é criar um caminho para controlá-lo, diminuir sua incidência e as mortes por ele causadas quando provocado em condições inadequadas, o que acabou por fazer que o índice de mortalidade materna em adolescentes no Brasil seja um dos maiores do mundo. (Deputado Dr. Pinotti (DEM/SP), 2007, p. 60098).

Para Miguel (2012, p. 664), “a discussão sobre os direitos individuais tende a ficar obscurecida no debate sobre o aborto, até mesmo por conta de opções táticas do movimento em favor de sua descriminalização”. O autor compara dois contextos em que a questão do aborto estava na pauta pública de discussão. Quando o ministro do STF Marco Aurélio de Mello concedeu liminar favorável à possibilidade legal de aborto de fetos anencéfalos; e quando o ministro da Saúde José Gomes Temporão defendeu a descriminalização do aborto com base em argumentos de saúde. Para Miguel,

Embora mais restrito quanto ao objeto, o primeiro momento enquadra a discussão de forma mais profunda, focando no direito da mulher de dispor do próprio corpo – no caso, não levando a cabo a gravidez de um feto inviável. Já o segundo momento, dada a linha de argumentação dominante apresentada pelo então ministro Temporão e outros, enquadra a discussão em termos de “aborto como problema de saúde pública”. Ou seja, enquanto num caso o argumento em favor da legalização do aborto constrói a ideia de um direito, no outro ele se sustenta num mero cálculo

utilitário (MIGUEL, 2012, p. 664).

Os dois fatos, como discutido anteriormente, geraram muitos discursos. Em um deles, sobre a liminar, o deputado João Batista (PFL/SP), que é pastor evangélico da IURD, afirmou: “(...) a decisão do Ministro preserva a dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade e à saúde, preceituados pela Carta Magna” (2004, p. 33397). É importante destacar

que o deputado é evangélico e mesmo assim se posicionou favorável ao aborto nos casos de anencefalia.

Para Corrêa e Ávila (2003), as feministas brasileiras sempre articularam a questão da autonomia das mulheres com a justiça social. O trecho do discurso de José Genoíno (PT/SP) mostra essa articulação, ao defender que o aborto seja um direito da mulher e que o Estado tenha responsabilidade em garantir que o direito seja cumprido.

(...) ao falar sobre essa questão [interrupção da gravidez], levanto aspectos éticos e filosóficos, pois é um mero exercício de democracia, repito, reconhecer o direito que tem [a] mulher, como cidadã, de decidir sobre isso, sem a tutela do Estado, dos sábios, dos homens. Para que esse direito possa ser exercido, é necessário que o Estado, o poder público, assuma a responsabilidade de oferecer não só as informações, mas os recursos, as condições necessárias, acabando com o farisaísmo e a hipocrisia de uma sociedade que aprova a penalização do aborto, mas não consegue assimilar as cifras monstruosas de três milhões e meio de abortos praticados por ano no Brasil e reconhecer que a segunda causa de internação de mulheres na rede hospitalar é exatamente a realização dessas cirurgias sem as condições médicas adequadas (Deputado José Genoíno (PT/SP), 1993, p. 4819).

A partir da análise dos dados da Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde de 1996, Cecatti et al (2010) encontraram que 2,4% das mulheres entrevistadas relataram ao menos um aborto provocado/induzido. Segundo os autores, entre elas havia uma frequência maior de mulheres de cor/raça não branca, residentes em áreas urbanas, sem religião, e com emprego. “A ilegalidade do aborto não tem sido impedimento para que ocorra de forma indiscriminada nas diferentes classes sociais no Brasil, mas certamente o fato de ter, ou não, uma complicação pós-aborto é sócio e economicamente dependente” (CECATTI et al, 2010, p. 106).