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RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

No documento Tiago Lopes de Oliveira (páginas 47-52)

RACIONALIDADE TECNOLÓGICA

1.4. RELAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

A ciência e a tecnologia, ao longo da história, sempre mantiveram uma relação. No entanto, em um determinado momento histórico, essa relação se intensificou, de forma que uma (a ciência) passou a submeter-se ao modo de operar da outra (a tecnologia).

Carone (2003) menciona que foi Francis Bacon quem, no século XVII, declarou e anunciou os tempos da servidão da ciência à tecnologia. Segundo a autora, ele foi o primeiro filósofo a propor o método experimental para o estudo da natureza. Mais afinado com os interesses da ciência moderna, propunha a descoberta das leis da natureza por meio de um método experimental e a transformação técnica da natureza por meio da aplicação de suas leis. A autora também faz referência ao fato de os preceitos baconianos exercerem a função de administrar os sentidos, a memória e a mente, para que as nossas faculdades cognoscitivas e o conhecimento já existente fossem continuamente vigiados e ordenados de modo a garantir o sucesso da investigação científica. Ainda conforme a interpretação de Carone (2003) sobre Bacon, em primeiro lugar, é interessante notar que a “verdade” e o “verdadeiro” são termos associados com “fértil”, “útil ao bem estar do homem”, “progresso material da vida humana”. Em segundo lugar, “verdade” e “verdadeiro” ligam-se com o que “é conforme os fatos”, com “os procedimentos metodológicos corretos”, com “os resultados induzidos a partir dos dados”. Tal objetividade do conhecimento almejada por Bacon só é conquistada à custa do sacrifício da subjetividade, do qual o método há de se encarregar com eficiência. Em suma, para que a objetividade do conhecimento científico seja máxima, a subjetividade do cientista precisa ser reduzida ao mínimo. A subjetividade humana deve estar sob o controle do intelecto e, em última análise, do

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método experimental. Como nos mostra Carone (2003), para Bacon, a principal vantagem de sacrificarmos nossa natureza subjetiva em proveito do conhecimento do mundo físico é a de que ciência é poder. Em síntese, poder de dominar a natureza e, consequentemente, também dominar os homens. Para a autora, esse parece ser o ponto crucial da teoria de Bacon: a ciência como o meio mais avantajado de construir um império sobre a vida humana6. A técnica passa a subordinar a produção científica, por ser ela a sua real finalidade. Conclui, então, Carone (2003) que a relação entre meios e fins foi invertida, e a ciência passa a servir de meio para a finalidade técnica ser cumprida. Invadida e submetida pela racionalidade técnica, a ciência se tornou, a partir do século XVII, um poder sobre os homens e não necessariamente a favor dos homens. Com isso, a era do capital ganhou com a ciência em função da técnica uma aliada indispensável. A tecnologia, por sua vez, tem servido para aumentar a acumulação capitalista e não para desalienar o trabalhador, que continua subordinado aos interesses da produção econômica. Pode-se dizer, então, que não há uma ética para a ciência subordinada à técnica, mas apenas imperativos: o de continuar produzindo um saber para o domínio da natureza; o de servir para o aumento do capital; o de suprir tecnologicamente as guerras; o de inventar técnicas (inclusive psicológicas), cada vez mais sofisticadas, a serviço da engenharia social e da submissão ordenada dos homens (Carone, 2003).

No que diz respeito às reformulações nas bases científicas e ao modo de operar da ciência, Horkheimer (1984) assevera que as bases das ciências da natureza da época moderna originaram-se no Iluminismo. Desse momento em diante, à ciência cabe estabelecer, com a ajuda de experiências sistematizadas, as regras para dominar o mais

6 A invenção da pólvora e da agulha de marés mostram como a arte da navegação levou os europeus a

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amplamente possível a natureza. Na nova ciência do Renascimento, surge a possibilidade de leis naturais, e com ela a possibilidade do aumento sobre o domínio da natureza. Horkheimer (1984) também enfatiza que na sociedade burguesa a ciência está indissoluvelmente ligada ao desenvolvimento técnico e industrial.

Para Horkheimer e Adorno (1973), com o progresso e o aperfeiçoamento das ciências naturais, nas quais o ideal de leis determináveis com rigorosa exatidão assume novas formas, apresentou-se a exigência de um modelo teórico de sociedade que estivesse dotado de idênticas características de exatidão. A exatidão rigorosa da comprovação passou a ter mais valor do que uma verdade absoluta ou sociedade justa.

A ciência, que também traz condições para a liberdade, nos dias atuais, em vez de contribuir para a libertação dos homens, se desenvolve para manter e perpetuar as condições existentes servindo à tecnologia.

De acordo com Horkheimer e Adorno (1985, p. 19), “o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores”. Segundo esses autores, em um determinado momento histórico, o conhecimento passou a ser sinônimo de poder. Dessa perspectiva, foi adotado o critério da calculabilidade como único aceitável para a produção do conhecimento. Aquilo que não se reduz a números torna-se suspeito. O esclarecimento possibilitou que o poder fosse reconhecido como o princípio de todas as relações entre os homens e destes com a natureza, e o preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas na medida em que pode fazê-las. Para se fazer valer, o esclarecimento afina-se com a coerção social, pois se, de um lado, está o poder, do outro, está a obediência (Horkheimer; Adorno, 1985). A ciência reflete essa hierarquia e a coerção. Ainda, segundo o pensamento dos autores, com o esclarecimento, o procedimento matemático

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tornou-se o modelo de pensamento dominante; a matemática foi confundida com o pensamento. “O pensar reifica-se em um processo automático e autônomo emulando a máquina que ele próprio [indivíduo] produz para que ela possa finalmente substituí-lo” (Horkheimer; Adorno, 1985, p. 37).

Os autores da teoria crítica – em especial, Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse – chamam a atenção para um intenso desenvolvimento da tecnologia na sociedade contemporânea. Esse desenvolvimento da tecnologia deve-se principalmente ao fortalecimento do sistema capitalista de produção que, tal como exposto por Karl Marx, utiliza a ciência como força produtiva, interessado primordialmente no aumento da produção e no controle social – que ajuda a manter os indivíduos alienados e “satisfeitos” com a organização social vigente. Com isso, a ciência que anteriormente mantinha o potencial para a reflexão, a visão de conjunto, a dúvida sobre a verdade dos fatos, a crítica e a transformação social, passou, predominantemente, a ser deliberadamente aplicada ao sistema de produção de mercadorias com o objetivo de aumentar sua eficiência e em consequência o lucro e o poder daqueles que mantêm uma posição privilegiada em tal aparato. A aplicação consciente da ciência e o seu desenvolvimento para atingir objetivos práticos e pré- programados, transformaram-na em tecnologia. Na atualidade, verifica-se, de um lado, uma grande presença e desenvolvimento da tecnologia em todas as esferas da vida (inclusive a da produção de conhecimento) e, de outro, um enfraquecimento daquilo que podemos chamar de ciência “pura” ou “verdadeira”. A produção de conhecimento a partir de uma perspectiva mais tecnológica do que científica pode ser entendida como a expressão de uma tendência presente na sociedade contemporânea que traz como consequência a hipostasia das atuais relações sociais e uma paralisação da crítica e do

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pensamento reflexivo capaz de questionar e apresentar possibilidades de superação das atuais condições de vida.

No quadro abaixo, destacam-se algumas características atribuídas à ciência e à tecnologia, que servem de referência para a classificação das teorias psicológicas presentes no campo da educação, como tecnologia ou ciência.

Quadro 1 – Concepções de Ciência e Tecnologia

Concepções

Autor CIÊNCIA TECNOLOGIA

Herbert

Marcuse - realidade em termos que visualizam sua subversão; Abstração Razão = poder subversivo, o “poder negativo”; julga a = desfaz os fatos; relaciona os fatos com os fatores que o fizeram; Não são objetivados propósitos práticos; Ciência pura não é ciência aplicada.

- conceitos se tornam instrumentos de produção e controle; regras do pensamento ajustadas às regras do controle e da dominação; os negócios devem prosseguir e as alternativas são utópicas; ciência pragmática e tecnológica; falsa consciência; corresponde à realidade em questão. Max

Horkheimer

- Criticar a realidade; Refletir sobre significado dos fatos e sua relação com a verdade; princípio intelectual; pode ir além do método de experimentação; crítica e negativa; contra a ideia da absoluta validade dos fatos.

- Aplicação da ciência; Fé exclusiva nas matemáticas; Dominar a realidade; Funcionamento maquinal da pesquisa (localização, verificação e classificação dos fatos); adaptação às exigências da vida prática; deduzida de procedimentos empíricos; Palavras têm apenas função; métodos quantitativos (ficam só na superfície da realidade); Teoria é reduzida a um simples instrumento

Theodor

Adorno - dialética = movimento do objeto é contraditório; parte da sociedade e não de opiniões ou da autocompreensão dos sujeitos; objetividade da estrutura é o “a priori” da razão subjetiva cognoscente; método não é independente do objeto; empiria conduz à totalidade; intervenção da teoria (para revelar a tendência oculta)

- reprodução da ordem social; Razão Instrumental; conhecimentos que permitem a ampliação da dominação dos homens sobre a natureza e sobre si; tem potencial para modificar as relações sociais; aplicação cada vez mais ampla e radical da ratio instrumental a todas as esferas da vida.

Karl Marx - Rotina empírica; crítica e revolucionária; fenômeno externo é o ponto de partida; não existem leis abstratas; processo social é histórico.

- Aplicações da ciência conscientemente planejadas e sistematicamente especializadas segundo efeito útil requerido; ciência para servir ao capital (força produtiva independente de trabalho); conhecimento = instrumento.

Fonte: Adorno (1999); Adorno e Horkheimer (1985); Horkheimer (2007) e Marx (1987)

A partir dessas concepções de ciência e tecnologia de Adorno (1996), Adorno e Horkheimer (1985), Horkheimer (2007) e Marx (1987) serão extraídos os parâmetros para a análise das teses de doutorado selecionadas com o intento de ilustrar a psicologia como tecnologia e como ciência na educação.

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No documento Tiago Lopes de Oliveira (páginas 47-52)