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Delineamos, neste tópico, de forma breve, a discussão sobre as relações raciais no Brasil, na tentativa de compreender as relações estabelecidas, no contexto da escola que atende alunos oriundos de comunidades quilombolas, e a necessidade de implementação da Lei nº 10.639/03 para discussão dessa temática, bem como sobre a constituição de práticas antirracistas que contemplem as contribuições da população negra para o desenvolvimento da sociedade brasileira.

As relações raciais no Brasil são marcadas pela desigualdade entre brancos e negros, que repercute no acesso aos bens materiais e culturais, como educação, saúde, trabalho, lazer entre outros, e também pelo racismo, que se constitui pela “sua própria negação” (GOMES, 2005, p. 46).

O racismo, segundo Munanga (1998), se constitui como fenômeno recente na história da humanidade, ligado à história da ciência e à cultura ocidental dos séculos XVIII e XIX, que classificam e hierarquizam as raças humanas em superiores e inferiores. Em linha semelhante, Gomes (2005, p. 53) considera que o racismo “[...] parte do pressuposto da superioridade de um grupo racial sobre o outro, assim como na crença

de que determinado grupo possui defeitos de ordem moral e intelectual que lhes são próprios”.

No Brasil, a discussão sobre as relações raciais, conforme Guimarães (1999, p. 156), não pode deixar de abranger o conceito de raça, pois, “[...] por meio dele, pode-se desmascarar o persistente e sub-reptício uso da noção errônea de raça biológica, que fundamenta as práticas de discriminação e tem a cor a marca e o topo principais”.

Etimologicamente, segundo Munanga (2004b), o conceito de raça pode ser traduzido como categoria, espécie e foi utilizado primeiramente para classificar animais e plantas. O autor destaca que, a partir da idade medieval, o conceito passou a se referir a pessoas da mesma família ou linhagem e posteriormente foi utilizado para classificar as características físicas dos grupos humanos. Assim, alguns grupos sociais começaram a dominar e a sujeitar outros grupos, a partir da classificação e hierarquização dos seres humanos em inferiores e superiores, baseados nas características físicas, como a cor da pele, e legitimados tanto pela Teologia como pelas Ciências naturais. Do século XVIII em diante, essa classificação resultou “[...]

numa operação de hierarquização que pavimentou o caminho do racialismo”

(MUNANGA, 2004b, p. 2). No século XIX, acrescentou-se ao critério da cor outros critérios morfológicos, como a forma do nariz, dos lábios e do queixo, o formato do crânio, o ângulo facial, entre outros, para aperfeiçoar a classificação humana.

No século XX, avanços na área da Genética Humana revelaram que o patrimônio genético de cada sujeito é diverso, assim como “[...] há no sangue critérios químicos mais determinantes para consagrar definitivamente a divisão da humanidade em raças estancas”, denominados “marcadores genéticos” (MUNANGA, 2004b, p. 4).

Portanto, a conclusão a que chegaram é que “[...] a raça não é uma realidade biológica” (MUNANGA, 2004b, p. 4). Neste trabalho, concebemos a raça, conforme Guimarães (2002, p. 153), como

[...] construtos sociais, formas de identidade baseados numa ideia biológica errônea, mas eficaz, socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças, privilégios. Se as raças não existem, num sentido estritamente realista na ciência, ou seja, se não são de fato do mundo físico, são, contudo, plenamente existentes no mundo social, produtos de formas de classificar e de identificar que orientam as ações dos seres humanos (GUIMARÃES, 2002, p.153).

Desse modo, a raça está presente nas concepções e narrativas dos sujeitos e em diferentes espaços sociais, entre os quais o espaço escolar, no qual se fazem presentes situações de preconceito e discriminação racial, observados nas relações estabelecidas entre alunos e professores, no currículo, no material didático e nas práticas pedagógicas.

Cabe destacar que essas concepções de raça e racismo foram influenciadas por teorias do racismo científico do século XIX, na Europa e, posteriormente no Brasil, que legitimaram a hierarquização entre as raças e a superioridade de um grupo sobre outro (PAIXÃO, 2014)5, baseado em aspectos biológicos, físicos e morais para determinar qualidades intelectuais e comportamentos dos indivíduos, bem como o seu lugar na sociedade. Assim, características positivas, como inteligência, honestidade, criatividade e outras, foram associadas aos brancos, enquanto aspectos negativos, como “menos inteligente, menos honestos, preguiçosos”, aos negros (MUNANGA, 2004b, p. 5).

Desse modo, a produção do racismo científico contribuiu para a não discussão sobre essa temática, pois a hierarquização e diferenciação entre os grupos sociais foram naturalizadas e utilizadas para legitimar a escravidão, guerras imperialistas, os processos de colonização e as desigualdades raciais e sociais entre negros e brancos.

Assim como, foram utilizadas para justificar o projeto de branqueamento do Brasil, no período pós abolição no Brasil.

O projeto de branqueamento no Brasil envolveu o processo de incentivo à imigração europeia e à miscigenação, na tentativa de garantir que o Brasil garantisse o seu desenvolvimento econômico e social (PAIXÃO, 2014), tendo em vista que o negro era sinônimo de atraso, bárbaro e selvagem. A imigração foi possibilitada pela implantação de políticas públicas por parte do Estado brasileiro, que concebiam os europeus brancos como solução para o problema do trabalho pela abolição da escravidão (HASENBALG, 2005), pois a população negra era vista como fator de “atraso econômico”, portanto, incapaz de contribuir para o progresso do país; para o processo

5 Para aprofundamento sobre as teorias racialistas, indicamos a leitura de Paixão (2014).

de branqueamento da população brasileira, a miscigenação assegurava a superioridade branca e o desaparecimento gradual dos negros (PAIXÃO, 2014).

Bento (2002, p. 1) diz que, no Brasil, a ideologia do branqueamento contribuiu para que o racismo fosse considerado um problema do negro, por não aceitar suas próprias características e buscar miscigenar-se com os brancos para “diluir suas características raciais”. Nesse sentido, o branco foi estabelecido como um modelo universal a ser seguido, em termos estéticos, culturais e morais, em contraposição aos significados estéticos e culturais relacionados aos negros, vistos como desviantes ou inferiores (SCHUCMAN, 2014).

O processo de miscigenação, por sua vez, foi resultante do cruzamento “entre populações biologicamente diferentes” (MUNANGA, 2015, p. 21), mas seu legado não se restringiu à dimensão biológica enquanto tal, mas envolveu aspectos sociais, psicológicos, econômicos e político-ideológicos decorrentes desse fenômeno. No Brasil, pensadores brasileiros se basearam na ideia de mestiçagem tida ora como um meio para estragar e degradar a boa raça, ora como um meio para reconduzir a espécie a seus traços originais, ora encarada como sinal de integração e de harmonia social, no processo de discussão da identidade nacional no Brasil, na tentativa de garantir o desenvolvimento e o progresso do país. .

Assim, o processo de miscigenação, articulado à ideologia do branqueamento, produziu a ideia da existência da democracia racial no Brasil, desenvolvida pelos estudos de Gilberto Freyre, que abordou as relações entre brancos e negros desde o período colonial, ressaltando as relações harmoniosas entre esses grupos sociais. Na obra Casa-grande & senzala, publicada em 1933, Gilberto Freyre identifica-se com os ideais da miscigenação e do branqueamento (BENTO, 2002), construindo as bases para o que chamamos de mito da democracia racial no Brasil, que defende a inexistência do preconceito e da discriminação nas relações raciais brasileiras.

Segundo Bernardino (2002), o tom da obra Casa-grande & senzala é de otimismo ao ambiente social existente no período colonial brasileiro, quando inclusive induz-se a considerar que o “mulato” ascenderia socialmente em um futuro próximo.

O mito da democracia racial não nasceu em 1933, com a publicação de Casa-grande & senzala, mas ganhou, através dessa obra, sistematização e status

científico — para os critérios de cientificidade da época. Tal mito tem o seu nascimento quando estabelece uma ordem, pelo menos do ponto vista do direito, livre e minimamente igualitária. (BERNARDINO, 2002, p. 251).

Para Bernardino (2002), a ideia do “mito” fez com que outros países considerassem o Brasil como um paraíso racial, entretanto os negros que aqui viviam sabiam o sofrimento que passavam devido a exclusão social. Segundo Hasenbalg (2005), o mito da democracia racial contribuiu para a desmobilização dos negros e a legitimação das desigualdades raciais, “[...] favorecido pelo paternalismo, clientelismo, falta de discriminação legal, presença de não brancos dentro da elite e ausência do conflito racial declarado” (HASENBALG, 2005, p.251), bem como a crença na ausência de preconceitos e discriminação racial e existência de oportunidades econômicas e sociais iguais para brancos e negros.

Munanga (2015) considera que o mito da democracia racial foi baseado na mestiçagem biológica e cultural e “[...] tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira”, porque ressalta uma ideia de igualdade entre os grupos étnicos, na qual os negros acabam não percebendo quando são vítimas de exclusão social.

Nas palavras de Munanga,

[...] encobre conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria (MUNANGA, 2015, p. 77).

As consequências dessas ideias foram desastrosas para o Brasil, onde foi desenvolvido o pensamento de que não há racismo no Brasil, constituindo, segundo Hasenbalg (2005, p. 254), uma “[...] imagem de harmonia étnica e social como parte de uma concepção ideológica mais ampla de natureza humana brasileira [...]”, ou seja, uma sociedade marcada por uma unidade nacional e sem conflitos raciais, portanto, sem a necessidade de mobilização política e políticas públicas para o enfrentamento dos mecanismos de exclusão e discriminação racial no país.

Diante desse imaginário social, legitimado pelo mito da democracia racial, o debate sobre as relações raciais (baseado na raça), no Brasil, foi secundarizado (PAIXÃO, 2014) e a responsabilização pela posição social do negro foi dirigida a seu próprio grupo, isentando o branco no processo de produção das desigualdades raciais (HASENBALG, 2005). Desse modo, a parcela branca privilegiada da população

brasileira continuou mantendo seus privilégios, enquanto os negros continuaram excluídos de seus direitos sociais e sofrendo todo tipo de preconceito e discriminação.

Bento (2002, p. 2) pontua:

A falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades raciais é uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado, problematizado.

A autora considera que muitas pessoas brancas reconhecem a existência das desigualdades raciais, mas optam pelo silenciamento quando indagadas, na tentativa de manter sua posição privilegiada na sociedade. Bento (2002) acrescenta que a não associação das desigualdades raciais à discriminação é “[...] um dos primeiros sintomas da branquitude [...]” (BENTO, 2002, p. 2). São inúmeros os motivos para o silenciamento, já que ele acarretaria assumir uma posição favorável de acesso a bens e serviços negados à população negra por séculos e, por sua vez, não precisam tratar de compensar esses grupos por essa condição de marginalização social.

Desse modo, acreditamos que o debate sobre as relações raciais no Brasil pode se materializar nas práticas educacionais, como um processo que pode contribuir para reflexões e transformações nas concepções sobre o negro, sua história e cultura. Para Munanga (2015, p. 17),

[...] não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas, atitudes essas provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades humanas. No entanto, cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados.

Nesse sentido, o autor destaca que há a necessidade de se transformar o pensamento da sociedade brasileira e aponta como uma das possibilidades a educação dos jovens, de modo a ensiná-los a realizar o enfrentamento ao racismo. No entanto, não é apenas a escola que possui essa responsabilidade de ensinar valores que propiciem o combate às desigualdades e às discriminações presentes em nossa sociedade, mas, como todos acabam passando por esse espaço, a escola acaba sendo o local apropriado para que, desde cedo, os estudantes aprendam sobre essas e outras temáticas.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2004, p. 14) afirmam que a escola

[...] tem papel preponderante para eliminação das discriminações e para emancipação dos grupos discriminados, ao proporcionar acesso aos conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que rege as relações sociais e raciais, a conhecimentos avançados, indispensáveis para consolidação e concerto das nações como espaços democráticos e igualitários (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2004).

Assim, ressaltamos a importância da Lei nº 10.639/03 como reinvindicação do movimento negro e da sociedade civil, além de ser resposta do Estado às demandas por uma educação antirracista e democrática (GOMES, 2012).

A partir dessas considerações, faz-se necessário discutir o conceito de Estado, entendendo que sua concepção interfere na constituição de políticas públicas, especificamente aquelas voltadas à garantia dos direitos educacionais, ao enfrentamento do racismo e à articulação à promoção da equidade racial.