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RELATÓRIO GEOTÉCNICO DE REFERÊNCIA (RGR)

4 ASPECTOS CONTRATUAIS

4.4 RELATÓRIO GEOTÉCNICO DE REFERÊNCIA (RGR)

Mesmo com um programa de prospecção e caracterização geotécnica muito elaborado, a eliminação de todos os riscos geotécnicos é extremamente improvável. Com a crescente ênfase na redução de custos nos mercados de construção altamente competitivos, o corte destes programas é uma realidade que tem de ser enfrentada. Por conseguinte, a fim de minimizar as onerosas disputas, é essencial dar uma atenção cuidada às formas contratuais relativas a grandes projectos. Um conceito significativo neste contexto é o de relatório geotécnico de referência, que visa estabelecer uma compreensão contratual das condições geotécnicas, através de valores de referência (Essex, 1997).

O RGR resultou da procura de medidas para enfrentar os altos e incertos custos associados a projectos subterrâneos nos Estados Unidos na década de setenta, que tornavam quase impossível a construção de túneis. Nos anos noventa o conceito do RGR é desenvolvido e aplicado com sucesso em diversos projectos. Na prática, hoje, o RGR é incluído como parte do contrato, e serve como declaração contratual da antecipação das condições geotécnicas a encontrar, durante a construção subterrânea. O mesmo estabelece valores quantitativos para condições geotécnicas que possam ter um grande impacto na construção, através da interpretação técnica dos dados e considerações comerciais de partilha de riscos. Se as condições encontradas são melhores que as de referência, todos os riscos são atribuídos ao Empreiteiro. Inversamente se as condições forem significativamente piores, os riscos associados a elas são atribuídos ao Dono de Obra. Quanto melhor definidas forem as condições previstas, mais facilmente as condições encontradas podem ser avaliadas. Como recompensa, na fase de concurso, o Dono de Obra irá ter um preço mais realista, apresentado pelos Empreiteiros.

O RGR não se trata do relatório de caracterização geotécnica do EC7 (CEN, 2004), destinado a suportar o projecto; no entanto fornece uma interpretação realista das condições subterrâneas. Este não deve incluir apenas as condições médias do comportamento do terreno e águas subterrâneas previstas, mas deve igualmente abordar a gama de variações esperada para essas características.

A definição dos valores de referência (Quadro 4.3) depende da margem de risco que o Dono de Obra está disposto a correr para compensar os desvios. O objectivo principal do RGR é “definir valores de referência, para antecipar condições geotécnicas, que podem ser

encontradas durante a construção subterrânea, a fim de fornecer no contrato indicações claras para a resolução de litígios relativos a essas condições” (Essex, 1997).

Quadro 4.3. O conceito de valores de referência e RGR (Staveren, 2006, adaptado).

A aplicação efectiva do RGR em projectos de construção varia de país para país e de projecto para projecto. Orientações sobre a forma e o seu uso são apresentadas num documento da American Society of Civil Engineers (ASCE) em 1997 (Essex, 1997), e posteriormente actualizado em 2007 (ASCE, 2007). Este mesmo documento descreve três tipos de relatórios geotécnicos que podem ser preparados: relatório de dados geotécnicos; relatório geotécnico interpretativo; e o relatório geotécnico de referência.

O mesmo define ainda quem deverá usar o RGR (Essex, 1997):

Projectista, como base para a elaboração de uma estimativa do custo de construção; Proponentes durante a fase de licitação, para uma indicação contratual da antecipação das condições do subsolo e riscos geotécnicos alocados ao Empreiteiro; Empreiteiro, para a selecção de métodos e equipamentos de construção;

Empreiteiro e Dono de Obra durante a construção, para avaliar as condições do subsolo e identificar diferentes condições do terreno conforme o avanço da construção;

Partes contratantes, para a resolução de litígios relacionados com as condições encontradas, que são reivindicadas como sendo mais adversas do que o inicialmente indicado.

O documento da ASCE (Essex, 1997) contém uma lista de verificação para a elaboração de um RGR. Este deve ter como conteúdo mínimo:

Fontes de informação;

Descrição sumária do projecto; Descrição da área de implantação; Enquadramento geológico da área; Risco relacionado

com o terreno Factor de risco chave Valor de referência

Alocação do risco

Empreiteiro Dono de Obra

Assentamentos inaceitáveis Espessura da camada de argila 5 m <= 5 m >5 m Compressibilidade da camada de argila 6 m 2 /kN >= 6 m2/kN < 6 m2/kN

Afluxo de água Permeabilidade da

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102 Caracterização geotécnica do terreno;

Considerações prévias sobre a concepção/projecto; Considerações prévias sobre o processo construtivo; Referências.

De forma mais específica, alguns dos itens normalmente abordados num RGR incluem (op. cit.):

A quantidade e distribuição dos diferentes materiais ao longo do alinhamento seleccionado;

Descrição da resistência, compressibilidade, granulometria e permeabilidade dos materiais existentes;

Descrição da resistência e permeabilidade do maciço como um todo;

Níveis e condições esperadas das águas subterrâneas, incluindo valores de referência para as estimativas de fluxo e taxas de bombeamento;

Previsão do comportamento do terreno, e influência das águas subterrâneas, no que diz respeito aos métodos de escavação e instalação do suporte;

Impactes da construção em instalações adjacentes;

Potenciais perigos geotécnicos e antrópicos que poderão afectar a construção, incluindo a presença de falhas, gases, queda de blocos, cavidades cársicas, existência de fundações por estacas, etc.

O RGR estabelece uma base comum e realista para todos os Empreiteiros usarem na elaboração das suas propostas e, posteriormente, uma base para avaliar quaisquer disputas por parte dos mesmos da ocorrência de diferentes condições de terreno que se desenvolvam durante a construção (Zhou & Cai, 2007). Para evitar a subjectividade associada à abordagem “razoavelmente previsível”; existe um movimento no sentido da utilização de uma cláusula DSC no contrato, i.e., para condições geotécnicas reais que diferem muito das condições preconizadas face aos elementos disponíveis na fase de projecto.

A Federal Highway Administration (FHWA, 1996), elaborou um documento que fornece orientações sobre a aplicação prática dessa cláusula no contrato em relação às condições do subsolo, e contemplando a natureza variável dos solos e materiais rochosos, quando

utilizados como fundação ou material de construção. O objectivo destas recomendações é, em parte, diminuir a proposta das elevadas medidas contingentes, para os inesperados problemas do subsolo, e fornecer uma base para a resolução justa das disputas contratuais, que daí advenham. Sem uma cláusula DSC, o risco de ocorrência de condições do subsolo é suportado pelos Empreiteiros, que por sua vez aumentariam a proposta de preços para o mitigar. Este documento (FHWA, op. cit.) define dois tipos de inconformidades geotécnicas:

Tipo I - Condições físicas com diferenças materiais (de extensão ou intensidade, não de natureza) relativamente ao definido no contrato;

Tipo II - Condições físicas desconhecidas duma natureza diferente das ordinariamente encontradas ou geralmente reconhecidas como inerentes ao trabalho previsto no contrato.

A oportunidade para a elaboração do RGR caduca com o lançamento do concurso de construção. A inadequação ou inexistência do RGR favorece a ocorrência de inconformidades do tipo I. As vantagens deste relatório residem na facilidade em administrar cláusulas contratuais, na determinação inequívoca do direito, na clarificação da proposta do Empreiteiro e na clara repartição de riscos entre ele e o Dono de Obra.

Em Portugal, e na generalidade dos contratos, existem de facto cláusulas que prevêem a possibilidade de o Empreiteiro ter direito a compensações. Isso compreende-se na medida em que ele é capaz de executar uma obra em determinadas condições, previstas no projecto, podendo as condições reais diferir muito das preconizadas com base nos elementos disponíveis na fase de projecto e, nesses casos, o Empreiteiro não pode, evidentemente, suportar os custos derivados dessa situação porque no cálculo do preço da empreitada não tinha hipótese de atender a essa eventualidade.

O conceito de RGR é muito atraente mas na prática pode ter alguns problemas, tais como: As condições encontradas não são cobertas pelo relatório inicial;

O método de verificação devalores de referência pode ser questionado (e.g., se a resistência à compressão em laboratório de uma determinada rocha corresponde à da rocha in situ). Portanto, deve ser claramente especificado a que tipo de medida se referem os valores de referência e como devem ser verificados durante a construção;

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Se os valores forem ultrapassados, oEmpreiteiro tem direito a pedir indemnização. O caderno de encargos, para o caso, deverá incluir cláusulas de reajuste para o tempo e custo. Se essas cláusulas não são fornecidas, o RGR não conseguirá evitar disputas. A complementação do RGR por um sistema de classificação poderia ajudar a chegar a uma compensação ponderada para a incidência de vários factores, dando pesos para as condições da rocha, largura do vão mais segura, afluxo de água, escavação, classes de suporte, etc. Freeman et al. (2009) apresentam uma série de sugestões para melhorar a eficácia dos RGR, baseadas na experiência obtida em muitos projectos de túneis. Essas sugestões complementam as orientações da ASCE e proporcionam a criação de RGR mais úteis e de melhor qualidade.

Embora o RGR seja referido no Code of Practice (ITIG, 2006), da iniciativa do sector de Seguros, ele é um documento preparado para a alocação do risco comercial entre o Dono de Obra e o Empreiteiro. Portanto, o RGR não é especificamente relevante para o seguro sobre a obra. No entanto, a Seguradora ganha confiança, se os riscos de projecto forem considerados pelo Empreiteiro na preparação da sua proposta, ou se existe um RGR. Esse relatório vai chamar a atenção para questões com um impacto comercial e garantir eventualmente uma proposta mais adequada.

Assim sendo, o uso de cláusulas para a ocorrência de diferentes condições do terreno, juntamente com um RGR, têm o potencial de ser uma forma eficaz de implementar uma abordagem de partilha de risco para as condições do terreno em projectos de construção subterrânea na qual, se surgirem diferenças significativas relativamente ao expectável, os riscos são assumidos, em parcelas pré-definidas, pelo Dono de Obra e pelo Empreiteiro. No entanto, deve ser reconhecido que a qualidade e o valor do RGR dependerão da forma rigorosa como as questões geotécnicas fundamentais são abordadas e comunicadas entre as várias partes. O RGR deve funcionar, na gestão dos riscos geotécnicos, como catalisador para uma colaboração mais estreita entre o Dono de Obra, o Projectista e o Empreiteiro.