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Reorientação da política pública de inclusão financeira

5 DISCUSSÃO

5.3 ADEQUABILIDADE DE PRODUTOS FINANCEIROS

5.4.1 Aprimoramento dos mecanismos de fiscalização e proteção do consumidor

5.4.1.1 Reorientação da política pública de inclusão financeira

Roy (2010) afirma que o cenário atual das microfinanças é marcado por uma abordagem minimalista, comercial e orientada para o lucro, prescrita pelas instituições multilaterais promotoras da inclusão financeira. E que não é mais suficiente enxergar as microfinanças como um setor de desenvolvimento, mas é essencial abordá-la como uma indústria, na qual a mercadoria que está sendo produzida, comercializada e valorizada é o débito. E que tais fatores resultaram numa mudança de racionalidade, onde as normas financeiras têm substituído as normas sociais.

Segundo Kleinman (2014), Mader (2018) e Taylor (2012), as microfinanças atualmente se inserem num modelo de financialização do desenvolvimento, afastada dos objetivos sociais preconizados por sua “razão de ser” e essencialmente preocupadas em obter altos retornos financeiros sobre os investimentos.

Taylor (2012, p. 608) assevera que as práticas de empréstimo predatórias transformaram os pobres numa nova fronteira de acumulação para o capital nacional e internacional. E que “é evidente que a associação entre maximizar o retorno ao acionista e estender empréstimos a famílias que vivem em condições precárias possui contradições intrínsecas e dinâmicas de poder que são silenciados sob a narrativa de inclusão financeira”.

O cenário atual de produtos inadequados, condições extremamente adversas de comercialização e crédito para os consumidores de baixa renda e altos índices de endividamento e inadimplência pode estar diretamente ligado ao fato de a inclusão financeira ser operacionalizada principalmente por instituições comerciais, cujo objetivo central é o lucro, encaixando-se na categoria definida por Kleinman (2014) como a abordagem dos sistemas financeiros, que enfatizam os retornos financeiros acima de tudo.

Dados do BCB mostram que, no Brasil, 82,2% dos pontos de atendimento de serviços financeiros são relativos ao segmento bancário, 14,3% de financeiras, 3,2% são cooperativas e 0,19% são sociedades de crédito ao microempreendedor (BCB, 2018). Nota-se também que quase metade da população é atendida exclusivamente por bancos, uma vez que 47,6% dos municípios possuem apenas pontos de atendimento de bancos e correspondentes bancários.

De que formas uma inclusão financeira pautada em produtos financeiros oriundos de grandes bancos comerciais e conglomerados financeiros internacionais, e operacionalizada/difundida pelo comércio varejista, através de seus agentes e pontos de venda, pode ser no interesse da boa gestão financeira e da melhoria da qualidade de vida dos consumidores? E não no interesse central da lucratividade, do aumento das vendas e do atingimento de metas que proporcionam ascensões de cargos e recebimento de bônus aos agentes que os comercializam?

As respostas a tais perguntas, por mais modestas que possam soar, são extremamente difíceis de encontrar e de produzirem resultados práticos em benefício das populações vulneráveis e de baixa renda . Friedman (1970) afirmou que a responsabilidade social da empresa é maximizar seus lucros para reinvesti-los. Aparicio e García (2011) afirmam que os bancos comerciais se enquadram no modelo OTD – Originate to Distribute, que consiste em desenvolver a atividade empresarial com a intenção de originar benefícios econômicos a serem distribuídos entre os acionistas. Dessa forma, esperar que tais resultados (prioridade do papel/benefício social sobre a lucratividade) na atuação de tais instituições consiste, de certa forma, em distorcer o papel, as obrigações e a finalidade da atividade empresarial tradicional.

A ética bancária e a responsabilidade social coorporativa, conforme visto no referencial teórico, também não se apresentam como opções capazes de mudar esse cenário,

pois se mostram basicamente como ações de caráter compensatório, pontuais ou de pequena escala e a serviço da estratégia, cujo interesse central é a melhoria de imagem das corporações e ganhos de mercado (Paulet et al., 2015; San-Jose et al., 2011). Segundo Neckel et al. (2018, p. 288), “a mudança cultural ou ética é apenas parcialmente viável caso foque exclusivamente nos motivos, valores e personalidades dos sujeitos individuais, pois negligenciará as condições estruturais e institucionais de uma "boa" prática financeira”.

De fato, conforme revisado no referencial teórico, o que se verifica no desenvolvimento histórico das microfinanças é a mudança de um microcrédito produtivo e de baixo custo – ofertado por instituições locais que atuam em relação de proximidade aos tomadores, para a oferta de produtos financeiros de propósito geral e juros altos – ofertados por grandes bancos e conglomerados internacionais (Mader, 2018).

Assim, é razoável esperar que os mesmos grupos e instituições financeiras que capitanearam tal mudança voltem atrás em seus interesses e desconstruam seus próprios esforços e investimentos realizados ao longo de duas décadas? Ou que reduzam drasticamente suas as taxas de juros e passem a oferecer produtos que visem primordialmente o bem estar das populações pobres em detrimento da lucratividade?

A ampliação da concorrência pode produzir redução de preços, porém, não é razoável esperar os ajustes significativos (ou mesmo drásticos) que se fazem necessário. Atualmente, tem-se depositado sobre as Fintechs grande expectativa nesse sentido. Contudo reportagem da Folha PE (2018) aponta que o Ciab Febraban (Congresso de tecnologia da informação para instituições financeiras) pôs fim à ideia de que as Fintechs poderiam reduzir a concentração bancária. Segundo a reportagem “para os principais players do setor, as novas empresas devem atuar em parceria e não concorrer com os grandes bancos”. A matéria afirma também que “pesquisa da Capgemini constatou até que a grande maioria das fintechs mundiais (75,5%) pretende colaborar com as instituições financeiras”. Se uma empresa pode ganhar mercado cobrando taxas de 200% ao ano, por que ofereceria seus produtos a taxas de 10% ou 15% ao ano? Instituições que objetivam o lucro sempre terão como interesse principal o lucro. Dessa forma, resta claro que a obtenção de benefícios sociais deva ser intermediada por instituições que possuem objetivos sociais e não apenas objetivos financeiros. Portanto, os bancos sociais, bancos éticos, cooperativas de crédito e bancos comunitários aparecem como uma alternativa significativamente mais razoável e alinhada à obtenção de benefícios sociais quando pensamos em ações e políticas de inclusão financeira.

Segundo Tormo e Navarro (2012), as cooperativas de crédito e os bancos sociais e éticos surgem por razões semelhantes: a exclusão financeira de coletivos vulneráveis e a necessidade de respostas éticas, responsáveis e solidárias.

Palacio e García (2017) afirmam que o conceito de banco social reúne instituições de crédito que visam compatibilizar a rentabilidade econômica e social e desenvolvem, para tanto, um modelo bancário de origem (OTH – Originate to Hold), pelo qual a corporação bancária é capaz de criar valor, tanto para seus membros quanto para o território em que operam.

San-Jose et al. (2011) asseveram que os objetivos do banco ético vão além da rentabilidade econômica para incluir objetivos sociais, supondo que ambos são relevantes em um modelo socioeconômico.

De la Cruz e González (2016) afirmam que o banco ético é definido tanto por critérios éticos negativos quanto positivos. Dentre os aspectos negativos estão incluídos o não envolvimentos em ações de exploração do trabalho, manipulação do consumidor e especulação financeira. Enquanto os critérios éticos positivos incluem aquelas atividades que geram valor social, dentre as quais: promover o desenvolvimento local, contribuir para a igualdade de oportunidades, valorizar o relacionamento com as partes interessadas, apoiar o consumo justo e responsável etc.

De acordo com San-Jose et al. (2011), os bancos éticos, cooperativos e sociais dizem respeito a um modelo de negócios distinto dos bancos convencionais, onde a diferença fundamental é que as práticas éticas e de responsabilidade social estão na essência dos princípios constitutivos de tais instituições (através do princípio do benefício/lucro social), afetando, portanto, todos os níveis de decisão da empresa, inclusive (e com grande centralidade) as decisões financeiras.

Dessa forma, tais instituições se mostram mais adequadas para a operacionalização de políticas e produtos destinados à inclusão financeira.

Segundo dados do BCB (2018), as cooperativas de crédito estão presentes em 43,1% dos municípios brasileiros. A revisão de literatura sobre inclusão financeira no Brasil revelou que o país é uma das referências mundiais em modelos de bancos comunitários e em moedas sociais, as quais, inclusive, já são operadas por meio digital, aplicativos, QR codes etc.

Portanto, recomenda-se que as políticas públicas de inclusão financeira sejam redirecionadas para estimular e priorizar o surgimento e operação de produtos financeiros destinados às populações de baixa renda por parte de instituições financeiras que possuam

tanto objetivos financeiros quanto sociais em sua natureza/constituição, como no caso dos bancos éticos, das cooperativas de crédito e dos bancos comunitários.

Em revisão da literatura sobre ética bancária, a maioria dos problemas éticos apontados se referem aos bancos convencionais, mas há casos de problemas éticos em bancos sociais e em bancos éticos. Assim, bancos éticos, sociais e cooperativos não são uma panaceia, mas aparecem como um caminho promissor para o desenvolvimento de produtos mais adequados e arranjos financeiros que de fato produzam os benefícios preconizados pela inclusão financeira.

Por fim, uma possível forma de ganhar escala em tais soluções é utilizar a rede de correspondentes bancários e o próprio comércio varejista para distribuir produtos financeiros oriundos de bancos éticos, cooperativos e sociais, criados especificamente para o atendimento das necessidades da inclusão financeira e das populações de baixa renda.