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Reprimenda de Direito Sancionador e Direito Penal sobre mesmo fato: evidência da administrativização e simbolismo penal

de 20 de dezembro 12 loc cit.)

4.2.2 Reprimenda de Direito Sancionador e Direito Penal sobre mesmo fato: evidência da administrativização e simbolismo penal

Entende-se, então, que lei de lavagem de capitais, através da imposição de

409 Na lição de Luis Greco condutas neutras são “aquelas contribuições a fato ilícito alheio que, à

primeira vista, pareçam completamente normais. Tudo aquilo que, num primeiro contato, superficial, é verdade, pareça irrelevante para o Direito Penal, tenha um aspecto inocente, inofensivo, seja dotado daquela aura angelical do que é socialmente adequado, tudo isso será uma ação neutra. E proporemos também uma regra de decisão para casos de dúvida: os casos de dúvida também podem ser tidos como casos de ações neutras. Poderíamos, assim, reformular a definição dada de forma a compreender tanto a regra geral quanto a regra para o tratamento de casos duvidosos numa única formulação: ações neutras seriam todas as contribuições a fato ilícito alheio não manifestamente puníveis” (GRECO, L. Cumplicidade através de ações neutras: A imputação objetiva na

participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 110)

410 Conforme Rômulo de Andrade Moreira “é tremendamente perigoso que o direito positivo de um

país permita, e mais do que isso, incentive os indivíduos que nele vivem à prática da traição como meio de obter um prêmio ou um favor jurídico” (MOREIRA, R. A. A institucionalização da delação no direito positivo brasileiro. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 49, p. 05-06, dez. 1996. p. 5.)

responsabilização penal e sancionadora de forma sobreposta, atua de maneira corrompida, administrativizada e simbólica demonstrando a influência desmedida do ambiente econômico através das rotulações de novos bens jurídicos e do ingresso das lógicas atuariais sobre o sistema criminal a ponto de desorganizar e imbricar as normas punitivas constantes aludido no diploma legal, mitigando inclusive princípios e garantias fundamentais.

Outra grave situação, e que aqui se opõe, em relação à sobreposição das normas incidindo sobre o mesmo fato e supostamente ampliando o espectro protetor, é a falsa alegação de que se tratam de dispositivos que tutelam interesses distintos e violados pela mesma conduta, amparados pela independência das instâncias administrativa e penal.

Como consequência da justaposição de normas de raiz penal sobre um mesmo destinatário, se observa a violação gradual do princípio da não autoincriminação. Conforme assevera Gloeckner e Da Silva411, a perversidade do mecanismo punitivo

se evidencia quando a formação de camadas jurídicas de normas viabiliza a renúncia a um direito indisponível em prol do afastamento de uma sanção camuflada de “administrativa”.

A crítica a administrativização do Direito Penal e de sua utilização em conjunto com o Direito Sancionador alcança todas as formas de manifestação daquele ramo punitivo que objetivem a tutela de bens coletivos. As normas de Direito Administrativo por vezes condicionam a incidência da norma penal e, nos termos já explicitados nesta dissertação, impõem sanções que chegam a superar o rigor das penas no plano criminal.

Em crítica à administrativização do Direito Penal e a sobreposição de normas dela decorrente, tecida no plano da legislação penal ambiental mas facilmente transportável para a análise da lavagem de dinheiro em curso, Luis González Guitian412 entende que tais legislações constituem um ambiente extremamente

controverso. Nesse sentido, vejamos:

411 GLOECKNER. R. J.; DA SILVA, D. L. Criminal compliance, controle e lógica atuarial: A

relativização do Nemo tenetur se detegere. Revista de Direito da Universidade de Brasília. v.01, n.01, p. 147-172, jan./jun. 2014. p. 160-161.

412 GONZÁLEZ GUITIÁN, L. Sobre la accesoriedad del Derecho Penal en la protección del ambiente.

In: Estudios Penales y Criminológicos, Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, t. XIV, p.109-135, 1991.

A normativa de proteção ambiental constitui um mare magnum de difícil navegação: um número muito elevado – e que só faz aumentar – de normas de toda classe se acumulam, se entrelaçam e se superpõem em uma rede que pretende ser protetora e que, apesar de tudo, se mostra incoerente e incompleta. A acessoriedade do Direito Penal na proteção do ambiente se constrói, assim, sobre uma base instável, o que, como é lógico, repercutirá na hora da (in) aplicação do preceito.413

Esse ambiente movediço e propenso a ineficiência da norma pode claramente ser relacionado ao caráter simbólico que o Direito Penal, na tutela desses novos bens e com legislações ditas mais eficazes no combate a nova criminalidade, passa a adquirir.

Conforme Gamil Foppel414, a função simbólica serve de apelo ao aspecto

imaginário das pessoas, dando de forma ilusória a “tão sonhada e almejada segurança”. O simbolismo liga-se diretamente a criação de novos bens jurídicos e a expansão do Direito Penal e objetiva incutir na compreensão dos indivíduos uma visão de controle e segurança. A consequência desse simbolismo, conforme salienta o autor, e em consonância com os argumentos aqui defendidos, é o prejuízo dos próprios cidadãos que têm suas garantias violadas “em nome de um ‘direito’ penal que nada assegura”.

As lógicas atuariais se somam a todas as distorções sofridas pelo Direito Penal. Com base em dados econômicos firmados em ideais de eficiência e colaboração entre o público e o privado, percebe-se que a intenção na verdade é exercer o controle de áreas interessantes à economia mediante a sensação de segurança supostamente fornecida pelo recrudescimento punitivo.

A inobservância dos deveres de Compliance e seus desdobramentos punitivos trazem em si a efetivação das lógicas atuariais e gerencialistas, maximizando o fenômeno da administrativização do Direito Penal e do controle por meio de dados

413 Texto no original: “la normativa de protección ambiental constituye um mare magnum de muy difícil

navegación: en muy elevado número – que no hace más que crecer- normas de toda clase se acumulan, se trenzan y se superponen em uma red que pretende ser protectora y que, pese a todo, sólo es incoherente e incompleta. La accesoriedad del Derecho penal em la protección del ambiente se construye así sobre uma base inestable, lo que, como es lógico, repercutirá a la hora de la (in) aplicación del precepto.”

414 HIRECHE, G. F. E. Análise Criminológica das Organizações Criminosas: Da Inexistência à

Impossibilidade de Conceituação e Suas Repercussões no Ordenamento Jurídico Pátrio. Manifestação do Direito Penal do Inimigo. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de

estatísticos. Se verifica o alargamento do controle punitivo e administrativo incidindo sobre as áreas econômica415.

O atuarismo e as logicas gerencialistas e segregadoras dele advindas, outrora ligados às análises da criminalidades de rua, atualmente se dispõem a demonizar a lavagem de capitais e outros crimes econômicos. Os demônios foram mudados mas o etiquetamento em si permanece o mesmo. A definição dos “inimigos”, conforme pontua Gamil Föppel El Hireche416, legitima a base teórica da estrutura de poder e é

utilizada como justificativa para a limitação e violação de garantias aos direitos individuais.

Em conjunto com as lógicas mercadológicas e gerencialistas trazidas pela inserção de análises econômicas da criminalidade estão as práticas de democratização de riscos, que mitigam o monopólio estatal na persecução da criminalidade e denunciam a evidente falência pública na criação de mecanismos idôneos de contenção dos novos riscos sociais.

Conforme O´Maley417, a inserção de racionalidades políticas neoliberais na

análise da criminalidade acabaram por desencadear a necessidade de supostamente restaurar a posição central dos indivíduos. Cria-se, então, um “novo prudencialismo”418, com uma população dependente, e a iniciativa privada

gradualmente responsável pela gestão dos riscos, desencadeando a responsabilização dos indivíduos em caso de inobservância. Difunde-se a ideia de prevenção em vez de retribuição moral após o evento.

Essa nova “estratégia de responsabilização” impõe e delega responsabilidades na prevenção criminal antes atreladas apenas ao Estado. Impõe-se a compreensão de que o combate ao crime não se exerce mais apenas pelos organismos estatais, mas com a participação de mecanismos privados. Assim se opera o que David Gerland419 chama de “manutenção da ordem da comunidade” ou “manutenção da

ordem de participação. Dito de outro modo, identifica-se quem pode atuar em

415 GLOECKNER. R. J.; DA SILVA, D. L. Criminal compliance, controle e lógica atuarial: A

relativização do Nemo tenetur se detegere. Revista de Direito da Universidade de Brasília. v.01, n.01, p. 147-172, jan./jun. 2014. p. 165

416 HIRECHE, G. F. E. 2005. op. cit. p. 32

417 O’MALLEY, P. Governmental Criminology. In: MCLAUGHLIN, E.; NEWBURN, T. (Eds.). The Sage

Handbook of Criminological Theory. Sage: London, Forthcoming. 2009. p. 11.

418 No original “new prudentialism” (O’MALLEY, P. op. cit. p. 11)

419 GERLAND, D. As contradições da “Sociedade Punitiva”: O caso Britânico. Revista de Sociologia

controle do crime e inventa-se formas de obriga-lo a assim proceder.420

Essa estratégia amplia os tentáculos do Estado mediante o controle difuso, e responde às exigências centralizadoras do Poder Público. Contudo, em contrapartida, esse mecanismo controlador se opõe a noção de Welfare Satate, minora significativamente os direitos sociais de cidadania, diminui as atribuições dos serviços públicos e amplia a já criticada influência mercadológica sobre aspectos fundamentais do bem estar da população, notadamente, os direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, a representação dos Direitos e da igualdade tem limitada atuação e a relação política entre destinatário da norma e Estado é trocada por uma avença de caráter econômico. Reduz-se a dependência do Estado, mas de outra banda vislumbra-se a submissão ao capital privado421.

Daí por se dizer que os mecanismos constantes na lei de lavagem de dinheiro são exemplos claros da corrupção ou alopoiese e do simbolismo da legislação penal. As racionalidades estranhas ao Direito Penal são utilizadas a pretexto de maior segurança, solapando garantias e fazendo prevalecer os interesses econômicos em detrimento das garantias individuais. Não se vislumbra uma diminuição da criminalidade que se objetiva atacar, antes, o acréscimo da delinquência vem acompanhado pela descrença na efetividade do Direito Penal.

O desiderato precípuo é, através dos deveres de cumprimento, da sobreposição de normas, da inserção de responsabilizações “administrativas” e dos discursos de integração de esforços no combate à criminalidade, encurralar o destinatário da norma, prestador de atividade economicamente interessante ao Estado, ex.vi, joalheiro, contador, advogado, corretor de imóveis, etc., a fim de que os tentáculos Estado estejam sempre controlando à distância as áreas ditas

420 Nesse sentido, imperativo consignar as análises de Gloeckner e Da Silva: “Nesse rumo,

desenvolve-se uma nova forma de gestão do crime a partir da estratégia de transferência de responsabilização, segundo a qual se delega a responsabilidade do controle a grupos e indivíduos, de modo que o Estado, em alguns setores, não mais atua diretamente contra o crime (com polícia, tribunais, prisões, etc.), senão de forma indireta, preventivamente, com apoio de organismos e organizações não estatais. Trata-se de uma nova ética ou de um mandamento ético60 que se alastra segundo o regime de governança cujo interesse estratégico não é outro senão o de formar uma cultura compliance e, consequentemente, ampliar o controle econômico. É justamente disso que se trata, pois dirão alguns autores que “a cultura é o elemento mais eficaz de orientação e controle da conduta de indivíduos e de organizações.” Eis que, com isso, delineia-se uma tentativa forçada de se instaurar uma cultura delirante da administração da vida social em nosso contexto, tal como um significante mestre que instaura uma nova ordem pela força e pela violência. E nada obstante, o próprio aparelho judiciário assume cada vez mais uma função reguladora, como já previra Foucault.”

(GLOECKNER, R. J.; DA SILVA, D. L. op. cit. p. 164)

sensíveis a lavagem mas, necessariamente interessantes ao mercado. A intenção de punir penalmente é limpidamente secundaria e o Direito Penal se afigura como um mero símbolo à medida que, conforme já explanado, há possibilidade de, mitigando o direito ao silêncio, fugir da sanção administrativa e negociar benefícios no plano penal.

O que se quer é reforçar no ideário popular a convicção de que o Direito Penal é a solução eficaz para todos os males sociais, e para tanto, necessário também se faz a sua junção com outros ramos punitivos a fim de satisfazer a sensação de segurança diuturnamente reivindicada na sociedade de risco.