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A RESERVA DO POSSÍVEL COMO LIMITE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Conforme anteriormente suscitado, os direitos fundamentais sociais, especialmente os de cunho prestacional, constituem, nos termos do artigo 5º, § 1º, da Constituição brasileira de 1988, direito imediatamente aplicável, independentemente da forma de sua positivação (mesmo quando eminentemente programáticos ou impositivos). Por menor que seja sua densidade normativa ao nível da Constituição, sempre estarão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos, já que não há mais praticamente quem defenda que existam normas constitucionais (ainda mais quando definidoras de direitos fundamentais) destituídas de eficácia e, portanto, de aplicabilidade.34

Esses, como todos os direitos fundamentais que têm uma dimensão prestacional a ser observada pelos poderes públicos, ainda que exclusivamente de proteção, preveem a realização de condutas materiais pelo Estado, como, por exemplo, educação, saúde, previdência. Em outras palavras, significa que a obrigação prevista na norma depende de uma atividade a ser prestada pelo Estado que, intervindo no mundo dos fatos, altere-o, fornecendo bens jurídicos antes inexistentes para o titular daquele direito.35

Nesse sentido, a dimensão fática de viabilidade de realização do direito assume uma elevada importância, especialmente quando analisada a partir da reserva do possível, que está diretamente relacionada à dimensão do custo. Na medida em que os direitos fundamentais implicam a realização de despesas por parte do Estado para se tornar efetivos,

33 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 289. 34

SARLET, Ingo Wolfgang.Os direitos fundamentais sociais na constituição de 1988. Disponível em: <www.direitopublico.com.br/pdf/REVISTA-DIALOGO-JURIDICO-01-2001-INGO-SARLET.pdf> Acesso

em: 05 mai. 2009.

35

OLSEN, Ana Carolina Lopes. A eficácia dos direitos fundamentais sociais frente à reserva do possível. 378 f. Dissertação apresentada no Curso de Pós-Graduação em Direito do Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. p. 212.

essa dimensão de despesa passaria a fazer parte do próprio conceito de direito, de modo que, diante da escassez de recursos disponíveis, não haveria que se falar em direito a ser defendido. A escassez de recursos seria elemento a inviabilizar o próprio reconhecimento do direito subjetivo a prestações sociais.36 A partir dessas questões, far-se-á a análise conceitual da

reserva do possível e das suas implicações no tocante à efetividade dos direitos sociais.

4.2.1 Delimitação conceitual da reserva do possível

O aspecto que assume maior relevância na discussão da eficácia e efetividade dos direitos fundamentais prestacionais diz respeito à existência dos recursos materiais, que, por sua vez, está relacionada a dois aspectos: a disponibilidade fática do meio necessário à realização do direito e a disponibilidade jurídica desse meio. Nesse sentido, o objeto previsto na norma deve estar disponível para o agente público destinatário da obrigação, ou seja, os meios necessários à realização da prestação normativamente prevista devem estar disponíveis, tanto fática quanto juridicamente. Não basta a existência dos recursos, o Estado deve ter a capacidade jurídica para deles dispor.37

Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, foi em virtude desses dois aspectos, quais sejam, a possibilidade e o poder de disposição por parte do destinatário da norma, que se passou a sustentar a colocação dos direitos fundamentais sociais na chamada “reserva do possível”.38

Ana Cristina Costa Meireles afirma que a reserva do possível é o “fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis, diante das necessidades quase sempre infinitas a serem supridas pelo Poder Público”.39

Dalmo de Abreu Dallari também se manifestou nesse sentido, mesmo antes da promulgação da Constituição Federal de 1988:

Será totalmente inútil todo o cuidado para elaborar uma boa Constituição se ela não for efetivamente aplicada e respeitada por todos, governantes e governados. Por esse motivo, entre outros, a Constituição não deve conter preceitos de aplicação impossível ou que contrariem a realidade social. Mesmo aquilo que for incluído na Constituição com o sentido de definição de objetivos ou de aspirações deve ter coerência com a realidade para que seja viável, pois caso contrário os dispositivos

36

OLSEN, Ana Carolina Lopes. A eficácia dos direitos fundamentais sociais frente à reserva do possível. p. 194.

37 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2004. p. 281-282.

38 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 282.

constitucionais terão o significado de simples afirmações teóricas, soltas no espaço, o que irá contribuir para que a própria Constituição se desmoralize.40

Além disso, faz-se necessário atentar para o fato de que uma determinada norma constitucional pode deixar de ser aplicada, tanto por real impossibilidade fática, como pela ineficácia normativa relacionada a um discurso ideológico que esconde, em verdade, escolhas conscientemente realizadas pelos destinatários da norma. Portanto, a partir dessas considerações é possível deduzir que a reserva do possível é um elemento material que influencia a aplicação dos direitos fundamentais sociais, já que está associada aos dados da realidade.

Dessa forma, embora a Constituição disponha como direito fundamental de todo cidadão o direito à saúde, não poderá o titular deste direito pleitear em juízo, por exemplo, o fornecimento do remédio capaz de curá-lo da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). Sendo assim, só é permitido demandar dos poderes públicos as prestações materiais que são logicamente possíveis, observadas as circunstâncias da realidade num dado momento.41

Assim, no caso do direito à saúde, por exemplo, só é possível pleitear do Estado um determinado bem jurídico se ele estiver disponível naquele momento (não se pode pleitear um transplante de órgão sem que este esteja disponível), bem como se a concessão deste bem for juridicamente possível (o Estado não poderá ser condenado a tirar a vida de um cidadão para disponibilizar o fígado necessário ao transplante).42

No mesmo sentido, Marcos Maselli Gouvêa aborda a reserva do possível sob dois aspectos: um fático e outro jurídico. O primeiro estaria relacionado ao “[...] contingenciamento financeiro a que se encontram submetidos os direitos prestacionais”,43

enquanto o jurídico diz respeito à falta de “previsão orçamentária que destine recursos financeiros para a consecução de determinado interesse, ou licitação que legitime a aquisição de determinado insumo”.44

Ana Paula de Barcellos relaciona a expressão reserva do possível ao “fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre

40 DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e constituinte. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 53.

41 OLSEN, Ana Carolina Lopes. A eficácia dos direitos fundamentais sociais frente à reserva do possível. p.

217.

42

OLSEN, Ana Carolina Lopes. A eficácia dos direitos fundamentais sociais frente à reserva do possível. p. 217.

43 GOUVÊA, Marcos Maselli. O direito ao fornecimento estatal de medicamentos. In: GARCIA, Emerson

(Coord.) A efetividade dos direitos sociais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 217.

44 GOUVÊA, Marcos Maselli. O direito ao fornecimento estatal de medicamentos. In: GARCIA, Emerson

infinitas a serem por eles supridas”.45 A autora salienta, ainda, a importância da limitação de

possibilidades materiais para a implementação dos direitos, já que só a previsão normativa não lhes garante a efetividade.46

Na mesma esteira, Gustavo Amaral entende que surge a questão da escassez quando não há possibilidade de satisfazer todas as prestações fundadas em direitos fundamentais por falta de recursos materiais necessários, já que estes são finitos.47

No entanto, se é verdade que a questão da reserva do possível não pode ser totalmente desconsiderada por motivos de ordem financeira, necessário se faz uma reavaliação por parte dos Poderes Legislativo e Executivo no sentido de elaborar políticas públicas e alocar recursos a elas pertinentes, com o fim de evitar que os direitos fundamentais dos cidadãos sejam, real ou potencialmente, violados.48

Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, a doutrina e jurisprudência portuguesas afirmam que uma das maiores dificuldades para a determinação dos direitos sociais como direitos fundamentais é o fato de estes dependerem de leis e de políticas sociais que garantam sua existência, ou seja, os direitos sociais só terão plena eficácia e exequibilidade, se houver lei concretizadora e recurso disponível. Dessa forma, os custos dos direitos sociais, ao contrário dos direitos de liberdade, que em geral não custam muito dinheiro, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado.49 Por esse motivo, segundo o autor:

[...] rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível (Vorbehalt dês Möglichen) para traduzir a ideia de que os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos.Um direito social sob “reserva dos cofres cheios” equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica. Para atenuar esta desoladora conclusão adianta-se, por vezes que a única vinculação razoável e possível do Estado em sede de direitos sociais se reconduz à garantia do mínimo existêncial.50

O autor completa sua crítica afirmando que a garantia do mínimo existencial resulta do dever advindo do princípio da dignidade da pessoa humana e não de qualquer densificação jurídico-constitucional dos direitos sociais. Discorda, também, da tese de que nenhuma das normas constitucionais garantidoras de direitos sociais fundamentais possam ser estruturalmente entendidas como vinculantes, garantidoras, em termos definitivos de direitos subjetivos. Defende, portanto, que a força jurídico-constitucional dos direitos fundamentais sociais dispõem, sim, de vinculatividade normativo-constitucional, que são normas

45 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da

pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 236.

46 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. p. 236-237. 47 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 133. 48

MEIRELES, Ana Cristina. A eficácia dos direitos sociais. p. 446.

49 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 481. 50 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. p. 481.

garantidoras de direitos sociais e que devem servir de parâmetro de controle judicial quando estiver em causa a apreciação da constitucionalidade de medidas legais restritivas desses direitos, e que o dever imposto ao Estado para a sua concretização deve corresponder a medidas concretas e determinadas, e não ficar sob a livre disponibilidade do legislador.51

Vencida a questão conceitual da reserva do possível, verificar-se-á a sua abordagem nos tribunais, especialmente no da Alemanha, e em seguida far-se-á uma análise da aplicação da reserva do possível pelo Judiciário brasileiro na realização dos direitos fundamentais sociais.