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A responsabilidade internacional do Estado por dano ecológico: questões difíceis (ou impossíveis?)

tado por omissão de deveres de controlo de actividades potencialmente lesivas para o ambiente até à responsabili-

5. A responsabilidade internacional do Estado por dano ecológico: questões difíceis (ou impossíveis?)

Depois deste breve périplo, confirma-se a primeira impressão que dei- xámos no início deste texto, parafraseando KOIVUROVA: há ainda um longo caminho a percorrer no tocante à construção de um regime universal de respon- sabilidade internacional por dano ecológico, quer no plano da responsabilização do Estado, directamente ou por omissão de deveres de diligência preventiva, quer no plano da responsabilização de operadores privados55.

O modelo da directiva europeia 35/200456, a que já se aludiu, constitui um exemplo a seguir, mesmo que imperfeito — por só prever responsabilização em caso de actividades económicas (excluindo as de lazer e outras); por assentar numa noção algo restrita de dano ecológico (excluindo danos ao ar, ao solo e subsolo); por deixar demasiado solta a opção da responsabilidade objectiva; por não prever a restauração da situação actual hipotética dos bens lesados; entre outros défices. Porém, como já se observou, este regime só vale para entidades a 54 No mesmo sentido, Philippe SANDS e Jacqueline PEEL (com a colaboração de Adriana Fabra e

Ruth MacKenzie), Principles..., cit., p. 708.

55 Conclusão confirmada por Philippe SANDS e Jacqueline PEEL (com a colaboração de Adriana Fabra e Ruth MacKenzie), Principles..., cit., p. 704, “In the environmental field, no single instru- ment sets forth the generally applicable international rules governing responsibility and liability”. 56 Vejam-se, sobre o regime da directiva, Carole HERMON, “La réparation du dommage écologique.

Les perspectives ouvertes par la directive du 21 avril 2004”, in AJDA, 2004/33, pp. 1792 segs; e os textos reunidos na obra colectiva La responsabilité environnementale. Transposition de la directive 2004/35 et implications en droit interne, coord. de Delphine Misonne e Benôit Jadot, Louvaine-la- Neuve, 2009.

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operar no espaço territorial da União Europeia e para danos verificados em ter- ritório da União Europeia. Recorde-se que a directiva assenta numa perspectiva pura de dano ecológico e prevê critérios de reparação do dano os quais, embora não apontem para a reposição da situação actual hipotética, contemplam me- didas de reparação primária, interina e de compensação por equivalente, que podem ser implementadas cumulativamente face a um mesmo dano.

Um outro modelo, no plano dos contributos institucionais, encontra-se na Resolução do Institut de Droit International adoptada, no seio da oitava comissão, na sessão de Estrasburgo, de 1997, cujo relator foi Francisco Orrego Vicuña, intitulada La responsabilité en droit international en cas de dommages

causés à l’environnement57. De entre outros pontos com interesse, realçam-se: • a sua aplicação quer a espaços sob jurisdição estatal quer a espaços fora de

qualquer jurisdição (cfr. o considerando inicial 4º);

a exortação à formulação de normas de due diligence que se pautem em standards objectivos, os quais traduzam uma ideia de actuação do Estado de acordo com as regras da good governance (artigo 3);

• a responsabilização primária dos operadores privados, a título objectivo mas sujeita a limites e com causas de exoneração, a qual não prejudica, no entanto, a responsabilidade internacional do Estado caso este não preveja a responsabilidade objectiva por actividades perigosas para o ambiente no seu direito interno (artigos 5, 6, 9);

• a previsão da constituição de Fundos de Reparação especiais a accionar quando o dano tenha causa desconhecida ou quando a previsão da con- stituição de Fundos de Reparação especiais a accionar quando o dano tenha causa desconhecida ou quando o valor das medidas a implementar ultrapasse os tectos indemnizatórios impostos pela responsabilidade ob- jectiva — podendo, neste último caso, chamar-se os operadores de deter- minados sectores a contribuir para a constituição de tais fundos (artigo 12);

57 Disponível em http,//www.justitiaetpace.org/idiE/resolutionsE/ 1997_str_03_en.PDF

Veja-se também, do mesmo ano, a Resolução sobre Procedures for the Adoption and Implementation of Rules in the Field of Environment, cujo relator foi Felipe Paolillo (disponível em http,//www. justitiaetpace.org/idiE/resolutionsE/

1997_str_04_en.PDF).

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• a adopção de um conceito amplo de medidas de reparação, que abranja desde a cessação de actividade à reparação in natura, à reparação pecu- niária e à satisfação (artigo 24);

• a compensação de qualquer dano ecológico, mesmo que irreparável ou inquantificável (do prisma estritamente económico). Vale a pena aqui transcrever o artigo §2º do artigo 25:

“Lorsque des dommages sont irréparables en raison de conditions physiques, tech- niques ou économiques déterminées, il convient de recourir à d’autres critères pour les évaluer. La dégradation de l’usage des biens, de la qualité esthétique et d’autres valeurs non liées à l’usage, les lignes directrices nationales ou interna- tionales existantes, l’équité inter-générationnelle et une évaluation équitable dans son ensemble devraient être considérées comme des critères subsidiaires pour la fixation des indemnités”.

• o estabelecimento de normas amplas de legitimidade, que permitam a actores altruístas reclamar a reparação dos danos independentemente da prova de interesse directo (artigo 27);

• a criação de uma entidade internacional, um Alto Comissário para o Am- biente, que tenha por missão monitorizar as operações de reparação de dano ecológico em áreas fora de jurisdição, bem assim como a afectação de eventuais quantias recebidas a título de compensação de danos ir- reparáveis à recuperação de outras áreas onde tenham eclodido danos ecológicos cujas causas sejam desconhecidas (artigo 28).

Nenhum destes modelos, todavia, se adequa à resolução do grande de- safio ambiental do século XXI: as alterações climáticas. Esta magna questão traz consigo, desde a Conferência do Rio de Janeiro de 1992, o problema da “cobrança” da “dívida histórica” dos Estados do hemisfério Sul aos Estados do hemisfério Norte. Recorde-se que, em Declaração anexa à Convenção-quadro sobre a luta contra as alterações climáticas e ao Protocolo de Kioto, quatro Es- tados do Sul do Pacífico (Fiji, Kiribati, Nauru e Tuvalu) afirmaram não abdicar do seu direito a exigir responsabilidade pela conduta negligente dos Estados do

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hemisfério Norte no tocante à emissão desregrada de dióxido de carbono para a atmosfera58.

O facto de a industrialização do Norte ter provocado o aquecimento do planeta, pondo em risco o equilíbrio do sistema climático mundial ao gerar cada vez mais fenómenos extremos e, em certos casos, condenando mesmo ao desaparecimento, a breve trecho, Estados insulares — e afectando sobretudo o hemisfério Sul —, já teve repercussões judiciais no sentido da tentativa de re- sponsabilização de Estados como os EUA, tanto por acção — os EUA são os segundos maiores emissores de CO2 do planeta, a seguir à China ¾, como por omissão — recusaram assinar o Protocolo de Kioto e continuam sem ratificar o Acordo de Paris.

É nesta linha que se compreendem acções como a apresentada pela vila de Kivalina, no Círculo Ártico, que está a desaparecer e que processou, em 2012, companhias petrolíferas americanas junto de um tribunal da Califórnia, pedin- do o ressarcimento dos danos causados no plano da degradação ambiental e das condições de vida da sua população59. Ou como a ameaça do Tuvalu, em 2002, de que iria accionar a Austrália junto do Tribunal Internacional de Justiça a fim de garantir asilo para a sua população, ameaçada no seu espaço vital em razão da subida do nível das águas. Ou ainda, num plano para-judicial, a queixa apre- sentada pelo povo Inuit à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, em 2005/2006, exigindo a tomada de medidas pelos EUA no sentido de travar a degradação irreversível das condições de vida no seu território, nomeadamente, através da ratificação do Protocolo de Kioto60.

Nenhuma destas iniciativas logrou alcançar mais do que repercussão mediática. Isto porque o instituto da responsabilidade civil se mostra inábil

58 “Understanding that signature of the convention shall in no way constitute a renunciation of any rights under international law concerning state responsibility for the adverse effects of climate change and that no provisions in the convention can be interpreted as derogating from the princi- ples of general international law.”

59 O tribunal desatendeu a pretensão alegando constituir esta um “political issue”, arredado do seu âmbito de competência. O caso subiu ao Supreme Court, mas sem sucesso.

60 Segundo Meredith WILENSKY (Climate change in the courts, an assessment of Non-U.S. climate litigation, Columbia Law School, 2015, p. i. — disponível em http,//delpf.law.duke.edu/article/cli- mate-change-in-the-courts-wilensky-vol26-iss1/), os EUA são o Estado do mundo no qual mais litígios se registam sobre alterações climáticas. Só em 2013 foram decididos 420 casos, enquanto em todo o resto do mundo se contam 173. Enquanto nos EUA há acções propostas com vista à efectivação de responsabilidade civil por omissão de medidas de minimização de emissões, no resto do mundo essas acções não foram identificadas (idem, idem, p. v).

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para lidar com estas pretensões61, em razão do carácter difuso das emissões, da retroactividade da imputação, da dificuldade de estabelecer nexos de causali- dade, da variabilidade das projecções dos climatólogos. A estas dificuldades acresce, como aponta VOIGT, a inexistência de consenso sobre uma norma primária vinculativa sobre due diligence no tocante à obrigação de prevenção do aumento do nível da temperatura no planeta62.

Já uma solução como a do Green Fund for Climate Change, criado em 2009 (na COP de Copenhaga), parece revelar-se mais adequada. Está em causa a mobilização de 100 biliões de dólares até 2020, para afectar a acções de adaptação a implementar em Estados em desenvolvimento, de forma a torná-los mais resilientes em face das alterações climáticas. Porém, a verba estimada é as- tronómica e é altamente incerto que consiga ser reunida. Além de que é duvido- so que possa resolver um problema da magnitude que se apresenta, correndo o risco de se revelar apenas um retardador desculpante de medidas mais drásticas no sentido do controlo das emissões de gases com efeito de estufa.

Como certeiramente observou Rosalyn HIGGINS, Presidente do Tribu- nal Internacional de Justiça, “If what is required for something to fall within the law of State responsibility is an internationally wrongful act, then what is inter- nationally wrongful is allowing ... the harm to occur”63. Tal asserção deve ser es- pecialmente repudiada num domínio como a protecção do ambiente. Acrescem as incertezas e debilidades do instituto da responsabilidade civil internacional do Estado assinaladas, que fazem com que a doutrina acentue cada vez mais a necessidade de robustecer os instrumentos preventivos — e é essa a via que tem sido adoptada em vários tratados sectoriais. Na antecipação de danos geralmente irreversíveis vale sempre mais prevenir do que remediar — prevenir cooperati- 61 Em sentido contrário, defendendo, em teoria, a adequação do instituto da responsabilidade civil

para enquadrar pretensões envolvendo o incumprimento de obrigações relacionadas com a re- dução de emissões de gases com efeito de estuda, Michael G. FAURÉ e André NOLLKAEMPER, “International Liability as an Instrument to Prevent and to Compensate for Climate Change”, in The Stanford Environmental Law Journal, 2007, pp. 123 segs. Os Autores reconhecem, no entanto, que “Climate change litigation — and more particularly, liability suits — are not the panacea that will bring about a miraculous solution to the enormous problems that the world faces as a result of global warming. Undoubtedly, regulatory solutions and economic instruments like emissions trading will play a far more important role in reducing GHG emissions than liability suits ever will” (p. 178).

62 Christine VOIGT, “State Responsibility for Climate Change Damages”, in Nordic Journal of Inter- national Law, vol 77, 2008, pp. 1 segs, esp. p. 7 e 15 (ainda que entenda ser possivel retirar uma proibição de aumento de emissões para além do nível fixado no Protocolo de Kioto, a partir do momento em que ele entrou em vigor e relativamente aos Estados partes, tempera depois esta afirmação com a constatação de que a lógica das responsabilidades comuns mas diferenciadas entorpece a afirmação de uma obrigação precisa).

63 Rosalyn HIGGINS, Problems and process, International Law and how we use it, Oxford, 1994, reimp. de 2003, p. 165.

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vamente, pois os problemas são globais64; prevenir com base em standards uni- formes e fixados com recurso à melhor tecnologia disponível; e prevenir sis- temática e documentadamente, com submissão periódica dos dados a comissões de verificação independentes65.

Recorde-se, aliás, que porventura a vertente mais interessante, do ponto de vista estritamente ambiental, do caso Trail Smelter, foi a injunção judicial no sentido da gestão do risco futuro de repetição do dano que passou a recair sobre a fundição Trail, através da implementação de um sistema de monitorização66. Na verdade, em razão da dimensão económica das actividades poluentes, é pouco crível que os tribunais ordenem o seu encerramento, preferindo, num esquema de balanceamento de interesses, sujeitá-las a, para futuro, exercer um controlo mais eficaz no que tange a salvaguarda da qualidade do ambiente em que se inserem.

Claro que dispensar o instituto da responsabilidade é impensável — quer porque isso significaria degradar a protecção ambiental e regredir no importante percurso já percorrido, quer porque poderia significar premiar os infractores67. Porém, reduzir as hipóteses do recurso a ele, antecipando a eclosão de danos por forma a evitá-los, é certamente o melhor caminho68. Sobretudo no âmbito dos espaços fora de jurisdição, nos quais a responsabilidade internacional do Estado por dano ecológico continua a ser, e apesar de alguns esforços em contrário, uma miragem.

64 Sobre a ideia de cooperação preventiva, veja-se o nosso “A gestão do risco de catástrofe natural – Uma introdução na perspectiva do Direito Internacional”, Capítulo I da obra colectiva Direito(s) das catástrofes naturais, coord. de Carla Amado Gomes, Coimbra, 2012, pp. 15 segs, esp. 29 segs (o texto encontra-se disponível online aqui,

http,//www.icjp.pt/sites/default/files/papers/catastrofes_naturais.pdf).

65 Cfr. Jorge VIÑUALES, “Managing abidance by standards for the protection of the environment”, in Realizing Utopia, the future of International Law, coord. de Antonio Cassese, Oxford, 2012, pp. 326 segs, passim.

66 Neste sentido, Patricia BIRNIE, Alan BOYLE e Catherine REDGWELL, International Law..., cit., p. 227.

67 Embora se deva admitir que, no âmbito dos espaços submetidos a jurisdição, a responsabilidade internacional do Estado por dano, ambiental ou ecológico, será sempre uma via residual, em razão da subsidiariedade realçada no texto. No mesmo sentido, Patricia BIRNIE, Alan BOYLE e Cath- erine REDGWELL, International Law..., cit., p. 223.

68 Como notam Patricia BIRNIE, Alan BOYLE e Catherine REDGWELL (International Law..., cit., p. 237), “Like tort law, [state responsibility] complements, but does not displace, the need for a system of regulatory supervision”.

Responsabilidade internacional do Estado por dano ecológico: uma miragem?

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